Assim como a ministra do Supremo Tribunal
Federal (STF), Cármen Lúcia, o político abolicionista Joaquim Nabuco se
notabilizou por ser uma figura pública à frente de seu tempo.
Personificou a vanguarda, quando muitos ainda insistiam no atraso.
Separados por mais de um século, eles se entrelaçaram na última semana
pelos seus ideais. Como agora, no Império o Senado também se constituía
numa Casa revisora cujas decisões e propósitos já eram alvo de sérios
questionamentos. Dizia Nabuco: “Para o Senado, a política é uma
distração. A função é outra. Os lutadores desinteressados que ele contém
influem tanto no jogo da instituição como a bandeira de um navio nos
movimentos da máquina”. Na manhã de quarta-feira 25, Carmen, numa de
suas mais brilhantes intervenções na corte, encarnou Nabuco ao puxar o
primeiro voto, na sequência do relatório do colega Teori Zavascki, pela
manutenção na cadeia do senador Delcídio do Amaral (PT-MS). Num recado
direto aos senadores, em especial parlamentares que se escoram no foro
privilegiado para perpetrar crimes de toda a sorte, disparou: “Um aviso
aos navegantes dessas águas turvas de corrupção e iniquidades:
criminosos não passarão a navalha da desfaçatez e da confusão entre
imunidade e impunidade e corrupção. Em nenhuma passagem, a Constituição
Federal permite a impunidade de quem quer que seja. O crime não vencerá a
Justiça”. A ministra foi além: “Houve um momento em que a maioria de
nós brasileiros acreditou que a esperança tinha vencido o medo. Depois,
nos deparamos com a ação penal 470 (do mensalão) e descobrimos que o
cinismo venceu a esperança. E agora o escárnio venceu o cinismo”.
Na semana passada, a política brasileira produziu tal desfaçatez. Num
País em que sempre achamos que já vimos de tudo ainda é possível se
deparar com situações das mais implausíveis graças à ousadia ilimitada
dos nossos políticos. Como poderíamos imaginar que um senador da
República, líder do governo, em pleno exercício do mandado, iria tramar a
fuga pelo ar ou pelo mar de um criminoso confesso preso na Lava Jato? E
que um banqueiro seria acusado de financiar a operação? E que, na mesma
semana, um pecuarista – amigo e dono de acesso livre a um ex-presidente
da República – seria preso sob a suspeita de ser o laranja deste mesmo
ex-presidente? E, para completar, o presidente da Câmara faria
articulações em plena luz do dia para escolher como, quando e quem
deveria conduzir uma investigação contra ele próprio? Realmente, e é
triste constatar, vivemos em meio à esculhambação geral.
O senador e líder do governo Delcídio do Amaral foi preso na
quarta-feira 25 depois de flagrado em tratativas para tirar do País
Nestor Cerveró, que firmou na semana passada um acordo de delação
premiada com o Ministério Público Federal. Há suspeitas de que Delcídio
seja destinatário de repasses ilegais. Seria ao menos US$ 1,5 milhão,
segundo o ex-diretor da Pertrobras adiantou aos procuradores da
República. Isso explicaria a articulação para tentar barrar a delação. A
estratégia discutida por Delcídio envolvia pressionar o Supremo a
libertar Cerveró da prisão. O senador teria procurado vários ministros.
Disse a interlocutores que recorreria até ao vice-presidente da
República, Michel Temer (PMDB-SP), autoridade com trânsito no tribunal.
Nas horas seguintes, foram empreendidos movimentos para tornar a
situação ainda mais inacreditável. O Senado teria de analisar em até 24
horas a decisão do Supremo. As provas, naquele momento, já se mostravam
definitivas. Cabais. Mesmo assim, o Senado se comportou como uma
autêntica casa de tolerância. Também envolvido na Lava Jato, o
presidente Renan Calheiros (PMDB-AL) articulou para que a votação em
plenário fosse secreta, o que aumentaria em muito as chances de Delcídio
ser libertado no mesmo dia.
Durante a sessão, foi desfiado um rosário de impropérios. Em sua
catilinária, o senador Jader Barbalho (PMDB-PA), político outrora
afastado da Presidência da Casa por corrupção na Sudam e que aparece
citado no áudio em que Delcídio articula a fuga de Cerveró, entabulou a
defesa pelo voto fechado. No plenário do Senado, disse que “nenhum
senador precisa ser fiscalizado pela opinião pública”. Outros o
acompanharam. Mas, sob forte pressão da população, em sessão transmitida
ao vivo pela TV Senado para todo o País, Renan foi derrotado duas
vezes: na maneira como seriam proferidos os votos e no mérito da
questão. Ao fim, numa votação aberta, os senadores evitaram o suicídio
institucional. Mais uma vez de olho nos próprios umbigos, afinal estamos
às vésperas de mais um ano eleitoral, eles mantiveram a prisão de
Delcídio por 59 votos favoráveis, 13 contra e uma abstenção. Claro que
não poderia faltar outra situação indigna do Parlamento. Apesar de o PT
ter abandonado Delcídio à própria sorte em nota e da existência de
provas irrefutáveis contra ele, o líder do partido no Senado, Humberto
Costa (PE), orientou a bancada a votar pela soltura do senador petista. A
orientação, embora na contramão dos interesses da sociedade, é mais
coerente do que a nota emitida pela cúpula do PT. O partido faz de tudo
para tentar se desvincular de Delcídio. Nos próximos dias, a Executiva
Nacional da sigla pretende se reunir para deliberar sobre o caso. A
tendência é a de que a expulsão do senador seja discutida. A tentativa
de dissociá-lo do PT constitui-se, mais uma vez, de puro jogo de cena
político. O senador, indiscutivelmente, era um dos principais quadros do
PT. Não por acaso, era líder do governo no Senado e um dos
parlamentares mais próximos da presidente Dilma Rousseff e de Lula. Às
vésperas de sua prisão, Delcídio se reunia semanalmente com o
ex-presidente e teria agendado um encontro com ele no dia seguinte à
detencão. Por isso, sua prisão representa mais uma mácula, entre tantas
outras acumuladas até aqui, na legenda da estrela rubra.
Quando o Senado discutia se endossava ou não a decisão do STF, o País
ainda repercutia a 21ª fase da Lava-Jato, que, na véspera, levara para a
cadeia o pecuarista José Carlos Bumlai, amigo do ex-presidente Lula.
Assim como Marcos Valério no Mensalão, Bumlai é apontado pelos
procuradores da República como um operador do PT no Petrolão. Há
indícios de que o pecuarista possa ter se tornado um laranja do próprio
Lula. A questão é ainda mais grave. A cada operação da PF, os
procuradores reforçam a constatação de que o ex-presidente petista possa
ter sido o elo entre todos os escândalos. Por exemplo, Delcídio foi
quem, ao lado do ex-governador do Mato Grosso do Sul, Zeca do PT,
apresentou o ex-presidente a Bumlai.
De acordo com as investigações da Lava Jato, Bumlai teria articulado
em 2004 um empréstimo, no valor de R$ 12 milhões, junto ao Banco Schahin
para ajudar o PT financeiramente, então com dívidas de campanha. O
empréstimo foi citado na delação premiada de Eduardo Musa, ex-gerente da
Petrobras. Em contrapartida, o grupo Schahin teria sido compensado com
um contrato com a Petrobras, no valor de US$ 1,6 bilhão, para operar o
navio sonda Vitoria 10000. Musa disse ter ouvido essa versão do próprio
Cerveró. A defesa do empresário alega que o emprestimo junto ao Schahin
foi contraído para ser usado em negócios pecuários. Não é o que entendem
as autoridades brasileiras. Em fevereiro deste ano, ISTOÉ teve acesso
com exclusividade a relatório do Banco Central demonstrando que a versão
de Bumlai não pára em pé. O documento afirma que o pecuarista foi
beneficiado com uma operação liberada de forma irregular “sem a
utilização de critérios consistentes e verificáveis”. Para liberar a
bolada, o Schahin burlou normas e incorreu em seis tipos de infrações
diferentes. O documento está anexado ao inquérito da Operação Passe
Livre e reforça denúncia do empresário Marcos Valério, o operador do
mensalão, feita em 2012 ao MPF. Valério afirmou que o pecuarista
intermediou operação para comprar o silêncio do empresário de
transportes Ronan Maria Pinto. O empresário estaria ameaçando envolver o
ex-presidente Lula, e os ex-ministros José Dirceu e Gilberto Carvalho
no assassinato do então prefeito de Santo André Celso Daniel.
Na ocasião, Valério tentava um acordo de delação premiada. Não
obteve. Porém, nos últimos dias, a Receita Federal colheu indícios de
que parte dos valores do empréstimo do Schahin a Bumlai pode mesmo ter
sido direcionada a Ronan. Ele teria adquirido, em 2004, 60% das ações do
Diário do Grande ABC S/A no valor de R$ 6,9 milhões. Para isso,
recorreu a empréstimos e assumiu dívidas de terceiros junto às empresas
das quais era sócio, a Rotedali Serviços e Limpeza Urbana Ltda. e a
Expresso Nova Santo André. Tais dívidas ficaram sem quitação durante
nove anos, conforme revelaram suas declarações. “No contexto, a suspeita
levantada pela Receita é a de que esses empréstimos não teriam sido
reais, mas apenas “teriam servido, em tese, para dissimular a real
origem de recursos utilizados na aquisição das ações”, descreveu o juiz
Sérgio Moro no decreto de prisão de Bumlai. Ao discorrer sobre esta nova
fase da Lava Jato, o procurador Carlos Fernando Lima, da Lava Jato,
afirmou que há indícios de que o ex-ministro José Dirceu e o
ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares atuaram para ajudar na liberação do
empréstimo do Schahin a Bumlai. Em comum, entre estes três personagens,
há o fato de todos terem sido ou serem de alguma forma muito próximos ao
ex-presidente Lula.
Na quinta-feira 26, o petista, cujos amigos tombaram um a um (leia
quadro na pág. 42), foi instado, durante o almoço na sede da CUT, em São
Paulo, a comentar a prisão de Delcídio. Ao que ele respondeu: “Foi uma
grande burrada. Uma coisa de imbecil”. O ex-presidente disse ainda ter
ficado surpreso quando soube dos detalhes da gravação que levou o
senador à cadeia. Para Lula, o senador é um político experiente,
sofisticado, e não poderia ter se deixado gravar por um smartphone de
forma simples, como feito por Bernardo Cerveró, filho do ex-diretor da
Petrobras. Na avaliação do ex-presidente, no momento em que o governo
parecia ter ganhado um bom fôlego, o episódio faz com que a base aliada a
Dilma no Congresso volte a ficar combalida. Ao tomar conhecimento das
críticas de Lula, enquanto prestava depoimento à PF, Delcídio ficou
descontrolado a ponto de interromper a oitiva. Em seguida, passou a
negociar uma delação com a Polícia Federal.
Foi nesse clima surreal que a construtora Andrade Gutierrez resolveu
na quinta-feira 26 também assinar um acordo. Após aceitar pagar a maior
multa da Lava Jato, cerca de R$ 1 bilhão, admitiu o repasse de propinas
em obras da Copa do Mundo, da Petrobras, da usina de Angra 3, Belo Monte
e da Ferrovia Norte-Sul.
O temor do Planalto, agora, é o retorno à baila da agenda do
impeachment. Se aqui estivesse, Joaquim Nabuco certamente repetiria suas
palavras proferidas há pouco mais de um século, em meio às discussões
sobre a abolição da escravatura e o fim da monarquia. Num ambiente de
total esculhambação, “necessitamos de uma reforma de nós mesmos, do
nosso caráter, do nosso patriotismo e do sentimento de responsabilidade
cívica”.
Fotos: Paulo Lisboa/Folhapress; Alan Marques/Folhapress; Luis Macedo/Câmara dos Deputados
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