
Como se iluminada por algum dom divino capaz de decifrar os corações e
as mentes dos brasileiros, a narrativa petista produziu algumas
certezas nos últimos tempos. A mais marcante delas: a de que a periferia
das grandes capitais e os grotões do Brasil, ainda inebriados pelos
anos de inclusão social e crédito fácil, haviam fechado os olhos à
corrupção institucionalizada pelo PT e estavam ao lado do partido para o
que desse e viesse. Por isso, o tilintar das panelas durante os
panelaços de abril, segundo essa mesma tese, só ecoavam das varandas
gourmets e as manifestações que inundaram ruas e avenidas do País só
poderiam estar apinhadas de bem-nascidos e de defensores da meritocracia
– “mas que receberam tudo na vida de mãos beijadas”, claro. Em sintonia
com esse mesmo raciocínio, as camadas mais pobres da população só
poderiam ter achado o impeachment de Dilma Rousseff um golpe contra a
democracia e um atentado aos anseios eleitorais desse mesmo estrato
social. Puros sofismas destinados a encantar inocentes, muitas vezes
úteis. As certezas convenientes da narrativa petista desabaram como
castelo de cartas no último domingo 2, na esteira da apuração do
primeiro turno das eleições municipais. O povo brasileiro, periferia
incluída, não só reprovou o PT, como varreu a legenda do mapa. O Brasil
real, – aquele que acorda cedo, enfrenta trânsito, ônibus lotado, e
depende dos serviços básicos de saúde, educação e segurança, –
praticamente enterrou o partido – e, por tabela, a falácia do golpe.
Quantitativamente, foi a mais acachapante derrota sofrida pelo PT em
décadas. Simbolicamente, porém, pode-se afirmar, sem medo de errar, que
foi o pior revés eleitoral da história do partido. Senão vejamos. Os
números são eloquentes. Ao eleger apenas 256 prefeitos, 60% a menos do
que há quatro anos, o partido caiu vertiginosamente de terceiro para o
décimo lugar no ranking geral, ficando atrás do DEM, partido dado como
morto num passado recente, e do recém-criado PSD. Se contabilizados
apenas os votos para prefeito, o PT perdeu mais de 23 milhões de
eleitores. Caiu de 27,6 milhões para 4,4 milhões. Já se for incluída a
eleição para vereador, o partido da estrela rubra viu 50 milhões de
votos evaporarem somente no domingo 2 – quase o que a presidente deposta
Dilma Rousseff recebeu nas eleições de 2014. O placar eleitoral em
Osasco (SP) é emblemático. No município que já foi um dos mais fortes
redutos eleitorais da legenda, o PT não elegeu um vereador sequer. Um
desastre completo. Na disputa pela prefeitura, Valmir Pascidelli (PT)
ficou em quinto. No Nordeste, até outro dia quintal do PT, o partido não
elegeu prefeito em nenhuma capital até agora – o partido reúne chances
apenas no Recife, com João Paulo (PT), que na reta final alcançou o
segundo turno e vai enfrentar o favorito Geraldo Julio (PSB).
Em São Paulo, o petista Fernando Haddad, além de ter perdido para o
tucano João Doria no primeiro turno, registrou o pior desempenho de um
candidato da sigla na história da cidade. Ao receber apenas 16,7% dos
votos, superou o recorde negativo de Eduardo Suplicy em 1985. Na
ocasião, o petista figurou com 19,75%. Em São Bernardo do Campo –
governada por Luiz Marinho (PT) e berço político de Lula – o candidato
da legenda, Tarcicio Secoli, não conseguiu ir para o segundo turno.
Ficou em terceiro lugar. A eleição será decidida entre Morando (PSDB) e
Alex Manente (PPS). O PT conquistou só uma capital no primeiro turno,
Rio Branco, no Acre, com a reeleição de Marcus Alexandre. Se trinfar na
capital pernambucana, vai igualar o desempenho de 1996, quando também
levou duas capitais. Se perder, será o pior resultado desde 1985, ano em
que só conquistou uma capital, Fortaleza. Na época, Maria Luiza
Fontenele foi a primeira mulher a ser eleita prefeita de uma capital de
estado brasileiro.
Mais perto da condenação
Lula sofre sequencia de revezes na Justiça e vira alvo da Lava Jato em várias frentes

O ex-presidente Lula não para de acumular más notícias. O último
revés saiu da Polícia Federal em Brasília, que indiciou o petista, seu
sobrinho Taiguara Rodrigues e o empreiteiro Marcelo Odebrecht sob
suspeita de corrupção e lavagem de dinheiro em um caso de Angola.
Segundo as investigações, Lula teria atuado para influenciar na
liberação de recursos do BNDES para obras da Odebrecht em Angola. Lá, a
empreiteira contrataria uma empresa de Taiguara, a Exergia, sem a devida
prestação dos serviços. Caberá agora ao Ministério Público analisar o
relatório e decidir se apresenta mais uma denúncia contra Lula, que já é
réu em duas ações penais. Essa não foi a única notícia ruim para o
petista na última semana. Seus advogados haviam pedido um prazo de 55
dias para a apresentação da defesa na ação penal em que virou réu, no
caso do tríplex. O prazo normal é de dez dias, mas os advogados queriam
mais. O juiz Sérgio Moro rechaçou e só concedeu cinco dias: “Não há
nenhuma base legal para essa pretensão”. A decisão tomada pelo Supremo
na última quarta-feira 5, de que a condenação em segunda instância basta
para determinar a prisão, também passou a preocupar aliados do petista.
Como já é réu em duas ações penais, Lula pode ter suas primeiras
condenações no próximo ano. Há uma possibilidade real de o petista ser
preso em 2018. A condenação em segunda instância também o torna
inelegível pela Lei da Ficha Limpa. O ministro no STF Teori Zavascki
ainda autorizou no final da semana o fatiamento do principal inquérito
da Lava Jato, chamado de “quadrilhão”, que mira o núcleo político do
Petrolão. Ao acolher o pedido feito pela Procuradoria-Geral da
República, Zavascki incluiu Lula em um dos inquéritos.
Transição republicana

Contrariando o estilo belicoso do Partido do qual faz parte, o
prefeito de SP, Fernando Haddad, logo que soube da derrota, se colocou à
disposição do adversário tucano João Doria para abrir os papéis e
contas da prefeitura e tiveram um encontro já na sexta-feira, 7. Algo
raro em se tratando de petista.
Renovação zero
Não é possível comparar os dois momentos, embora numericamente se
assemelhem. Nas décadas de 80 e 90, o partido que ainda engatinhava
comportava-se como um iniciante jogador de war: cada voto ou território
conquistado era interpretado como um grande feito eleitoral. Ali, o
partido ascendia politicamente. Agora, trilha o caminho inverso. Há
ainda outro agravante. Se não bastasse o fato de as principais
lideranças petistas ou estarem presas, como os ex-ministros José Dirceu e
Antonio Palocci, ou na alça de mira da Lava Jato, como o ex-presidente
Lula, num cenário de desilusão com a política, em que mais de 25 milhões
de eleitores (17,58%) não compareceram às urnas para votar, o resultado
do primeiro turno das eleições municipais registrado no domingo 2 é o
sintoma de que a população não enxerga no PT a agremiação mais adequada
para oferecer à sociedade os novos líderes políticos os quais ela espera
que a represente. Ou seja, enquanto as antigas lideranças do partido se
esfacelam, não há cheiro de renovação no horizonte petista. “Qualquer
cidadão, por mais desatento que seja, fica estarrecido com o destino do
PT. Um destino político que se tornou policial. A verborragia da
“perseguição política” e do “golpe” nada mais é do que uma tentativa
desesperada dos que não foram ainda condenados ou presos, procurando,
assim, escapar de um encarceramento iminente”, afirmou Denis Rosenfield,
professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). O País que emergiu das urnas parece estar de acordo. O
resultado revelou, da maneira mais democrática possível, a vigorosa
rejeição dos brasileiros a um modo nada republicano de alcançar, se
perpetuar no poder e dele se locupletar – como demonstrado mais
recentemente pela Lava Jato. “Dos males, o menor, pois o país tem uma
chance de revigorar a sua mentalidade, a sua concepção, e empreender um
novo caminho. O que não pode — nem deve — é permanecer numa mera
repetição histórica”, acrescentou o filósofo.
Publicamente, os petistas não ousam admitir, mas intramuros
reconhecem: se Lula for preso ou mesmo condenado e virar um ficha-suja, o
que o impedirá de concorrer à Presidência novamente, o partido se
ressentirá de um nome com musculatura eleitoral suficiente para disputar
o Palácio do Planalto em 2018. Por ora, o nome cogitado para
eventualmente substituir Lula beira o risco de, em breve, virar piada de
salão: o do senador petista Lindbergh Farias. Mesmo que por obra e
graça do destino seja candidato do PT em 2018, Lula não enfrentará uma
quadra favorável. Hoje, segundo as pesquisas eleitorais, o petista é
rejeitado por mais de 50% dos brasileiros, o que por si só
inviabilizaria um triunfo num segundo turno. Não se sabe, porém, se ele
seria capaz de chegar lá. Durante as eleições municipais, não conseguiu
uma vitória sequer nos 11 palanques em que subiu. Sem mandar
representante para a disputa no Rio, Lula foi a voz do PT na capital
fluminense para apoiar a candidatura de Jandira Feghali (PCdoB) à
prefeitura. O ex-presidente aproveitou o espaço no palanque de Jandira
para fazer sua defesa sobre as denúncias que pesam contra ele. E repisar
o surrado discurso do golpe. Não surtiu efeito. Na mesma toada, a
própria presidente deposta ousou escalar o palanque de Jandira. Não
poderia ser diferente. A candidata comunista desabou nas pesquisas e não
obteve nem 4% dos votos. Em Fortaleza, a candidata à prefeitura da
capital cearense pelo PT, Luizianne Lins, que já foi prefeita por oito
anos, acreditou que bastava apelar ao carisma do petista para conseguir,
como um passe de mágica, alcançar o segundo turno. Bons tempos aqueles
em que o mito elegia postes. Nem postes são mais eleitos nem o mito
existe mais. Resultado: Luizianne acabou eliminada e vai acompanhar de
camarote o segundo turno entre seus rivais Roberto Cláudio (PDT) e
Capitão Wagner (PR). Se antes valia o efeito teflon e nada colava em
Lula, hoje o morubixaba petista é como um imã. Quem se distanciou de
Lula, lucrou eleitoralmente. Na opinião de Thales Castro, cientista
político e professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap),
parte do êxito de João Paulo no Recife se deu justamente porque Lula não
estava lá. “João Paulo conseguiu se deslocar da figura de Lula. Por
isso, conseguiu ir ao segundo turno”. As derrotas impostas ao
ex-presidente não se limitaram aos companheiros. Até o filho Marcos
Claudio foi rejeitado pelo eleitor, que não votou nele para uma das
cadeiras de vereador de São Bernardo do Campo (SP). Conseguiu somente
1.504 votos, menos da metade dos 3.882 obtidos em 2012, e foi o 58º na
disputa por 28 vagas. Petista histórico, Olívio Dutra resignou-se: “O PT
tem que levar mesmo uma lambada forte porque errou”.
O placar desastroso para o partido no primeiro turno das eleições
municipais – quase um 7×1 eleitoral – provocou uma reunião de
integrantes da cúpula do em Brasília na última semana. Começa a se
estudar de novo a idéia de mudança de nome e de sigla para evitar a
debandada de militantes irritados com a corrupção. É como um trabalho de
Sísifo, aquele personagem de Platão que tentava rolar a rocha ao cume
da montanha até ser atropelado por ela e ter de reiniciar a faina
inútil: o partido quer juntar os cacos para tentar se reerguer em meio à
débâcle. “Definir o futuro da legenda e as estratégias” para o segundo
turno em meio ao mar de lama jogada pela Operação Lava Jato sobre a
companheirada. O partido da “ética na política” que se tornou o símbolo
da corrupção e foi praticamente dizimado pelas urnas no primeiro turno
das eleições municipais sonha alto, como Sísifo. Ao menos, o personagem
do mito da Caverna de Platão estava consciente do resultado final. O PT,
ao que parece, prefere sucumbir abraçado à própria narrativa.

F otos: Sidney Lopes/EM/D.A Press; José Carlos Daves/Futura Press/Folhapress; José Leomar; Moacyr Lopes Junior/Folhapress