Documentos obtidos por ISTOÉ colocam em xeque versões apresentadas pelo ex-presidente sobre o tríplex no Guarujá, que entrou na mira da Lava Jato por suspeitas de camuflar pagamento de propina
Pedro Marcondes de Moura (pedro.marcondes@istoe.com.br)
Na sexta-feira
29, o Ministério Público de São Paulo intimou para prestar depoimento o
ex-presidente Lula, sua mulher Marisa Letícia e o ex-presidente da OAS,
Leo Pinheiro. Lula será ouvido em 17 de fevereiro como investigado, sob a
suspeita de ter praticado crimes de ocultação de patrimônio e lavagem
de dinheiro. Frente a frente com os promotores, a família do
ex-presidente e o empreiteiro terão de apresentar justificativas mais
plausíveis do que aquelas já expostas até agora a respeito do tríplex
localizado no condomínio Solaris, no Guarujá, e reformado pela OAS, que
na semana passada transformou-se em alvo da mais recente fase da
Operação Lava Jato. As suspeitas, segundo os procuradores, recaem sobre o
uso dos apartamentos do Solaris, entre eles o de Lula, para “repasse
disfarçado de propina a agentes envolvidos no esquema criminoso da
Petrobras.” Em outras palavras, pagamento de suborno do Petrolão.
NA MIRA
O ex-presidente Lula terá de depor ao MP para explicar a relação
com imóvel reformado por empreiteira do Petrolão
ISTOÉ teve acesso a três documentos que
comprometem as versões exibidas por Lula, desde que o caso veio à tona.
No ano passado, quando surgiram as primeiras denúncias de que a
empreiteira OAS, envolvida nas falcatruas da Petrobras, desembolsou mais
de R$ 700 mil na reforma do apartamento no litoral paulista,
o Instituto Lula se esmera em negar com veemência que o ex-presidente ou
a ex-primeira-dama Marisa Letícia sejam donos do imóvel. Eles seriam,
segundo insistem em afirmar, apenas cooperados de uma cota da quebrada
Bancoop, a Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo, já
comandada por dirigentes petistas, como João Vaccari Neto e Ricardo
Berzoini, hoje ministro de Dilma, que deixou mais de três mil famílias
sem ver a cor de seus imóveis e do dinheiro aplicado por eles movidos
pelo sonho da casa própria. O discurso do principal líder petista
persistiu até semana passada, apesar de toda a sorte de depoimentos que
confirmaram a presença rotineira de integrantes da família Lula durante
as obras responsáveis por mudar (para melhor) a configuração do tríplex.
Os documentos que ISTOÉ apresenta agora revelam que Lula jamais abriu
mão do imóvel. Há sete anos, a família Lula deveria ter exercido o
direito, caso tivesse interesse, de se desfazer da cobertura de frente
para a praia e receber a restituição em dinheiro do que havia
desembolsado até ali. Mas não o fez. Na época, um acordo foi selado,
transferindo o empreendimento atrasado e inacabado da Bancoop para a
OAS.
Ratificado na assembleia dos proprietários
em 27 de outubro de 2009 e subscrito pelo ex-tesoureiro do PT, João
Vaccari Neto, o “Termo de Acordo para Finalização do Residencial”, de 14
páginas, é taxativo. Diz que os investidores do inacabado Residencial
Mar Cantábrico, renomeado tempos depois para Solaris, tinham dez dias a
contar daquela reunião para se desligarem da Bancoop. Precisavam, afirma
a cláusula 8.1 do capítulo VIII, também optar entre duas opções em até
30 dias. A primeira, afirma o capítulo X, receber os valores em espécie
com multa. A outra consistia em manifestar o desejo de ficar com o
imóvel e custear novas despesas para sua finalização. Os valores já
pagos, então, iriam ser transformados em uma carta de crédito pela OAS
que deveria ser “usada com exclusividade como parte de pagamento para a
aquisição de unidade do empreendimento”. Evidente que aquela era uma
oportunidade para que os até então aspirantes a adquirir o imóvel
desistissem dele, caso tivessem vontade. Mais do isso. As cláusulas 8.2,
8.3 e 8.4 afirmam que “os cooperados que não atenderem ao disposto item
8.1 infringirão deliberação da Assembleia” e “serão penalizados” com a
“sua eliminação da Bancoop”. Não foi uma mera ameaça. Segundo apurou
ISTOÉ junto a cooperados da empresa, quem descumpriu esses itens acabou
acionado na Justiça. Por isso torna-se completamente inverossímil a nota
divulgada pelo Instituto que leva o nome do ex-presidente, quando
sugere que a família Lula poderia decidir, em 2015, entre ficar ou não
com o apartamento. Se porventura isso acontecer, sobretudo depois da
eclosão do escândalo, ficará configurado mais um favorecimento da
empreiteira OAS, implicada no Petrolão, ao petista e seus familiares.
Outro documento ao qual ISTOÉ teve acesso
revela que a OAS nunca colocou à venda o tríplex destinado à família
Lula, o 164 A, ao contrário da atitude tomada em relação a outros
imóveis descartados por cooperados em 2009. Os apartamentos dos que não
demonstraram interesse em migrar da cooperativa para a empreiteira,
logo, foram repassados ao mercado. É lícito supor que se Lula tivesse
manifestado a intenção de se desfazer da cobertura, seu apartamento
receberia o mesmo tratamento dos demais. Definitivamente não foi o que
aconteceu. A tabela de vendas com 12 páginas, de uma empresa associada à
OAS e responsável pela comercialização das unidades restantes do
Solaris, no Guarujá, é bem clara. O documento datado de fevereiro de
2012 mostra que 33 unidades do condomínio Solaris estavam disponíveis
naquela ocasião. Em uma das colunas, a tarja preta sobre o tríplex 164 A
de Lula indica que, sim, o imóvel já tinha dono e não poderia ser
comercializado. Naquele ano, havia até um tríplex esperando por
compradores, mas o da torre vizinha ao prédio de Lula.
Autoridades familiarizadas com o esquema
da Bancoop também estranham outra afirmação do Instituto Lula: a de que
Marisa teria adquirido cotas do empreendimento. “Genericamente, este
negócio de cotas é coisa de consórcio. Cooperativa, como a Bancoop, é
algo diferente. Ali, o que a pessoa adquire é um apartamento X ou Y”,
diz o promotor paulista José Carlos Blat. Num outro documento obtido por
ISTOÉ, um dos cooperados - que preferiu ter o nome preservado - assina o
termo de adesão da Bancoop em março de 2004. O acordo já previa o
número do apartamento. Outros ex-proprietários confirmaram que já sabiam
previamente dos apartamentos que caberiam a eles, antes mesmo de
realizarem qualquer pagamento à cooperativa. “Para mim e para muitos, o
apartamento já vinha definido na hora da compra”, diz a advogada e
ex-cooperada Tânia de Oliveira “Até porque havia variações de preço de
acordo com o tamanho, o andar, a vista e a localização”, afirma.
Os documentos lançam luz sobre as
inconsistências das versões apresentadas por Lula. Os trâmites, por
assim dizer, burocráticos desde a incorporação pela OAS dos apartamentos
da falida Bancoop são fundamentais para atestar documentalmente que,
sim, a família do ex-presidente sempre teve a intenção de permanecer com
o tríplex de frente para a praia. Desmoronam o castelo de areia em que
se transformou o imóvel do petista. O escândalo, no entanto, vai além de
uma questão de formalização. Uma série de depoimentos revela que Lula e
Dona Marisa agiram – com impressionante desassombro, até serem
confrontados com os fatos – como verdadeiros donos do imóvel. A
ex-primeira-dama acompanhou de perto a reforma do tríplex, paga pela
OAS. Não foram poucas as alterações, como uma simples troca de azulejos
do banheiro, por exemplo. As mudanças conferiram uma roupagem nova e
mais sofisticada ao imóvel, com cerca de trezentos metros quadros e
vista para o mar. Segundo o engenheiro Armando Dagre, um dos donos da
Talento Construtora, empresa responsável pela reforma, as obras foram
típicas de quem pretende se instalar no imóvel deixando-o à sua feição.
Por isso foram empreendidas mudanças significativas na área da piscina,
com a instalação de um espaço gourmet, no acabamento do piso, que passou
a ter revestimento de porcelanato, e na escada, que deixou de ser o
único elo entre os três pisos do apartamento: para que Lula e seus
familiares pudessem vencer os três andares do imóvel com mais conforto
foi determinada a instalação de um elevador privativo. As despesas
somaram cerca de R$ 750 mil, pagas pela empreiteira envolvida no
Petrolão. O engenheiro foi além em seu relato. Afirmou ter testemunhado
uma das visitas da ex-primeira-dama no imóvel em 2014. Em sua companhia,
estavam o filho Fábio Luiz e nada menos do que Léo Pinheiro,
ex-presidente da OAS e réu no Petrolão. As idas de Marisa ao prédio
foram atestadas por outros dois funcionários do condomínio, em
depoimento ao MP-SP. De acordo com eles, de tão interessada, ela chegou a
perguntar sobre o uso das áreas comuns – seguindo à risca a liturgia
que todo proprietário de um imóvel adquirido na planta cumpre. Depois
da vistoria, a mulher de Lula participou do processo tradicional de
recebimento das chaves do imóvel. “Pegamos as chaves do apartamento no
dia 5 de junho, inclusive dona Marisa — disse Lenir de Almeida Marques,
casada com Heitor Gushiken, primo do ex-ministro Luiz Gushiken, morto em
2013 e que foi também presidente do Sindicato dos Bancários de São
Paulo. O Solaris abriga outros moradores bem próximos do petista, como
João Vaccari Neto e Freud Godoy, uma espécie de faz-tudo do
ex-presidente, que, depois de atuar por vinte anos como seu
guarda-costas, virou assessor especial do Planalto durante sua gestão.
Esses fatos por si só já colocariam Lula
numa enrascada, uma vez que poderiam ensejar uma denúncia por ocultação
de patrimônio, como defende um integrante do MP-SP. As investigações
acerca da relação de Lula com o imóvel, no entanto, ganharam nova
dimensão na semana passada com a entrada do edifício Solaris no radar da
força-tarefa da Lava Jato. A “Triplo X”, nome alusivo a tríplex, mira
segundo os procuradores “todos os apartamentos” do edifício Solaris, no
Guarujá, que estariam sendo usados “para repasse disfarçado de propina
(pela OAS) a agentes envolvidos no esquema criminoso da Petrobras.”
Questionado durante entrevista coletiva, se Lula seria o foco da
operação, o representante do MPF respondeu: “Se houver um apartamento lá
que esteja em seu nome [de Lula] ou que ele tenha negociado, vai ser
investigado como todos os outros.”
INVESTIGAÇÃO
Segundo integrantes da Lava Jato, todos os proprietários do condomínio
Solaris serão investigados, incluindo o ex-presidente Lula
Durante a Operação, da qual participaram 80
agentes, foram recolhidos documentos na OAS, Bancoop e na Mossack
Fonseca, empresa responsável por viabilizar a constituição da offshore
Murray, sediada no Panamá. Ela foi usada para registrar 14 apartamentos,
entre eles um tríplex no Solaris, e ocultar seus verdadeiros donos. A
Mossack Fonseca já havia aparecido anteriormente na Lava Jato por
auxiliar outros réus a esconderem dinheiro da corrupção da Petrobras em
paraísos fiscais. Além da companhia - apontada como uma facilitadora de
lavanderias de dinheiro por procuradores -, as investigações centram em
imóveis que pertenceriam a familiares de João Vaccari Neto,
ex-tesoureiro do PT e preso na Lava Jato. Um apartamento situado no
condomínio e declarado à Receita pela esposa de Vaccari tem sua
escritura em nome de uma funcionária da OAS. Chamou atenção também o
fato de Marice Correa, cunhada do ex-tesoureiro do PT e que chegou a ser
detida no Petrolão, ter comprado e revendido um imóvel para a própria
empreiteira por quase o triplo do valor em apenas um ano. A chave para
elucidar esta lavanderia, para as autoridades, é Nelci Warken,
ex-prestadora de serviços de marketing à Bancoop. Presa na quarta-feira,
ela é tida como laranja do esquema.
O novo escândalo abala Lula como nunca
antes. Pelo simples fato de que, agora, a denúncia envolve suspeitas de
favorecimento no campo estritamente pessoal. No imaginário popular, sai
do abstrato e já quase banalizado “desvio de verbas para campanhas” para
o concreto e tangível benefício próprio materializado num confortável
tríplex com vista para o mar. Diante do exposto, fica complicado
persistir na retórica de vítima das elites, enquanto os meros mortais de
carne e osso o imaginam refestelado na espreguiçadeira da piscina
reformada por uma empreiteira contemplando a vista para o mar da praia
do Guarujá. A história política brasileira recomenda alerta. Uma outra
reforma potencializou a queda de outro ex-presidente do Planalto. Em
1992, Collor viu sua popularidade se deteriorar com a divulgação das
cachoeiras motorizadas, do lago artificial e das fontes luminosas da
Casa da Dinda, cujo suntuoso jardim de marajá foi reformado por um
paisagista renomado com dinheiro proveniente de contas do tesoureiro,
Paulo César Farias. Único nome com musculatura eleitoral para dar
prosseguimento ao projeto de poder petista em 2018, Lula corre o risco
de ver seu castelo de areia desabar, e junto com ele todo o capital
político que acumulou em quarenta anos de vida pública.
Fotos: Fernando Donasci e Marcos Alves/ Ag. O Globo , GLAUCO TULIO/FUTURA PRESS; Geraldo Bubniak/AGB
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