Texto aprovado pelo Senado ‘reaviva’ lei da ditadura que prevê tribunal exclusivo para crimes em ações
De acordo com a nova lei, crimes cometidos por
militares contra civis não serão mais julgados pelo Tribunal do Júri em
casos que envolvam ações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), como
quando governadores solicitam o envio de tropas do Exército, da Marinha e
da Aeronáutica para o controle de situações emergenciais. Militares
também serão julgados pelos seus pares nos seguintes casos: ações no
cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo presidente
da República (ou pelo ministro da Defesa); em ações que envolvam a
segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não
sejam de guerra; em atividades de natureza militar, operação de paz ou
de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com a
Constituição, o Código Brasileiro de Aeronáutica ou o Código Eleitoral.
Sem salvo-condutoRessalva importante: se o militar cometer um homicídio intencional em uma situação fora do trabalho, será julgado como outro cidadão, pela Justiça comum.
A discussão do projeto gerou polêmica, especialmente pelo fato de não haver um prazo para vigência da medida e devido à situação atual do Rio de Janeiro, onde militares atuam em apoio aos policiais em comunidades, como foi na Favela da Rocinha. "Eu acho que é um precedente gravíssimo. A preocupação minha, neste momento, sabe qual é? Os moradores das comunidades. Porque uma coisa que preserva, a gente está falando de homicídio doloso. A única coisa que uma mãe pode ter nesse momento é a capacidade de levar a julgamento quem cometeu um crime doloso", criticou o líder do PT, senador Lindbergh Faria (RJ), que votou contra na sessão de quarta-feira.
Julgamento de 'entes do Estado'
O
projeto foi relatado pelo senador Pedro Chaves (PSC-MS), que defendeu a
aprovação. "O Tribunal do Júri visa a permitir que cidadãos julguem
seus pares, ou seja, outros cidadãos. Militares das Forças Armadas no
exercício de sua missão não estão agindo como cidadãos, mas, sim, como o
próprio Estado. A força máxima deste deve ser julgada por Justiça
Militar especializada", argumentou, no texto.
O senador Romário (PSB-RJ), que votou a favor do
projeto, se posicionou em nota. "Votei a favor por compreender que as
Forças Armadas estão, cada vez mais, presentes no cenário nacional,
atuando junto à sociedade. O tribunal militar é especializado e tem
conhecimento específico para julgar ações que ocorreram nas operações
específicas."
Para o advogado Marcelo Knopfelmacher, que
representou o Tribunal de Justiça Militar, a lei é extremamente
oportuna, "porque conferirá maior garantia às Forças Armadas em
operações de GLO". "O militar será julgado pela Justiça Militar dentre
os princípios de disciplina e hierarquia que norteiam essa Justiça
especializada e que por sua expressa previsão constitucional não pode
ser taxada de corporativista."VIVA VOZ
'Essa lei é uma licença para matar', diz Gabriel Elias
"A Justiça Militar não tem autonomia em relação às Forças Armadas, os ministros dessa Corte são militares na ativa. Os parlamentares estão se apoiando em lógica de populismo penal para agradar a um desejo de segurança da população. Um dos avanços que tivemos na redemocratização foi a atuação da Justiça Militar para casos excepcionais, mas essa lei volta ao passado e naturaliza a ação das Forças Armadas contra a população. O projeto naturaliza a ação das Forças Armadas contra a população. Para os governadores, é fácil adotar isso. Sabem que não funciona, que é uma medida mais publicitária do que efetiva".
'Justiça Militar foi ineficiente', diz João Tancredo
"Isso
tudo é um grande retrocesso. Defendemos que um julgamento de qualquer
pessoa seja realizado pela sociedade; se alguém comete um crime, ele vai
para o Tribunal do Júri. Essas exceções que os militares na ativa sejam
julgados por conselho de Justiça Militar, nós já experimentamos na
ditadura. Ela se mostrou ineficiente, não pelas absolvições, mas porque o
julgamento acontece pelos seus pares, ficando muito corporativo. Não
defendo que um senador seja julgado pelo seus pares caso ele cometa um
crime. Essas exceções nunca são boas para a democracia. Por que se deve
criar mecanismos e justiça diferentes para pessoas que devem ser
tratadas como iguais? Isso que é fundamental de se entender. Nossa
experiência dessa lei na ditadura foi muito reacionária, conservadora,
que acabava protegendo os militares. Um grande atraso é o que ocorre com
esse projeto".
'Foro privilegiado para violações', diz Renata Neder
"O
que está em jogo são os homicídios dolosos e violações de direitos
humanos cometidos pelos agentes das Forças Armadas. A afirmação, por
parte daqueles que defenderam a proposta, de que a lei atual limita ou
inibe a atuação dos militares cria cortina de fumaça sobre a inadequação
do uso das Forças Armadas na redução da violência. A garantia de que
violações cometidas pelos militares serão tratadas em 'foro
privilegiado' pode estimular as práticas de execuções extrajudiciais já
tão comuns nas favelas e periferias brasileiras. Ao aprovar essa
proposta, o Congresso está retrocedendo. Historicamente, a presença das
Forças Armadas e da Força Nacional no Rio de Janeiro resultou em graves
violações de direitos humanos. Dois exemplos: em junho de 2007,
intervenção policial com o apoio das Forças Nacionais no Alemão resultou
em 19 mortes, algumas com forte evidência de execuções extrajudiciais.
Em junho de 2008, enquanto o Exército realizava policiamento na
Providência, três soldados foram responsáveis pela morte de três jovens,
entregues pelos militares a criminosos.
'Uma justiça muito mais rígida', diz Paulo Storani
"A
aprovação do projeto garante aos militares das Forças Armadas foro
privilegiado da instituição à qual pertencem. Não que vá ser de maior ou
menor grau, a sociedade tem a impressão errada de achar que a Justiça
Militar vai ser corporativista. Pelo contrário; ela é muito mais rígida
do que o Código Penal nos cumprimentos de pena. Para o militar, será
ruim ser julgado pela Justiça Militar, mais benefícios teria se fosse
julgado pela comum".
'Por que tanto medo dos civis?', diz Ignácio Cano
"É
lamentável! Desfaz uma mudança da Constituição, significa que as
atuações dos militares na esfera da segurança pública serão julgadas
conforme critérios militares. Se o Estado acha que os militares podem
agir na segurança pública, que não é a sua função, eles deveriam ser
julgados por essa mesma esfera. É uma contradição para quem afirma que
os militares podem ou devem agir na segurança pública que eles não se
sintam capazes de serem julgados por tais critérios. É um retrocesso
para a Nação, é uma época de incertezas quanto a essa separação do que
são funções militares e do que são funções civis. A jurisdição militar
deveria existir somente para os delitos militares, como deserção e
outros. Todo delito que existe no Código Civil deve ser julgado pelo
mesmo. É interessante pensar o porquê deles estarem com tanto medo de
serem julgados por um tribunal civil".
'Não se pode criar outorga de guerra', diz Marcos Espínola
"O
principio da igualdade diz que todos são iguais perante a lei.
Militares não podem ficar descobertos, porém não podemos criar uma
outorga de guerra, a não ser que o Estado aceite que nós estamos em
guerra, reconhecendo o poder paralelo, que são os narcoguerrilheiros.
Essa imunidade aprovada não é recomendável, deve se continuar como a
legislação está. A Constituição diz que crimes praticados contra a vida
serão julgados pela Justiça comum. Isso fere garantias do cidadão comum
que está sob a mira do fuzil militar. Fere a Constituição, fere a
democracia, fere a igualdade entre os poderes. Ninguém está acima da
lei."
Lei tinha data de validade
Como
foi um projeto elaborado no ano passado, por ocasião dos Jogos
Olímpicos, parlamentares questionaram o fato de a previsão de vigência
da futura lei ser somente até 31 de dezembro de 2016. Os senadores que
defendem a matéria, porém, afirmaram haver compromisso de o presidente
Temer vetar o trecho. A possibilidade de prorrogar a autorização para
que a Justiça Militar atue nesses casos de forma "infindável" provocou
reações.Caso haja a sanção pelo presidente, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão deve enviar à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, parecer solicitando o questionamento da constitucionalidade do texto junto ao Supremo. "O entendimento histórico do STF é que a competência da Justiça Militar está restrita a crimes tipicamente militares, na caserna. O projeto estende para crimes ocorridos no exercício ostensivo, e o Supremo entende que essa é uma atividade de segurança pública", defende a procuradora Deborah Duprat.
Reportagem do estagiário Matheus Santana, sob supervisão de Eduardo Pierre
Nenhum comentário:
Postar um comentário