Numa atitude vergonhosa, a Câmara e o Senado viram as costas para os brasileiros ao desfigurar o pacote anticorrupção, incendeiam o País e deflagram uma guerra entre Poderes, colocando em risco até a própria Lava Jato
Na última semana, os nossos congressistas foram merecedores da comparação nauseabunda. As iniciativas, respaldadas pela imensa maioria da população, haviam sido subscritas por 2,4 milhões de pessoas. O resultado indignou a sociedade, fez soar novamente o tilintar das panelas nas principais capitais brasileiras e representou o mais contundente ataque perpetrado contra a Lava Jato até agora. No contexto atual, em que a força-tarefa formada por procuradores e policiais federais pode estar prestes a condenar a maioria dos parlamentares ao ostracismo político, a tentativa de aprovar no afogadilho a emenda, que ainda precisa da chancela do Senado, foi sem dúvida mais uma contra-ofensiva destinada a retaliar quem os investiga e pune. Pior: tratou-se de um gesto eivado de irresponsabilidade, pois no momento em que o País vive uma circunstância de fragilidade política, a ação dos parlamentares desencadeou uma crise entre Poderes.
A reação
A presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, divulgou nota na qual afirmou “lamentar que, em oportunidade de avanço legislativo para a defesa da ética pública, inclua-se, em proposta legislativa de iniciativa popular, texto que pode contrariar a independência do Poder Judiciário”. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, declarou que o Ministério Público “não apóia o texto que restou, uma pálida sombra das propostas que nos aproximariam de boas práticas mundiais”. Porém, a mais inflamada manifestação viria da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Na tarde de quarta-feira 30, os procuradores convocaram uma entrevista coletiva na qual fizeram duras críticas à atuação da Câmara e ameaçaram renunciar aos cargos na investigação caso o abuso de autoridade seja mantido da forma como foi aprovado. “Nós somos funcionários públicos. Temos uma carreira no Estado e não estaremos mais protegidos pela lei. Se nós acusarmos, nós podemos ser acusados. Nós podemos responder, inclusive, com o nosso patrimônio. Não é possível, em nenhum estado de direito, que não se protejam promotores e procuradores contra os próprios acusados. Nesse sentido, a nossa proposta é de renunciar coletivamente caso essa proposta seja sancionada pelo presidente (Michel Temer)”, afirmou o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima. Na quinta-feira 1, foi a vez de o juiz federal Sérgio Moro criticar a sorrateira atuação da Câmara. Em audiência no Senado, ao lado de Renan e do ministro do STF, Gilmar Mendes, Moro ponderou que a aprovação do crime de responsabilidade para juízes e promotores teria que ser objeto de um debate, de uma reflexão maior por parte do parlamento. “Essas emendas da meia-noite, que não permitem uma avaliação por parte da sociedade, um debate mais aprofundado por parte do parlamento, não são apropriadas tratando de temas assim tão sensíveis”.De fato, a emenda foi gestada perto das 12hs. O projeto, relatado pelo deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), apoiado pelo MPF por ter preservado o espírito das dez medidas, começou a ser apreciado às 23h47. Foi aprovado por 450 votos favoráveis. A manobra, no entanto, começaria logo em seguida. Aos poucos, os parlamentares apresentaram emendas que foram alterando toda a essência do projeto, cuja votação se estendeu até às 4h da madrugada. O líder do PDT, Wewerton Rocha (MA), foi responsável por uma das mais nocivas: o crime de responsabilidade contra magistrados e membros do Ministério Público. O problema, nesse caso, não é estabelecer regras para coibir abusos dos juízes e procuradores. É ter aprovado esta emenda sorrateiramente, sem discussão, e com uma fundamentação que abre brecha para punir qualquer um. Dentre os abusos estão “atuar (…) com motivação político-partidária”, de forma incompatível com o decoro ou, pior ainda, quando os promotores e procuradores propuserem ação civil pública “temerariamente”. A inclusão desta emenda pegou a todos de surpresa, porque o abuso de autoridade já estava sendo debatido em um projeto no Senado. Ao cabo, a emenda de Wewerton Rocha foi aprovada por 313 votos, com posicionamento favorável das grandes legendas: PT, PMDB, PCdoB e PR, dentre outras. DEM e PSDB liberaram suas bancadas para votarem do jeito que quisessem. Enquanto isso, em conversas ao pé do ouvido no plenário da Casa, deputados como Givaldo Carimbão (PHS-AL) demonstravam preocupação zero com a opinião pública: “Não estou nem aí se nas redes sociais vão me esculhambar”. Outro deputado, sapecou em mais um raro momento de sinceridade: “A gente não está preocupado em não ser eleito. Estamos preocupados em não sermos presos”.
O cair da madrugada embalou outros petardos contra o projeto de lei. Os deputados descartaram, por exemplo, a criminalização do enriquecimento ilícito do agente público e um instrumento para facilitar a perda de bens para recuperação de valores fruto de crimes. “Fizeram picadinho da minha proposta”, lamentou o relator Onyx Lorenzoni. Só sobraram duas medidas relevantes: a criminalização do caixa dois, mas com abrandamento da punição de partidos e dirigentes partidários, e o aumento das penas para corrupção. Neste último caso, a pena mínima passa de dois anos para quatro, e a corrupção se torna crime hediondo quando o valor envolvido for superior a dez mil salários mínimos.
DEZ MEDIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO
Propostas originais:1. Aplicação de testes de integridade a agentes públicos
2. Criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos incompatível com seus rendimentos
3. Aumento das penas e crime hediondo para corrupção de altos valores
4. Maior eficiência dos recursos no processo penal, como evitar recursos protelatórios, e mudanças no habeas corpus
5. Maior celeridade nas ações de improbidade administrativa e possibilidade de Ministério Público assinar acordo de leniência nesses casos
6. Mudanças no sistema de prescrição penal.
7. Ajustes nos artigos que tratam das nulidades dos processos penais, dentre eles a possibilidade de uso de prova ilícita
8. Responsabilização dos partidos políticos e criminalização do caixa dois
9. Prisão preventiva para assegurar a devolução do dinheiro desviado
10. Recuperação do lucro derivado do crime
Mãos sujas
No Senado, apesar da manobra para submeter o projeto à votação em regime de urgência, Renan acabou derrotado pelo voto contrário de 44 dos seus pares. Agora, a proposta seguirá a tramitação normal na Casa, tendo que passar pelo crivo das comissões e ser novamente discutido com a sociedade. É nessa nova trincheira que o Ministério Público deposita as suas esperanças. Os procuradores têm repetido quase como um mantra que a maior operação de combate à corrupção no País não é capaz de produzir milagres. Está tratando apenas de um tumor e não vai salvar o Brasil. O problema, de fato, é que o sistema atual é cancerígeno e favorece a quem está habituado a delinqüir. Impunidade, lentidão da Justiça, penas brandas e regras excessivamente favoráveis aos réus compõem o cenário perfeito e aplainam o terreno para que, ao cabo, o crime, sobretudo o do colarinho branco, seja compensador para quem os comete. Foi exatamente para tentar reverter esse quadro que o Ministério Público Federal (MPF) propôs ao Congresso o pacote de dez medidas contra a corrupção. “Temos esperança de que o Senado reconsidere esse projeto aprovado pela Câmara”, afirmou o procurador regional da República Wellington Saraiva.Se referendada pelo Senado, o que seria o pior dos mundos, a desfiguração do projeto anticorrupção, que não poderá jamais levar esse nome, será a materialização da versão brasileira da Operação Mãos Limpas, deflagrada na década de 1990 na Itália. A “Mani Pulite” também detectou um esquema sistêmico de corrupção enraizado nas instituições políticas italianas. A reação da classe política veio a jato: foram aprovadas medidas legislativas destinadas a enfraquecer as investigações e salvar a pele dos políticos criminosos. O primeiro passo foi dado em 1994 com o decreto Biondi, popularmente conhecido como “salva-ladrões”. Proibia a prisão preventiva para crimes contra a administração pública e o sistema financeiro, para os quais se passou a admitir apenas a prisão domiciliar. Nessa época, a Mãos Limpas tinha provocado a prisão de cerca de 350 pessoas por crimes desta natureza, de acordo com artigo do procurador de Justiça Rodrigo Régnier Chemim Guimarães. O estudioso lista uma série de medidas que foram tomadas na Itália no período no sentido de coibir as investigações. Dentre elas, mudanças nas regras processuais que facilitaram a prescrição, a anulação de provas obtidas do exterior e a diminuição das penas para determinados delitos. Aprovou-se até mesmo a suspensão de processos contra presidente da República e dos outros Poderes, mas a legislação foi considerada inconstitucional. Os erros não podem ser repetidos, sob pena de fulminar a Lava Jato. Caberá, agora, aos senadores decidirem se desejam empreender mudanças profundas na maneira de combater a corrupção no Brasil ou entrar para a história como símbolos do retrocesso.
Mudanças feitas no plenário:
1. Testes de integridade continuaram retirados2. Rejeitada a criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos
3. Mantém a corrupção como crime hediondo com punição maior que dez mil salários mínimos
4. Mantidas as mudanças nos embargos e rejeitadas as de habeas corpus
5. Rejeitadas mudanças sobre improbidade, como o acordo de leniência pelo MP
6. Rejeitado artigos que mudavam as regras de prescrição
7. Mantida rejeição do uso da prova ilícita
8. Mantida a criminalização do caixa dois
9. Mantida rejeição da prisão preventiva para evitar a dissipação do produto do crime
10. Rejeitado o instrumento para perda de bens na recuperação de produto do crime
11. Rejeitado o reportante do bem
12. Acordo penal rejeitado
13. Inclui crime de abuso de autoridade para magistrados e membros do MP
14. Inclui punição a investigadores e juízes que violarem prerrogativa de advogados
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