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segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Que país é esse?

"Houve um momento em que a maioria de nós acreditou que a esperança tinha vencido o medo. Depois descobrimos que o cinismo tinha vencido a esperança. Agora o escárnio venceu o cinismo. Mas o crime não vencerá a Justiça." Cármen Lúcia, ministra do Supremo

Sérgio Pardellas e Marcelo Rocha

Assim como a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, o político abolicionista Joaquim Nabuco se notabilizou por ser uma figura pública à frente de seu tempo. Personificou a vanguarda, quando muitos ainda insistiam no atraso. Separados por mais de um século, eles se entrelaçaram na última semana pelos seus ideais. Como agora, no Império o Senado também se constituía numa Casa revisora cujas decisões e propósitos já eram alvo de sérios questionamentos. Dizia Nabuco: “Para o Senado, a política é uma distração. A função é outra. Os lutadores desinteressados que ele contém influem tanto no jogo da instituição como a bandeira de um navio nos movimentos da máquina”. Na manhã de quarta-feira 25, Carmen, numa de suas mais brilhantes intervenções na corte, encarnou Nabuco ao puxar o primeiro voto, na sequência do relatório do colega Teori Zavascki, pela manutenção na cadeia do senador Delcídio do Amaral (PT-MS). Num recado direto aos senadores, em especial parlamentares que se escoram no foro privilegiado para perpetrar crimes de toda a sorte, disparou: “Um aviso aos navegantes dessas águas turvas de corrupção e iniquidades: criminosos não passarão a navalha da desfaçatez e da confusão entre imunidade e impunidade e corrupção. Em nenhuma passagem, a Constituição Federal permite a impunidade de quem quer que seja. O crime não vencerá a Justiça”. A ministra foi além: “Houve um momento em que a maioria de nós brasileiros acreditou que a esperança tinha vencido o medo. Depois, nos deparamos com a ação penal 470 (do mensalão) e descobrimos que o cinismo venceu a esperança. E agora o escárnio venceu o cinismo”.
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Na semana passada, a política brasileira produziu tal desfaçatez. Num País em que sempre achamos que já vimos de tudo ainda é possível se deparar com situações das mais implausíveis graças à ousadia ilimitada dos nossos políticos. Como poderíamos imaginar que um senador da República, líder do governo, em pleno exercício do mandado, iria tramar a fuga pelo ar ou pelo mar de um criminoso confesso preso na Lava Jato? E que um banqueiro seria acusado de financiar a operação? E que, na mesma semana, um pecuarista – amigo e dono de acesso livre a um ex-presidente da República – seria preso sob a suspeita de ser o laranja deste mesmo ex-presidente? E, para completar, o presidente da Câmara faria articulações em plena luz do dia para escolher como, quando e quem deveria conduzir uma investigação contra ele próprio? Realmente, e é triste constatar, vivemos em meio à esculhambação geral.
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O senador e líder do governo Delcídio do Amaral foi preso na quarta-feira 25 depois de flagrado em tratativas para tirar do País Nestor Cerveró, que firmou na semana passada um acordo de delação premiada com o Ministério Público Federal. Há suspeitas de que Delcídio seja destinatário de repasses ilegais. Seria ao menos US$ 1,5 milhão, segundo o ex-diretor da Pertrobras adiantou aos procuradores da República. Isso explicaria a articulação para tentar barrar a delação. A estratégia discutida por Delcídio envolvia pressionar o Supremo a libertar Cerveró da prisão. O senador teria procurado vários ministros. Disse a interlocutores que recorreria até ao vice-presidente da República, Michel Temer (PMDB-SP), autoridade com trânsito no tribunal. Nas horas seguintes, foram empreendidos movimentos para tornar a situação ainda mais inacreditável. O Senado teria de analisar em até 24 horas a decisão do Supremo. As provas, naquele momento, já se mostravam definitivas. Cabais. Mesmo assim, o Senado se comportou como uma autêntica casa de tolerância. Também envolvido na Lava Jato, o presidente Renan Calheiros (PMDB-AL) articulou para que a votação em plenário fosse secreta, o que aumentaria em muito as chances de Delcídio ser libertado no mesmo dia.
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Durante a sessão, foi desfiado um rosário de impropérios. Em sua catilinária, o senador Jader Barbalho (PMDB-PA), político outrora afastado da Presidência da Casa por corrupção na Sudam e que aparece citado no áudio em que Delcídio articula a fuga de Cerveró, entabulou a defesa pelo voto fechado. No plenário do Senado, disse que “nenhum senador precisa ser fiscalizado pela opinião pública”. Outros o acompanharam. Mas, sob forte pressão da população, em sessão transmitida ao vivo pela TV Senado para todo o País, Renan foi derrotado duas vezes: na maneira como seriam proferidos os votos e no mérito da questão. Ao fim, numa votação aberta, os senadores evitaram o suicídio institucional. Mais uma vez de olho nos próprios umbigos, afinal estamos às vésperas de mais um ano eleitoral, eles mantiveram a prisão de Delcídio por 59 votos favoráveis, 13 contra e uma abstenção. Claro que não poderia faltar outra situação indigna do Parlamento. Apesar de o PT ter abandonado Delcídio à própria sorte em nota e da existência de provas irrefutáveis contra ele, o líder do partido no Senado, Humberto Costa (PE), orientou a bancada a votar pela soltura do senador petista. A orientação, embora na contramão dos interesses da sociedade, é mais coerente do que a nota emitida pela cúpula do PT. O partido faz de tudo para tentar se desvincular de Delcídio. Nos próximos dias, a Executiva Nacional da sigla pretende se reunir para deliberar sobre o caso. A tendência é a de que a expulsão do senador seja discutida. A tentativa de dissociá-lo do PT constitui-se, mais uma vez, de puro jogo de cena político. O senador, indiscutivelmente, era um dos principais quadros do PT. Não por acaso, era líder do governo no Senado e um dos parlamentares mais próximos da presidente Dilma Rousseff e de Lula. Às vésperas de sua prisão, Delcídio se reunia semanalmente com o ex-presidente e teria agendado um encontro com ele no dia seguinte à detencão. Por isso, sua prisão representa mais uma mácula, entre tantas outras acumuladas até aqui, na legenda da estrela rubra.
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Quando o Senado discutia se endossava ou não a decisão do STF, o País ainda repercutia a 21ª fase da Lava-Jato, que, na véspera, levara para a cadeia o pecuarista José Carlos Bumlai, amigo do ex-presidente Lula. Assim como Marcos Valério no Mensalão, Bumlai é apontado pelos procuradores da República como um operador do PT no Petrolão. Há indícios de que o pecuarista possa ter se tornado um laranja do próprio Lula. A questão é ainda mais grave. A cada operação da PF, os procuradores reforçam a constatação de que o ex-presidente petista possa ter sido o elo entre todos os escândalos. Por exemplo, Delcídio foi quem, ao lado do ex-governador do Mato Grosso do Sul, Zeca do PT, apresentou o ex-presidente a Bumlai.
De acordo com as investigações da Lava Jato, Bumlai teria articulado em 2004 um empréstimo, no valor de R$ 12 milhões, junto ao Banco Schahin para ajudar o PT financeiramente, então com dívidas de campanha. O empréstimo foi citado na delação premiada de Eduardo Musa, ex-gerente da Petrobras. Em contrapartida, o grupo Schahin teria sido compensado com um contrato com a Petrobras, no valor de US$ 1,6 bilhão, para operar o navio sonda Vitoria 10000. Musa disse ter ouvido essa versão do próprio Cerveró. A defesa do empresário alega que o emprestimo junto ao Schahin foi contraído para ser usado em negócios pecuários. Não é o que entendem as autoridades brasileiras. Em fevereiro deste ano, ISTOÉ teve acesso com exclusividade a relatório do Banco Central demonstrando que a versão de Bumlai não pára em pé. O documento afirma que o pecuarista foi beneficiado com uma operação liberada de forma irregular “sem a utilização de critérios consistentes e verificáveis”. Para liberar a bolada, o Schahin burlou normas e incorreu em seis tipos de infrações diferentes. O documento está anexado ao inquérito da Operação Passe Livre e reforça denúncia do empresário Marcos Valério, o operador do mensalão, feita em 2012 ao MPF. Valério afirmou que o pecuarista intermediou operação para comprar o silêncio do empresário de transportes Ronan Maria Pinto. O empresário estaria ameaçando envolver o ex-presidente Lula, e os ex-ministros José Dirceu e Gilberto Carvalho no assassinato do então prefeito de Santo André Celso Daniel.
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Na ocasião, Valério tentava um acordo de delação premiada. Não obteve. Porém, nos últimos dias, a Receita Federal colheu indícios de que parte dos valores do empréstimo do Schahin a Bumlai pode mesmo ter sido direcionada a Ronan. Ele teria adquirido, em 2004, 60% das ações do Diário do Grande ABC S/A no valor de R$ 6,9 milhões. Para isso, recorreu a empréstimos e assumiu dívidas de terceiros junto às empresas das quais era sócio, a Rotedali Serviços e Limpeza Urbana Ltda. e a Expresso Nova Santo André. Tais dívidas ficaram sem quitação durante nove anos, conforme revelaram suas declarações. “No contexto, a suspeita levantada pela Receita é a de que esses empréstimos não teriam sido reais, mas apenas “teriam servido, em tese, para dissimular a real origem de recursos utilizados na aquisição das ações”, descreveu o juiz Sérgio Moro no decreto de prisão de Bumlai. Ao discorrer sobre esta nova fase da Lava Jato, o procurador Carlos Fernando Lima, da Lava Jato, afirmou que há indícios de que o ex-ministro José Dirceu e o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares atuaram para ajudar na liberação do empréstimo do Schahin a Bumlai. Em comum, entre estes três personagens, há o fato de todos terem sido ou serem de alguma forma muito próximos ao ex-presidente Lula.
Na quinta-feira 26, o petista, cujos amigos tombaram um a um (leia quadro na pág. 42), foi instado, durante o almoço na sede da CUT, em São Paulo, a comentar a prisão de Delcídio. Ao que ele respondeu: “Foi uma grande burrada. Uma coisa de imbecil”. O ex-presidente disse ainda ter ficado surpreso quando soube dos detalhes da gravação que levou o senador à cadeia. Para Lula, o senador é um político experiente, sofisticado, e não poderia ter se deixado gravar por um smartphone de forma simples, como feito por Bernardo Cerveró, filho do ex-diretor da Petrobras. Na avaliação do ex-presidente, no momento em que o governo parecia ter ganhado um bom fôlego, o episódio faz com que a base aliada a Dilma no Congresso volte a ficar combalida. Ao tomar conhecimento das críticas de Lula, enquanto prestava depoimento à PF, Delcídio ficou descontrolado a ponto de interromper a oitiva. Em seguida, passou a negociar uma delação com a Polícia Federal.
Foi nesse clima surreal que a construtora Andrade Gutierrez resolveu na quinta-feira 26 também assinar um acordo. Após aceitar pagar a maior multa da Lava Jato, cerca de R$ 1 bilhão, admitiu o repasse de propinas em obras da Copa do Mundo, da Petrobras, da usina de Angra 3, Belo Monte e da Ferrovia Norte-Sul.
O temor do Planalto, agora, é o retorno à baila da agenda do impeachment. Se aqui estivesse, Joaquim Nabuco certamente repetiria suas palavras proferidas há pouco mais de um século, em meio às discussões sobre a abolição da escravatura e o fim da monarquia. Num ambiente de total esculhambação, “necessitamos de uma reforma de nós mesmos, do nosso caráter, do nosso patriotismo e do sentimento de responsabilidade cívica”.
Fotos: Paulo Lisboa/Folhapress; Alan Marques/Folhapress; Luis Macedo/Câmara dos Deputados

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