Os bastidores da manobra destinada a preservar os direitos políticos da presidente deposta Dilma Rousseff, numa ação que golpeou a Constituição
No petismo, um provérbio popular se impõe de maneira
eloqüente: nada é tão ruim que não possa piorar. O desfecho do
impeachment de Dilma Rousseff foi a tradução dessa máxima. O processo
teve em seu último capítulo uma trama sorrateira engendrada nos
subterrâneos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Como a
deposição de Dilma já eram favas contadas, alguns dos principais
protagonistas desse enredo se juntaram com o intuito de evitar que a
petista ficasse também inabilitada para exercer cargos públicos. Para
atingir esse objetivo, toparam pisotear o claríssimo artigo 52 da
Constituição Federal. O parágrafo único escrito na Carta Magna demonstra
a óbvia indissociação das penas. Diz o texto: “condenação (…) à perda
do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função
pública”. Mesmo assim, na quarta-feira 31, o Senado, depois de aprovar o
impeachment de Dilma por 61 votos a 20, pondo fim a 13 anos de PT no
poder, decidiu por 42 a 36 que a ex-presidente pode ser nomeada para
qualquer cargo público no País, mesmo depois de deposta.
O início da articulação
Por mais estapafúrdia que parecesse, a ideia de interpretar ao bel prazer um texto constitucional inapelável começou a ser gestada embrionariamente entre os petistas que ladeiam Dilma há cerca de 20 dias, conforme revelou em primeira mão a coluna Brasil Confidencial, da ISTOÉ, no dia 19 de agosto. A defesa de Dilma vinha examinando o caso do ex-presidente Fernando Collor que, em 1992, renunciou pouco antes da votação no Senado que cassaria seu mandato. Na ocasião, ele arriscou um pretenso golpe de esperteza para evitar perder seus direitos políticos, mas a jogada falhou e os parlamentares decidiram, mesmo assim, excluí-lo do serviço federal por oito anos. Dilma, de maneira distinta, repetiu o lance e teve outra sorte.
O início da articulação
Por mais estapafúrdia que parecesse, a ideia de interpretar ao bel prazer um texto constitucional inapelável começou a ser gestada embrionariamente entre os petistas que ladeiam Dilma há cerca de 20 dias, conforme revelou em primeira mão a coluna Brasil Confidencial, da ISTOÉ, no dia 19 de agosto. A defesa de Dilma vinha examinando o caso do ex-presidente Fernando Collor que, em 1992, renunciou pouco antes da votação no Senado que cassaria seu mandato. Na ocasião, ele arriscou um pretenso golpe de esperteza para evitar perder seus direitos políticos, mas a jogada falhou e os parlamentares decidiram, mesmo assim, excluí-lo do serviço federal por oito anos. Dilma, de maneira distinta, repetiu o lance e teve outra sorte.
“O primeiro passo foi dado pelo senador
petista Lindbergh Farias, ao consultar a
assessoria jurídica de Ricardo Lewandowski”
petista Lindbergh Farias, ao consultar a
assessoria jurídica de Ricardo Lewandowski”
Há cerca de duas semanas, o senador
Lindbergh Farias (PT-RJ), fazendo papel de emissário do grupo, procurou a
assessoria jurídica do presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo
Lewandowski, juiz que conduziu a etapa final do impeachment. Nas
conversas com o Supremo, foi sinalizado ao senador que, sim, haveria
espaço para que a defesa apresentasse a questão de ordem para que fossem
realizadas duas votações separadas: uma para a perda do mandato de
Dilma e outra para sua inabilitação da função pública. Lewandowski e
Lula já haviam conversado a respeito. Com esse aval Supremo, Lindbergh,
voltou ao ninho petista com a boa-nova. Iniciava-se ali uma pesada e
discretíssima negociação de bastidor.
Após o aval do Supremo, o próximo e
fundamental alvo de cooptação foi o presidente do Senado, Renan
Calheiros (PMDB-AL). A tropa dilmista sabia que sem a adesão do alagoano
a estratégia poderia soçobrar devido à sua forte influência sobre
congressistas. Apesar de querer pular do naufrágio petista para salvar a
própria pele, Renan calculou que a ideia de fatiar em duas as votações
abriria um precedente que poderia vir a beneficiá-lo no futuro.
Pendurado em investigações da Lava Jato, Renan valeria-se da precedência
aberta nesse caso para garantir seus direitos políticos. E não só a
ele, como também seu rebento Renan Filho, governador de Alagoas. Com
base nessa espécie de “seguro de vida pública”, o presidente do Senado
ajudou a articular a artimanha. Difícil encontrar o coração de um
parlamentar que não se enterneça diante da possibilidade de levar
vantagem numa situação.
Para reforçar o processo de convencimento
dos senadores ao que foi chamado nos corredores do Congresso de
“impicha, mas não mata”, o ex-presidente Lula também exerceu papel
fundamental. Em São Paulo e em Brasília, disparou telefonemas para
alguns parlamentares e encontrou-se com outros.
Coube à senadora Kátia Abreu (PMDB-TO)
atuar no corpo a corpo com os colegas. A ruralista que virou amiga de
Dilma foi destacada também para proferir um discurso emotivo. A tática
foi discutida e supervisionada pela própria presidente Dilma. Juntas,
combinaram o tom. Na tribuna, disse: “A presidente Dilma me autorizou a
dizer que já fez as contas de sua aposentadoria e, pelo fator
previdenciário (…), ela já se aposentaria com em torno de R$ 5 mil.
Então, ela precisa continuar trabalhando para suprir as suas
necessidades.” O argumento pode até ter sensibilizado os congressistas,
mas certamente não deve ter feito muito sentido entre os quase 12
milhões de brasileiros desempregados ou pensionistas que recebem um
salário mínimo.
Por trás da ideia de garantir um emprego
para a ex-presidente, o PT teve um outro objetivo muito menos altruísta.
Eles acreditam que se Dilma perdesse os direitos políticos, a ação que
corre no Superior Tribunal Eleitoral e que investiga a chapa Dilma/Temer
perderia o objeto, podendo ser extinto. Isso significaria imensa
tranquilidade para o presidente Michel Temer poder governar sem o risco
iminente de ter sua chapa cassada pelo TSE. Embora o presidente acredite
e haja farta jurisprudência no TSE para a tese da separação das contas
de campanha, seria um alívio muito bem-vindo enterrar essa história de
uma vez por todas. O PT não quis entregar isso de bandeja.
Extravagância jurídica
Ao se dar conta que Lewandowski cometeria a
extravagância jurídica, o Palácio do Planalto tentou correr atrás do
prejuízo, mas foi tarde demais. A reação inflamada do Palácio do governo
e de aliados foi imediata. Temer teve que entrar pessoalmente em campo
para apagar o incêndio junto a lideranças do DEM e do PSDB. O presidente
temia a precipitação de uma eventual ruptura na base aliada, após
senadores falarem em “traição” e uma “grande crise”. Um dos primeiros a
receber o telefonema de Temer foi o presidente nacional do PSDB, Aécio
Neves. Segundo o tucano, Temer disse ter sido pego de surpresa com a
decisão e, no telefonema, afirmou que o próprio governo iria questionar a
votação no Supremo Tribunal Federal (STF). “A presidente Dilma ter ou
não ter direitos políticos pra mim hoje é irrelevante. O que me preocupa
é o comportamento do PMDB”, criticou Aécio. “Até que ponto o governo
será leal a esta agenda amanhã, nessas votações duras e difíceis, onde
as manifestações da oposição serão muito radicalizadas, isso só quem
pode responder é o PMDB e o presidente Michel Temer”, provocou o tucano à
ISTOÉ. Na quinta-feira 1, o PSDB, ao lado do DEM e do PPS, decidiram
recorrer ao STF para tornar Dilma inelegível. Os dirigentes tucanos
estavam em dúvida sobre se judicializavam ou não o resultado final do
processo de impeachment com receio de que uma disputa na Justiça pudesse
abrir espaço para uma eventual anulação de todo o julgamento que
afastou Dilma definitivamente da Presidência da República. Em conversas
com advogados do partido, no entanto, os caciques tucanos decidiram
protocolar um mandado de segurança.
No fim da última semana, juristas saíram a
campo estupefatos com a interpretação do ministro Ricardo Lewandowski e o
acordão tramado nos bastidores. O decano do Supremo Tribunal Federal,
Celso de Mello, lembrou na quarta-feira 31, logo após a decisão, de como
foi seu voto quando o assunto do ex-presidente Collor chegou à Suprema
Corte, por meio de um mandado de segurança tentando anular a decisão do
Senado, que cassou os direitos políticos do alagoano em 1992. “O meu
voto foi no sentido de que o parágrafo único do artigo 52 da
Constituição da República compõe uma estrutura unitária incindível,
indecomponível, de tal modo que imposta a sanção destitutória
consistente da remoção do presidente da República a inabilitação
temporária por oito anos para o exercício de qualquer outra função
pública ou eletiva representa uma consequência natural, um efeito
necessário da manifestação condenatória do Senado Federal.” O presidente
do TSE, Gilmar Mendes, também ministro do Supremo, classificou a
decisão como “bizarra”. E continuou: “Vejam vocês como isso é ilógico:
se as penas são autônomas, o Senado poderia ter aplicado à ex-presidente
Dilma Rousseff a pena de inabilitação, mantendo-a no cargo. Então,
veja, não passa na prova dos 9 do jardim de infância do direito
constitucional. É, realmente, do ponto de vista da solução jurídica,
extravagante”.
O professor de Direito Constitucional da
USP Dircêo Torrecillas Ramos foi peremptório: “O texto da Constituição é
claro. O presidente impedido deve perder o cargo, com inabilitação para
cargos públicos por oito anos. O presidente do STF não deveria ter
aceito o destaque para a votação em separado de início. Essa votação foi
inconstitucional”.
O advogado Julio César Martins Casarin
também recorreu ao STF pedindo a suspensão do separação da votação .
Casarin escreveu: “A Constituição foi rasgada. Primeiramente, o destaque
foi inconstitucional, pois a Constituição Federal coloca como
decorrência da cassação do mandato a perda dos direitos políticos. A
Constituição não permite interpretação quanto à dissociação da perda do
cargo em relação à inabilitação por oito anos para o exercício da função
pública”. Ou seja, ao fim e ao cabo, o verdadeiro golpe foi desferido
por aqueles que, durante meses a fio, cinicamente o alardearam.
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