Decisão do Supremo, baseada em interpretações controver sas da Constituição, avança sobre atribuições do Legislativo, reinicia jogo do impeachment que já estava em anda mento e confere novo fôlego à presidente Dilma Rousseff
Débora Bergamasco e Mel Bleil Gallo
Começou tudo do
zero. Foi como se um árbitro reiniciasse a partida com ela já em
andamento. Em sessão realizada na quinta-feira 17, o STF determinou que
nada do que a Câmara havia deliberado até então sobre o processo de
impeachment da presidente Dilma Rousseff vale. Foi decerto o mais
vigoroso e notório avanço do Judiciário sobre as atribuições do
Legislativo em episódios dessa natureza. Da mesma maneira, as decisões
tomadas pelo colegiado de magistrados contrariaram a liturgia adotada
durante o processo que apeou Fernando Collor do Mello do poder. Agora,
será o Senado e não a Câmara o responsável por dar a palavra final. Oito
dos onze ministros aceitaram a tese do governo segundo a qual dois
terços dos deputados apenas autorizam o andamento do processo. Assim, o
procedimento capaz de gerar o afastamento de Dilma do cargo por 180 dias
só pode ser instaurado mediante aprovação da maioria simples do Senado.
Essa decisão do Supremo, a partir de uma interpretação controversa da
Constituição, representa uma das maiores vitórias políticas de Dilma em
2015, pois o Senado, presidido por Renan Calheiros (PMDB-AL), uma
espécie de militante contra o impeachment, é o foro onde a base
parlamentar sempre se comportou de maneira mais dócil em relação ao
governo.
“O Supremo deu um balão de oxigênio para a
presidente”, reconheceu o ministro Gilmar Mendes ao proferir voto
divergente da maioria. “Vamos dar a cara à tapa. Estamos tomando uma
decisão casuística. Assumamos, então, que estamos manipulando o
processo”, acrescentou Mendes.
Embora ministros do Supremo, como Teori
Zavascki e Luiz Roberto Barroso, durante a sessão de quinta-feira 17,
tenham dito que se orientavam pelo rito estabelecido na era Collor, em
1992 o trâmite foi outro. Há uma tentativa - conveniente ao governo -
de reescrever a história. Todos sabem que o Senado, durante o julgamento
de Collor, não teve o protagonismo que querem que ele exerça agora. Na
ocasião, o pedido de impeachment, aprovado pela Câmara, foi recebido
pelo Senado sem qualquer discussão. As manchetes dos jornais atestam o
procedimento sumário. No dia seguinte à votação na Câmara cujo placar
foi 441 a 38, o jornal o Estado de S.Paulo estampou na primeira página:
“Collor fora”. No olho da reportagem, anunciou: Numa decisão inédita,
deputados aprovam pedido de julgamento do presidente por crime de
responsabilidade. Caberá ao Senado discutir a perda de mandato. Enquanto
isso, Collor ficará afastado do cargo e será substituído por Itamar”.
Segundo o ex-ministro do STF Carlos Velloso, que na ocasião foi relator
de um mandado de segurança impetrado por Collor questionando o andamento
do processo contra ele, a tese aprovada pelo STF na última semana “era
inadmissível naquela época”. “Na Constituição não está escrito que o
Senado pode rever a admissibilidade. Essa é uma atribuição da Câmara.” O
caput do Artigo 86 da Constituição é claro:“Admitida a acusação contra o
Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será
ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas
infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de
responsabilidade”. Representante da Câmara no julgamento do STF, o
deputado Miro Teixeira (Rede-RJ) invocou os dispositivos da Carta Magna.
“A Câmara autoriza e o Senado julga. Não há motivo para refinamento”,
afirmou. Ao comentar o caso, o ex-ministro do STF, Ayres Britto, se
posicionou de forma semelhante. “O STF se equivocou. A Casa do povo
(Câmara) não pode ficar subordinada à Casa dos Estados (Senado)”, disse.
PMDB VIRA ALVO
Enquanto a PF realizava operações na Câmara, em gabinetes de apadrinhados
de Renan e nos escritórios de ministros do PMDB de Dilma,
parlamentares participavam de oração no Senado
A mudança de rota determinada pelo Supremo -
conveniente aos interesses do Planalto - reabre uma perigosa temporada
de rusgas entre o Judiciário e o Legislativo. O simples fato de a Câmara
ser obrigada pelo STF a se reunir outra vez para votar a Comissão
Especial do Impeachment significa um retrocesso no princípio de
separação entre Poderes consagrado pelo iluminista do século XVII, Barão
de Montesquieu. Para o filósofo e escritor francês, o pressuposto para o
Estado democrático seria a autonomia dos Poderes Legislativo, Executivo
e Judiciário. Para ele, é até possível que cada poder, no exercício de
sua competência, controle outro poder e seja pelo outro controlado, mas
sem impedimento do funcionamento alheio ou mesmo invasão da sua área de
atuação. Não há como se exigir do Poder Judiciário que, no exercício
próprio da jurisdição, não interprete a lei. Mas a atividade
interpretativa realizada pelo Poder Judiciário não pode levar à inovação
do ordenamento jurídico nem ao ativismo judicial. “O Supremo não está
contente em julgar e quer legislar”, afirmou Miguel Reale Jr., um dos
signatários do pedido de impeachment de Dilma. “Está sendo praticado um
ativismo de altíssimo grau no STF”, acrescentou o jurista.
O CERCO SE FECHA
PF recolheu celular de Eduardo Cunha e documentos
na residência oficial da Presidência da Câmara
No dia 8 deste mês, a chapa para a Comissão
Especial do Impeachment composta por parlamentares da oposição havia
vencido no voto por 272 a 199. Agora, novas eleições para composição do
colegiado deverão ocorrer somente no ano que vem, após o recesso
parlamentar. Isso dá novo fôlego a Dilma. A decisão da maioria dos
magistrados se baseou no argumento de que a Comissão deve ser
obrigatoriamente composta por integrantes indicados por líderes dos
partidos na Câmara. De acordo com o entendimento do Supremo, a votação
para referendar a chapa indicada pelos líderes agora deverá ser aberta e
não secreta, como ocorreu no início do mês.
MUDANÇA DE RUMO
STF muda rito do impeachment e reabre temporada de rusgas com a Câmara
Logo após o fim da sessão do Supremo, ainda
na noite de quinta 17, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ),
concedeu uma entrevista coletiva. Aos jornalistas, avisou que ainda
tentará reverter as decisões, apelando para os embargos infringentes,
conhecidos como os últimos recursos no STF. Nos bastidores, deputados
avaliam que a decisão se configura novamente numa interferência do
Judiciário sobre o Legislativo, como ocorreu há dois meses quando o rito
estabelecido por Cunha ao impeachment, permitindo um recurso ao
plenário caso a admissibilidade fosse rejeitada, foi anulado pela
primeira vez. O líder da minoria na Casa, Bruno Araújo (PSDB-PE),
lamentou a reviravolta inesperada. “É ruim para a autonomia interna do
Parlamento. Só que esse debate vai se estender e, em hipótese alguma,
vai terminar antes do carnaval, como o governo queria”. “Agora, é
cumprir a decisão do STF. Não sou homem de chorar as mágoas.
O tempo que eu perderia lamentando eu vou
atrás de votos para as minhas teses”, diz Lúcio Vieira Lima (PMDB-BA). O
parlamentar baiano questiona, no entanto, a possibilidade de a chapa
indicada pelos líderes não obter o apoio da maioria da Casa. “Aí, como é
que fica? Fazemos outra eleição até a chapa ser aceita?”. O presidente
da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
faz coro. Para ele, deliberação do STF deixou o processo mais confuso.
“Para cumprir a decisão da Justiça vamos ter de mudar muita coisa na
Câmara. Não vai ter mais nenhuma indicação avulsa? E quando o líder não
tiver apoio da bancada, ele terá de ser destituído?”, indagou o
alagoano. Estas e outras eventuais dúvidas processuais deverão ser
respondidas por meio dos embargos declaratórios apresentados ao STF. Os
recursos podem atrasar ainda mais a instalação da Comissão responsável
por analisar o pedido de impeachment de Dilma.
Na última semana, não apenas o STF deu
motivos para o governo comemorar. Na terça-feira 15, a PF havia cumprido
uma série de mandados de busca e apreensão que atingiu em cheio o
coração do PMDB, partido beneficiário em caso de impedimento da
presidente. Em reação, o partido se disse alvo de uma ação orquestrada
destinada a prejudicá-lo. Foram alvos da PF Eduardo Cunha, os ministros
peemedebistas Celso Pansera (Ciência e Tecnologia) e Henrique Eduardo
Alves (Turismo) e o senador Edison Lobão (PMDB-MA). Janot havia pedido a
mesma diligência na casa do presidente do Senado, Renan Calheiros
(PMDB-AL). Entretanto, Teori rejeitou a solicitação.
Coincidência ou não, logo em seguida, Dilma
conseguiu tirar Renan de cima do muro. Agora, ele é peça fundamental
para o impeachment. No caso, para enterrá-lo. Quem também reforçou a
bancada pró-governo foi o deputado Leonardo Picciani (RJ). O parlamentar
foi reconduzido à liderança do PMDB na Câmara na quinta-feira 17. A
confirmação ocorreu cerca de duas horas depois de Picciani protocolar na
secretaria da Casa um abaixo-assinado com o apoio de 36 dos 69
integrantes da bancada de seu partido. Ele havia sido destituído na
semana anterior, mas conseguiu obter o número necessário de assinaturas
para retornar ao posto. Claro, com o apoio do Planalto. No vale-tudo
para escapar de impeachment, Dilma agora ameaça demitir ministros do
PMDB caso eles se alinhem ao vice Michel Temer. Apesar do cavalo de pau
do STF no rito do impeachment, os movimentos da presidente mostram que o
jogo ainda está totalmente em aberto.
Fotos: REUTERS/Ueslei Marcelino/Folhapress;
José Cruz/Agência Brasil; ANDRE COELHO/Agência O Globo; Jorge
William/Agência O Globo
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