Rio -  São 31 anos de silêncio para a opinião pública e a Justiça. Entretanto, caso queira se defender no banco dos réus, o coronel do Exército Wilson Luís Chaves Machado, 64 anos, terá que contar o que sabe sobre as explosões de duas bombas na noite de 30 de abril de 1981, no Riocentro. Sobrevivente do atentado, o militar é alvo de duas investigações diferentes. “A bomba do Riocentro foi um crime militar e não vejo como as Forças Armadas não queiram esclarecer, já que se tratou de um ato de quebra de hierarquia e contra a lei, mesmo no estado de exceção”, avalia o procurador da República Luiz Fernando Lessa.

Ele está à frente do Grupo de Trabalho (GT) Justiça de Transição, do Ministério Público Federal (MPF), que investiga crimes durante a ditadura, e aguarda os processos do atentado, arquivados no Ministério Público Militar e solicitados para convocar o coronel.Wilson também será chamado pela Comissão da Verdade, a ser instaurada em Brasília, e que, apesar de não resultar em processo na Justiça, pretende reescrever a História do País.
Uma das bombas que os dois militares levaram para o Riocentro destruiu o carro em que estavam | Foto: Banco de Imagens
Uma das bombas que os dois militares levaram para o Riocentro destruiu o carro em que estavam | Foto: Banco de Imagens
Integrante da Comissão Parlamentar da Memória, Verdade e Justiça da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, preparatória para a Comissão da Verdade, o deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) acredita que este é o momento de esclarecer o caso Riocentro, cujas investigações na época apontaram como um atentado de autoria da esquerda. “Já passou da hora de o coronel Wilson Machado dar satisfação sobre o ocorrido, sobre sua participação nefasta no episódio. A Lei da Anistia não perdoou crimes de sangue, e foi apresentada uma versão mentirosa, uma farsa oficial”, argumenta o deputado.

Outro caso que passará pela Comissão da Verdade — a tortura e morte de Stuart Edgard Angel Jones, em 1971 — já foi reaberto pelo GT, e Luiz Lessa já está ouvindo testemunhas. “O Alex (Polari) foi ouvido e ainda vamos marcar com a Hildegard (Angel)”, adianta o procurador, referindo-se ao militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e testemunha do caso, e à jornalista que é irmã de Stuart. “O caso Stuart, mesmo se não houver por parte do Supremo (Tribunal Federal) apreciação de sequestro, como ocorreu com os desaparecidos do Araguaia, será investigado como homicídio e ocultação de cadáver”, avalia Lessa, lembrando que o corpo de Stuart nunca foi encontrado.

Inquérito militar concluiu que militares foram vítimas

O Inquérito Policial Militar (IPM) instaurado para apurar a bomba do Riocentro revelou que o coronel Wilson Machado, então capitão, e o sargento Guilherme Pereira do Rosário, especialista em explosivos, foram vítimas de grupos que lutavam contra a ditadura. Outras investigações, da imprensa e de organismos de Direitos Humanos, porém, revelaram que o coronel e o sargento eram os “terroristas” — como define o procurador Luiz Fernando Lessa —, a serviço de radicais do regime que não aceitavam a Abertura Política, iniciada em 1979.

Uma das bombas explodiu no pátio da casa de força do Riocentro. O objetivo era interromper a energia e gerar tumulto entre os mais de 20 mil espectadores do show, em comemoração ao Dia do Trabalho. Mas a energia não foi afetada. A outra bomba, que geraria pânico e mortes, explodiu no colo do sargento, matando-o. Segurando as vísceras, após ter o abdômen rasgado pela explosão, Wilson foi socorrido e sobreviveu. Depois se calou.

Entrevista com Luiz Fernando Lessa, procurador da República

O procurador da República Luiz Fernando Lessa tem pela frente uma missão espinhosa para fazer cumprir a decisão da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. Revirar os processos da ditadura militar pode reabrir feridas, mas ele diz que está pronto para o desafio: “Tenho o sonho de fazer cumprir a Justiça”.

1. A Comissão da Verdade vai servir também para reabrir processos do Grupo de Trabalho (GT)?

— A Comissão da Verdade é muito útil. Poderemos usar depoimentos dela, assim como ela poderá nos solicitar investigações. A diferença é que a comissão é um instrumento político e nossa atuação é jurídica.

2. Por que o Brasil levou tanto tempo para investigar os crimes cometidos durante a ditadura militar?

— É uma decisão que o País deveria ter tomado há muito mais tempo, como está sendo feito na Argentina e no Chile, por exemplo. O País foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos e precisa dar a resposta. É um clamor da sociedade.

3.Nos depoimentos que o senhor já tomou, algo o surpreendeu?

— Eu tenho 43 anos de idade, era criança na época da ditadura e entrei na faculdade no fim dela. Os depoimentos são chocantes, assustam de verdade.

4. O GT vai investigar também os integrantes da luta armada?

— Trataremos de casos de crimes do estado contra o cidadão. O regime tinha o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, o Ministério Público e as forças policiais, ou seja, não poderia cometer crimes. Os inimigos do governo pagaram com torturas, exílio e muitos com a morte.

Gabeira cobra explicação para morte de Stuart

Para o ex-deputado e jornalista Fernando Gabeira, que estava exilado no ano em que Stuart Angel morreu, o caso merece atenção porque se trata da morte de Stuart e da mãe dele, a estilista Zuzu Angel. “É um dos episódios mais nebulosos ocorridos na ditadura militar no Rio. Acredito que a comissão deveria tentar esclarecer, finalmente, o que aconteceu com o rapaz e com a Zuzu, misteriosamente morta quando lutava para desvendar o assassinato do filho”, afirma Gabeira.

Zuzu Angel empreendeu uma campanha de repercussão internacional depois do desaparecimento de Stuart. Ela morreu em um acidente de carro, em 1976, no túnel em São Conrado que hoje leva seu nome. Luiz Lessa, no entanto, acha improvável responsabilizar alguém pela morte da estilista. “É muito difícil provar um crime na morte da Zuzu, já que houve, de fato, um acidente automobilístico. Depois de tanto tempo, não haveria como ter provas periciais”, lamenta.

Stuart Angel tinha 25 anos de idade e era do MR-8, cujo líder, o ex-capitão Carlos Lamarca, era caçado pelo governo. Stuart foi preso e levado à Base Aérea do Galeão por agentes do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica. Como se negava a falar sobre o paradeiro de Lamarca, foi torturado e, com o corpo já esfolado, foi amarrado a um jipe militar e arrastado pelo pátio do quartel com o cano de descarga preso à boca, segundo relato de Alex Polari, que estava preso no mesmo local e viu o crime da janela da cela.

Polari chegou a enviar uma carta para a estilista relatando o que viu, e a campanha movida por Zuzu chamou a atenção de estrangeiros para os crimes da ditadura no Brasil. Ela criou coleções feitas com roupas estampadas com manchas vermelhas e motivos bélicos. Durante visita de Henry Kissinger, então secretário de Estado norte-americano, Zuzu driblou a segurança e lhe entregou um dossiê sobre o caso.