O grito silencioso do cadáver de Ayslan Kurdi em uma praia turca fez o mundo despertar para a tragédia humanitária dos refugiados que agora chegam à Europa. Para que isso não se repita é preciso agir e não se esquecer que somos todos imigrantes
Mariana Queiroz Barboza (mariana.barboza@istoe.com.br)
A cena é
chocante. O menino, de apenas três anos, rosto enfiado na areia, inerte
ao vai e vem das ondas. Está vestido como qualquer menino de três anos
cuidado com o carinho de mãe zelosa. Camiseta vermelha, calça jeans que
mal lhe cobre os tornozelos e singelos sapatos azuis. Está morto. Assim
como mortos estão seu irmão e sua mãe (leia matéria à pág. 64). Talvez
seja pelo sapato azul, pela pele clara ou só pelo olhar desolado do
guarda que o observa, mas a imagem desse pequeno cadáver fez o mundo
finalmente acordar para o drama de centenas de milhares de pessoas que
têm se jogado de forma desesperada nas águas do Mediterrâneo neste verão
europeu. Só nos últimos dois anos, meio milhão de pessoas se
aventuraram em perigosas viagens para fugir da guerra, da fome, do
horror que assola o Oriente Médio e o Norte da África. Mais de cinco mil
deles tiveram o mesmo destino que Aylan Kurdi, o jovem sírio que se
transformou no símbolo desta que é a maior crise migratória na Europa
desde a Segunda Guerra Mundial.
Até a manhã da quarta-feira 2, quando o
corpo de Kurdi foi dar na praia de Bodrum, na Turquia, os líderes
europeus estavam mais preocupados em transferir a responsabilidade do
problema do que encontrar solução para o destino de uma população em
movimento que só faz crescer. Pareciam, todos eles, ter se esquecido do
passado recente vivido pela própria Europa. Diante do drama de famílias
inteiras enfrentando as águas do Mediterrâneo, europeus do Sul e do
Norte, do Leste e do Oeste, não conseguiam lembrar-se que do mesmo solo
que habitam saíram dezenas de milhões de pessoas em direção ao Novo
Mundo há pouco mais de um século. Até a imagem icônica do pequeno
cadáver de Aylan Kurdi gritar com a força do horror, a Europa e o mundo
pareciam ter se esquecido de que todos somos imigrantes.
É uma crise que só cresce. De janeiro a
agosto, mais de 350 mil novos migrantes chegaram à Europa, 25% a mais
que todo o ano passado. Para a chanceler alemã, Angela Merkel, a crise
não é temporária. “Nós estamos diante de um desafio nacional que será
central não apenas por dias ou meses, mas por um longo período de
tempo”, disse. Está marcada para 14 de setembro uma reunião das
autoridades europeias para tentar organizar uma resposta à altura do
desafio. Mas o embate ideológico será dos mais duros que o continente já
viu. Enquanto nações como a Espanha aceitaram receber mais refugiados
do que o previsto para 2015 e o primeiro-ministro britânico, David
Cameron, que anteriormente havia dito que receber “mais e mais” pessoas
não seria a resposta para a crise, mudou o discurso, outros líderes
seguem relutantes. Na quinta-feira 3, o premiê húngaro, Viktor Orban, de
centro-direita, disse que esse era um “problema alemão”.
A falta de solidariedade expressa por
pessoas como Orban espanta por vir justamente de um continente
responsável por grandes migrações em massa no passado. Ao longo do
século 19 e início do 20, mais de 60 milhões de europeus migraram para
reconstruir a vida nas Américas, inclusive no Brasil. Segundo o governo
americano, entre 1820 e 1910, só os Estados Unidos acolheram mais de 25
milhões de europeus, cerca de 3 milhões apenas do antigo Império
Austro-Húngaro, dois dos países que hoje são mais linha-dura com os
estrangeiros. O Brasil, por sua vez, recebeu quase 5 milhões de europeus
nesse período. Eram momentos distintos, é verdade, mas não raro os
imigrantes que deixavam a Europa fugiam também de perseguições, da fome e
da guerra.
Diante da crise atual, o governo alemão, o
mesmo que há poucas semanas pressionou Atenas impiedosamente por mais
austeridade, mudou as regras para acolher os mais vulneráveis. Sob a
Convenção de Dublin, os refugiados devem pedir asilo ao primeiro país
europeu a que chegam – na maior parte das vezes, Itália, Hungria e
Grécia (essa mergulhada em sua própria crise econômica e política). Mas,
com as novas regras, os sírios agora podem pedir asilo diretamente para
Berlim. Ainda assim, Merkel alertou que, se os refugiados não forem
distribuídos de forma justa entre os países-membro do bloco europeu, de
acordo com o tamanho de sua população e economia, a livre circulação de
pessoas garantida sob o Acordo de Schengen estaria ameaçada.
“A União Europeia não prestou atenção
suficiente a todos esses sírios, em particular, que tiveram que deixar
suas casas e foram acolhidos por Jordânia, Líbano e Turquia”, disse à
ISTOÉ o historiador Demetrios Papademetriou, presidente do Instituto
para Política Migratória na Europa, de Bruxelas. “O que aconteceu, no
último ano, é que não só a situação na Síria piorou, como também as
condições nos campos de refugiados se deterioraram.”
Mas se os governos hesitam em agir, os
cidadãos europeus começam a se organizar voluntariamente. Um grupo de
alemães, por exemplo, criou uma espécie de Airbnb, um site de locação de
imóveis e cômodos, para dividir apartamentos com migrantes de diversos
países e mais de 10 mil islandeses se reuniram no Facebook para oferecer
suas casas a refugiados sírios. O bilionário egípcio Naguib Sawiris se
ofereceu para comprar uma ilha na Grécia ou na Itália para receber,
ainda que temporariamente, os refugiados sírios.
Essa é, afinal, uma crise humanitária. Há
ao menos dois grupos tentando chegar à Europa. De um lado, são sírios,
afegãos, iraquianos, curdos e africanos de diversas nacionalidades em
busca de segurança. Do outro lado, estão os migrantes econômicos, que
mudam de país na esperança de melhorar de vida, empreender, estudar ou
conseguir um emprego melhor. Nos dois casos, é o desespero que os move.
INIMIGOS
Os países europeus se esquecem de seu passado e tentam
de toda forma manter os imigrantes longe de suas fronteiras
E diante do desespero, nada parece impedir
que estas pessoas alcancem seu principal objetivo: uma vida digna. A
Hungria, quando se viu no centro do movimento migratório, decidiu
impedir a entrada de todos e construiu um muro de arame farpado ao sul
do país, na fronteira com a Sérvia.
Para Joel Millman, porta-voz da Organização
Internacional para a Migração, de Genebra, os muros só funcionam como
subsídio para traficantes e contrabandistas. “Isso significa que vai
custar mais caro para entrar naquele país, não que as pessoas vão deixar
de atravessar a fronteira”, disse à ISTOÉ. “A crise acontece não só por
causa da quantidade de pessoas, mas porque o sistema de proteção e
segurança não funciona”, afirma Irina Molodikova, pesquisadora de
migração na Universidade da Europa Central, de Budapeste.
A verdade incômoda é que a crise de agora é
resultado direto da crescente instabilidade no Oriente Médio, causada
em grande parte pelo próprio Ocidente. A desastrada invasão americana ao
Iraque, com o apoio da Inglaterra e de uma série de países europeus,
desestabilizou de maneira profunda a correlação de forças na região e
abriu espaço para grupos islâmicos ultra-radicais. O Estado Islâmico, em
última análise, é exatamente fruto desse novo cenário. Seguidores de
uma linha do islamismo sunita defendida pela Arábia Saudita e por vários
países do Golfo, o grupo surgiu no vácuo de poder e liderança que se
abriu no Iraque. Hoje uma parte considerável dos migrantes que chega à
Europa foge da barbárie sem fim dos radicais sunitas, exatamente como a
família do pequeno Aylan Kurdi.
E que não se enganem os europeus e o mundo.
Mais e mais imagens trágicas como a do corpo desfalecido do pequeno
menino sírio irão surgir nas praias do Mediterrâneo ou nas linhas
férreas dos Bálcãs nos próximos meses. Sem sinal de arrefecimento nas
crises no Oriente Médio e no Norte da África, mais e mais homens,
mulheres e crianças desesperadas irão jogar-se ao mar para tentar
sobreviver, ainda que como mendigos em uma estação de trem de um país
europeu periférico, como a Hungria. Este é um problema global. E o mundo
precisa se unir para resolvê-lo, como já o fez antes em grandes crises
migratórias do passado. Afinal de contas, de uma forma ou de outra,
somos todos imigrantes.
Fotos: Nilufer Demir/AFP, ATTILA
KISBENEDEK, ATTILA KISBENEDEK - AFP, GEORGI LICOVSKI/EPA; ISTVAN
BIELIK/AFP, ACHILLEAS ZAVALLIS -AFP
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