Pela primeira vez desde o regime militar, um governo terá a oportunidade de escolher dez dos onze ministros do STF. Como pensam os atuais magistrados, quais os riscos para a democracia, e o que se espera do Senado nesse processo
Izabelle Torres (izabelle@istoe.com.br)
O sistema
democrático brasileiro está ancorado na separação dos poderes, que
permite decisões independentes, e no equilíbrio de forças entre as
instituições. É justamente por isso que, desde a reeleição de Dilma
Rousseff, o futuro do Supremo Tribunal Federal (STF) se tornou tema
obrigatório no mundo político. A composição da mais alta Corte do País
depende da indicação do presidente da República, o que, na maioria das
vezes, é feito quando os ministros se aposentam ao atingir os 70 anos de
idade. Nesse cenário, Dilma Rousseff pode conseguir o feito inédito de
nomear seis dos onze integrantes da Corte até 2018. Isso porque, além da
vaga do ex-ministro Joaquim Barbosa, que antecipou sua aposentadoria e
deixou o tribunal em julho, vão se aposentar por idade nos próximos
quatro anos os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio Mello, Ricardo
Lewandowski, Teori Zavascki e Rosa Weber. Com isso e com as indicações
feitas no mandato que chega ao fim em dezembro e os nomes indicados por
Lula, o PT pode ser o padrinho de dez ministros na ativa. Uma ampla
maioria que desperta dúvidas e questionamentos sobre o aparelhamento das
instituições por um partido político e, principalmente, sobre os riscos
dessa preeminência para a desejada harmonia entre os poderes. A
preocupação se baseia especialmente na lista de interesses do Planalto
em tramitação no tribunal e, claro, no mau exemplo de países da América
Latina, cujos governos trabalharam pela formação de Judiciários
submissos ao presidente e aos seus interesses totalitários.
Na avaliação da oposição, um plenário mais
alinhado com o Planalto poderia reduzir eventuais riscos que rondam o
governo. Há, hoje, no STF potenciais bombas capazes de explodir no colo
de Dilma, dependendo da maneira como os ministros as manejarem. Na área
política, por exemplo, o STF deverá decidir se abre ações penais contra
os personagens do Petrolão, acusados de receber propina de contratos da
Petrobras. As denúncias atingem figurões do PT, do PMDB e de outros
partidos aliados. O caso pode criar uma crise política semelhante à do
mensalão, com o agravante de que o esquema, desta vez, envolve a maior
empresa estatal do País. Questões financeiras capazes de afetar o
governo também estarão na pauta do STF. Uma ação que tramita há anos no
tribunal pretende incidir o ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins.
Se perder, a União pode ser obrigada a devolver aos contribuintes mais
de R$ 90 bilhões. Contando-se todos os processos de interesse do
Executivo pendentes de julgamento, a estimativa da Advocacia-Geral da
União é de que o prejuízo em eventuais derrotas poderia ultrapassar a
marca de R$ 300 bilhões.
DESEQUILÍBRIO
O ministro Gilmar Mendes manifestou preocupação com o aumento
do poder do PT na futura composição do tribunal
A pergunta que se impõe é: será mesmo que
uma presidente cujo partido foi responsável por quase 100% das
indicações poderia influenciar decisivamente nas deliberações do
plenário? O senso comum e a lógica política que tem norteado importantes
setores do PT nos últimos anos permitem acreditar que sim. Para
experientes magistrados, a questão é outra. Na última semana, ISTOÉ
conversou com especialistas, integrantes e ex-ministros do STF. Embora o
ministro Gilmar Mendes, em recentes declarações, tenha manifestado
estupefação com o aumento do poder do PT na nova composição, e dito que
teme a conversão do STF “numa corte bolivariana”, seus colegas são
unânimes em afirmar que essa não é a maior preocupação. Segundo quatro
ministros consultados, os temores recaem mais sobre o perfil dos
indicados do que propriamente sobre quem os indicará. Ou seja, para os
magistrados, a resposta ao questionamento acima pode ser positiva ou
não, a depender do critério adotado pela presidente na hora de escolher
os futuros ministros do tribunal. Na prática, o que ninguém quer é que
se repitam indicações como a de Antonio Dias Toffoli, que, embora tenha
sido reprovado no concurso para magistratura, conseguiu uma vaga no
Supremo porque foi um dedicado advogado do PT e amigo do ex-presidente
Lula. Se reeditados casos como o de Toffoli, acreditam ministros ouvidos
por ISTOÉ, a presidente teria sim o poder de influir nos rumos do STF.
A história mostra que as indicações de um
partido ou de um presidente, por si só, não são capazes de assegurar
períodos de tranquilidade no STF para o governo e para a legenda que os
escolheu. Ministros lembram o recente caso do mensalão, quando as
posições mais radicais partiram justamente de indicados por Lula, como
Joaquim Barbosa, o relator do processo que levou cabeças coroadas do PT
para a cadeia, e Carlos Ayres Britto. “Os ministros são cabeças
independentes e a Corte já deu demonstrações disso”, afirmou Marco
Aurélio Mello. “Quem levanta essa hipótese de bolivarianismo teria antes
de dizer se quem está lá agora serve a algum interesse. Os julgamentos
recentes mostraram que não”, avalia o professor da faculdade de direito
da Fundação Getulio Vargas Diego Werneck.Embora a atual composição do
STF desfrute do respeito dos especialistas, justamente por ter se
mostrado independente nos últimos anos, a sociedade deve estar atenta
aos movimentos políticos em torno do tribunal. Hoje, essas tentativas de
interferência ficam mais evidentes no PT. Por variados motivos. Desde
que ascendeu ao Planalto, o partido se revelou adepto do jogo de
influência típico do poder no Brasil. Nos últimos anos, a sociedade
deparou-se com declarações do ex-ministro José Dirceu – um dos
principais réus do mensalão – afirmando que fora procurado pelo ministro
Luiz Fux quando esse fazia “campanha” pelo cargo. Fux teria prometido
até beneficiar os mensaleiros em troca da nomeação. Não foi o que
aconteceu durante o julgamento. Mas paira a dúvida se Fux foi nomeado
por causa da promessa de contentar os petistas. Na mesma época, o
ministro Gilmar Mendes afirmou que fora procurado pelo ex-presidente
Lula para adiar o julgamento dos envolvidos no escândalo. Já no governo
Dilma Rousseff , a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da
Cofins na importação, uma das ações que mais preocupam a União, foi
retirada de pauta depois de uma conversa do ministro Dias Toffoli com o
advogado-geral da União, Luiz Adams. Se perdesse, o governo poderia ter
prejuízo estimado em R$ 33 bilhões. Até hoje, Toffoli não pautou a
matéria.
Em meio à polêmica sobre as indicações ao
Supremo, ganhou força no Congresso um movimento organizado para tentar
reduzir a concentração de nomeações de ministros nas mãos de Dilma.
Encabeçado por caciques do PMDB e endossado por ministros que devem se
aposentar nos próximos anos por completarem 70 anos, voltou à baila um
projeto esquecido desde 2006 na Câmara. A PEC 457/2005, apelidada de PEC
da Bengala, que aumenta para 75 a idade em que os integrantes do
Judiciário são obrigados a se aposentar. A proposta foi aprovada pelo
Senado e, se for chancelada pelos deputados ainda neste ano, até o
decano Celso de Mello, que se prepara para deixar a Corte em novembro de
2015, poderia estender sua permanência.
Na semana passada, integrantes da cúpula do
PMDB defenderam a proposta durante uma reunião da legenda. Eles afirmam
que vão pressionar para que a votação da PEC seja pautada para o fim de
novembro. Com a mudança, os cinco ministros que se preparam para deixar
a Corte até 2018 poderiam ficar até o fim do próximo governo. “Eu
defendo essa proposta desde 2003, quando não era suspeito e a
aposentadoria ainda estava distante de mim. Sigo com as mesmas
posições”, argumenta Marco Aurélio Mello, que pelas regras atuais deve
deixar a Corte em um ano e meio. A proposta, entretanto, sofre muitas
resistências. De fato, Dilma foi eleita com as prerrogativas
constitucionais de qualquer presidente da República de indicar membros
do STF de acordo com o surgimento das vagas. Isso já era conhecido antes
das eleições. Mudar o rito atual a essa altura seria como alterar as
regras da partida com o jogo em andamento. Para escapar dessa
encruzilhada, ganham força no meio jurídico propostas para que a PEC da
Bengala passe a valer não para os atuais ministros, mas para os futuros
indicados. O problema estaria resolvido, e a PEC seria aprovada sem o
atropelamento de regras já preestabelecidas.
ALVO
Os ministros não querem que se repitam critérios como os adotados
pelo governo na hora de indicar o ministro Dias Toffoli
Independentemente da aprovação ou não da
proposta, o controle da qualidade dos indicados para ministro do STF, e a
garantia de que não teriam relação direta e ideológica com o PT,
poderia ser feito pelo Senado Federal, caso os parlamentares cumprissem
efetivamente a prerrogativa constitucional de participar do processo de
escolha. Se os senadores utilizassem o poder de sabatinar e avaliar com
critérios rigorosos os indicados pela Presidência, poderiam ser um
contraponto ao poder – hoje quase unilateral – do presidente da
República no processo de escolha dos membros do STF. Apesar de poderem
barrar indicações presidenciais, os senadores adotam quase como regra
aprovar os indicados depois de participarem de sessões que mais se
assemelham a um bate-papo entre amigos do que propriamente a uma
sabatina.
Para se ter uma ideia dessa passividade,
desde a criação do STF, em 1891, o Senado barrou apenas cinco indicações
do presidente. Todas no governo do marechal Floriano Peixoto, que
tentou nomear ministros cujos perfis não guardavam relação com o
tribunal. “O Senado precisa desempenhar seu papel nas sabatinas e no
aval que dá aos ministros. É um papel constitucional que não vem
recebendo a devida relevância”, afirma o senador Álvaro Dias (PSDB-PR). O
importante para a democracia é evitar que a guerra política transforme o
STF em um instrumento de disputa de interesses pessoais ou
partidários.
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