Ao assinar decreto facilitando o acesso da população às armas de fogo — por enquanto, apenas para a posse em casa e em empresas —, Bolsonaro restitui o direito dos cidadãos de decidir como se defender. A medida, porém, por si só pode não ser suficiente para conter a criminalidade
Ainda que seja controversa a argumentação do governo de que o cidadão de posse de uma arma tem melhores condições de proteger sua propriedade e sua família da violência, Bolsonaro tem razão ao afirmar que esse era um desejo da sociedade que até então se ignorava. O Estatuto do Desarmamento previu um referendo, realizado em 2005, que perguntou à população se a comercialização de armas de fogo e munições deveria ou não ser vetada. E, embora a intenção do governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva fosse claramente que a consulta confirmasse a proibição, a população a rechaçou. “Como o povo soberanamente decidiu por ocasião do referendo de 2005, para lhes garantir esse legítimo direito à defesa, eu, como presidente, vou usar esta arma”, disse Bolsonaro, mostrando a caneta esferográfica ao assinar o decreto.
Confiança na boa fé dos cidadãos
Antes da nova regulamentação, a lei estabelecia que um cidadão poderia ter uma arma caso atestasse a sua “necessidade”. A justificativa, então, era verificada pela Polícia Federal, que autorizava ou não a posse.
A lei permite que a pessoa tenha até quatro armas. O prazo de registro do armamento, antes de cinco anos, passou para dez anos. Para pessoas com filhos (crianças ou adolescentes) e que convivam em casa com portadores de deficiência mental, será preciso declarar que têm um cofre ou algum lugar seguro para guardar a arma.
Além disso, o decreto também institui a boa fé no ato do pedido ao acesso à arma. Em linhas gerais: o cidadão não precisará mais provar que aquilo que ele alega é verdade. Se passar a valer como regra geral, poderá ser um avanço importante. Em democracias mais evoluídas, como os Estados Unidos, esse princípio diminui a burocracia e a necessidade de documentação para provar o que se declara. Trata-se de um passo relevante rumo ao desmantelamento da cultura cartorial brasileira.
Se alguém for flagrado mentindo na declaração estará sujeito à pena de um a dois anos de prisão, mais multa. “Temos, sim, uma vitória. Apenas estamos determinando o que já estava previsto no Estatuto do Desarmamento. Simples assim”, comemorou o deputado Alberto Fraga (DEM-DF), atual líder da Bancada da Bala no Congresso. Especialistas em segurança pública preocupam-se, porém, com o fato de que a instituição do princípio da boa fé se inicie por um tema tão delicado quanto a posse de armas de fogo. Nenhum integrante de facção que ainda não tenha ficha suja vai se declarar criminoso diante de um Policial Federal. E não há a garantia de que não venha a usar um parente ou amigo sem passagem na polícia para adquirir armas para ele.
No campo bolsonarista há também aqueles que consideram o decreto muito tímido (leia entrevista abaixo). Integrantes da Bancada da Bala já discutiam na quarta-feira estabelecer em lei uma redução do limite de idade de 25 para 21 anos. E esperam poder aprovar também maior flexibilização para o porte, ou seja, a possibilidade dos cidadãos sairem às ruas armados. O aumento no número de armas nas ruas, porém, tem o potencial de desagradar outra base de apoio a Bolsonaro: a polícia, que enfrentaria um aumento no risco na abordagem de suspeitos. “O porte tem que ser mais restrito”, diz Flávio Werneck, presidente do Sindicato dos Policiais do Distrito Federal.
O que o senhor achou do novo decreto que flexibiliza a posse de armas?
Foi tímido. Não atingiu a expectativa. As pessoas queriam mudanças mais profundas. Não entramos na questão do porte de armas, ficando só na posse. Foi uma decepção.
Qual o problema com a nova lei?
O Estatuto do Desarmamento descrevia que o cidadão, para comprar uma arma, precisava declarar a efetiva necessidade. Bolsonaro poderia ter acabado com a necessidade dessa comprovação, que é declaratória, mediante decreto.
Bolsonaro poderia ter estabelecido regras mais objetivas. A taxa de homicídios acima de 10 por 100 mil habitantes deveria ser critério para porte, em vez de apenas posse. É o que muita gente esperava. Na maioria das vezes, os homicídios não ocorrem dentro de casa, mas nas ruas, onde o cidadão está mais vulnerável. Sem porte, o cidadão que vive em um ambiente violento continuará ameaçado. Esse critério deveria ser modificado.
A permissão para civis usarem calibres mais potentes era esperada?
Sim. Seria possível por meio de um simples decreto. Mas seria necessário negociar com o Exército, que cuida disso desde os tempos de Getúlio Vargas. Se levarmos em conta que criminosos não têm limitação de calibre, não vejo razão para o cidadão tê-la. Matar, todos os calibres matam. Só que usar um calibre “anêmico” em situação de legítima defesa reduz a chance de parar um criminoso antes que ele atire.
O fim do Estatuto do Desarmamento terá novos capítulos?
A discussão está longe de acabar. O presidente cumpriu uma promessa de campanha, mas jogou para o Congresso um tema incendiário que deve se acirrar. A sensação é de que não foi feito o suficiente.
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