Durante visita histórica a Cuba e aos Estados Unidos, papa arrasta multidões, fala de temas indigestos, incomoda os cristãos conservadores e tenta reconquistar os católicos americanos
Débora Crivellaro (debora@istoe.com.br)
A palavra
pontífice tem origem no latim e significa “aquele que faz pontes”.
Nunca um título caiu tão bem para um papa quanto para o argentino
Francisco, 78 anos. Em sua mais aguardada viagem nestes movimentados
dezoito meses de pontificado, o líder máximo da Igreja Católica selou a
reconciliação de Cuba e Estados Unidos, costurada durante meses por ele
próprio, numa visita histórica a esses dois países. Desde que pisou em
Havana, no sábado 19, Jorge Mario Bergoglio tem colecionado momentos
carregados de simbologia, como a ida ao Congresso americano na
quinta-feira 24, e lançado discussões por vezes incômodas para alguns de
seus milhões de interlocutores. Falou sobre liberdade em Cuba. E sobre o
direito dos imigrantes, a abolição da pena de morte, a degradação do
meio ambiente, contra o comércio de armas, as guerras e o aborto nos
Estados Unidos. Mas sempre sob um manto conciliador. “O mundo precisa de
reconciliação, principalmente num momento de 3ª. Guerra Mundial em
etapas como a que estamos vivendo”, disse. Mas engana-se quem lê essa
visita papal como uma missão política – apesar de Francisco ter se
tornado sim um dos maiores líderes do cenário mundial. Os gestos do
latino-americano devem ser interpretados nas entrelinhas. “A viagem dele
é pastoral, mas a fé não vem separada da realidade”, afirma o teólogo
Antonio Manzatto. “Estando nos Estados Unidos, um lugar de tamanha
importância para os mais pobres, ele tem de falar de refugiados, de
sustentabilidade...Não vai falar de anjos ou a cor do véu de Nossa
Senhora.”
HISTÓRIA
Quinta-feira 24 de agosto, pela primeira um papa discursa no Congresso
americano: 50 minutos de fala e 30 interrupções para aplausos
Diante de uma Nova York, a capital mundial
do individualismo, aquecida e entregue ao carisma e à simplicidade de
Jorge Mario Bergoglio, fica evidente que o argentino está mudando a
narrativa do papado. Desde o começo de seu pontificado, houve uma
tendência de rotular o antigo cardeal de Buenos Aires como um
reformador, alguém que vinha para fazer vibrar a paralisada Igreja
Católica. Certamente há alguma verdade nisso, afirma o vaticanista
americano John Allen Jr. “A história do papado mudou de ‘tudo o que você
não gosta na Igreja é porque causa do papa’ para ‘tudo o que você não
gosta na igreja é apesar do papa’, afirma o colunista do “Boston Globe”.
Apesar da simpatia que conquistou até entre os não católicos, Francisco
não está navegando em mares calmos nesta visita, conforme explica o
professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Antonio
Carlos Alves dos Santos. Se encontrou uma Cuba apaziguada pela visita de
seus antecessores, João Paulo II e Bento XVI – agora até o Natal é
comemorado na ilha --, a situação é diferente nos EUA. Cerca de 21% da
população americana se diz católica, enquanto 9% abandonaram
recentemente a religião. A perda de fieis tem sido notória. Em todo o
País, igrejas são fechadas ou fundidas por falta de público ou de
padres.
Fora o escoamento do rebanho, o papa vive
uma relação curiosa com os poderosos católicos americanos, um dos países
onde a chaga do abuso sexual cometido por religiosos é mais grave. Os
onze cardeais da América foram as peça-chave para sua eleição. E a
igreja americana é a segunda maior financiadora do Vaticano, atrás
apenas da alemã. Em contrapartida, Francisco tem sofrido duros golpes
da ala conservadora, que está representada também no Partido
Republicano, por suas falas contra a acumulação de riqueza, a favor do
combate ao aquecimento global e pelos imigrantes. O deputado republicano
pelo Arizona, Paul Gosar, por exemplo, tem feito um boicote explícito
ao pontífice. Outros o chamam de “papa vermelho”, “peronista argentino” e
o acusam de ser uma penitência. Com sua postura sensata e gestos
empáticos, Francisco tem tentado acalmar os ânimos, falando contra o
aborto e a favor da família, tema caro a esse grupo conservador.
Se tem pisado em brasas por causa da
direita católica, a relação com o presidente Barack Obama vai muito bem.
Os dois comungam de muitas posições em comum e sabem da importância
global do outro. Afinal, um papa não pode se dar ao luxo de ignorar
Washington se pretende que algo seja feito. E nenhum presidente pode dar
as costas para um líder religioso à frente de um rebanho de 1,2 bilhões
de seguidores – incluindo aí 70 milhões de americanos, um quarto dos
EUA. O país liderado por Barack Obama gosta de encarar o Vaticano como
um aliado, um Estado com raízes ocidentais comprometido com os mesmos
valores de liberdade e direitos humanos. Muitas vezes isso é verdade.
Mas papas e presidentes também já colidiram, como durante os anos 1990,
quando João Paulo II travou duras batalhas com Bill Clinton, nas duas
conferências da Organização das Nações Unidas, uma no Cairo, em 1994,
sobre controle da população, e outra em Pequim, em 1995, sobre as
mulheres.
Francisco sempre busca as semelhanças em
seus discursos. Conclamou a vocação para a liberdade do povo americano,
colocando-o diante do espelho de sua própria história em pleno
Congresso, ao enaltercer líderes como Abraham Lincoln e Martin Luther
King.Mas também critica duramente o capitalismo, que chama de
“globalização da indiferença”. A opção preferencial pelos pobres anima
todos os seus gestos. Numa mensagem suave nas formas, deixou um recado
claro aos congressistas, 31% deles católicos, na quinta-feira 24: “Façam
com os outros o que querem que façam com vocês.” O latino-americano,
que durante vinte anos visitou as favelas da periferia de Buenos Aires,
diz que vê a Igreja como um hospital de campanha depois da batalha. “O
que mais precisamos ter hoje em dia é a capacidade de sanar feridas e
aquecer os corações dos fieis. Eles precisam da proximidade do contato.”
O fazedor de pontes Francisco tem feito isso como poucos.
Fotos: JIM WATSON/AFP, Andrew Harnik/ap; ALEJANDRO ERNESTO, ALEX CASTRO - AFP
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