Usuário ganha com o texto do projeto de lei aprovado, que fortalece fundamentos essenciais ao desenvolvimento da internet no Brasil. Governo sofre derrota em uma de suas principais bandeiras: os data centers
Marcela Mattos, de Brasília
Sessão sobre a votação do Marco Civil da Internet, na Câmara dos Deputados em Brasília
(Gustavo Lima/Agência Câmara)
O usuário brasileiro de internet ganha com o texto aprovado pelos deputados. Foi assegurada a neutralidade de rede, um dos grande nós da disputa em torno do Marco Civil (e a regulamentação desse dispositivo dependerá de consulta prévia ao Comitê Gestor da Internet e à Anatel, e não de simples decreto do Executivo). Além disso, terminou derrotada a proposta governista que queria obrigar empresas estrangeiras que atuam no Brasil (caso de Facebook, Google e Netflix, entre muitas outras) a instalar data centers para guardar dados de usuários brasileiros. O Marco Civil proíbe ainda que provedores de conexão à rede (empresas como Oi, Vivo, GVT e NET) armazenem registros de navegação de usuário. Por fim, entre as grandes disposições, o projeto de lei ordena provedores de serviços web a excluir definitivamente dados do usuário quando este encerra sua conta. Dessa forma, ficam protegidos fundamentos essenciais ao florescimento contínuo da internet brasileira — como concorrência, inovação, competitividade —, ao mesmo tempo em que o usuário ganha maior proteção no ambiente virtual.
A neutralidade de rede obriga os provedores de conexão a tratar de maneira igual toda informação que trafega na rede, sendo proibidas distinções em razão do tipo, origem ou destino dos pacotes de dados. O princípio impede, por exemplo, que os donos da infraestrutura da rede privilegiem alguns serviços (seus ou de terceiros ou os que podem pagar mais) em detrimento de outros, minando a concorrência e a inovação com uma espécie de pedágio discriminatório. É a neutralidade, portanto, que pode assegurar que novos produtos briguem com gigantes digitais estabelecidos sem serem prejudicados na linha de largada. Com a neutralidade, o melhor tem a maior chance de vencer.
A retirada dos artigos que tratavam dos data centers representou uma grande derrota para o governo — mas uma vitória de igual dimensão para o Brasil. A ideia de obrigar empresas estrangeiras de internet que atuam no país a manter dados de usuários brasileiros em grandes servidores locais fora incorporada ao Marco Civil no fim de 2013. Foi, segundo o relator do projeto, o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), uma exigência da presidente Dilma, que queria dar uma "resposta diplomática" à suspeita de espionagem de agências americanas a dados de empresas e cidadãos brasileiros. A proposta — que não encontra paralelo em nenhuma parte do mundo — foi duramente criticada por especialistas. Além de desconsiderar a infraestrutura planetária da web, não teria o resultado pretendido pelo Planalto: evitar a interceptação de dados privados pelos espiões. Um efeito colateral, contudo, era certo: o encarecimento de serviços locais.
A nova disposição sobre a guarda de dados de navegação do usuário é outro acerto do Marco Civil. O texto proíbe que provedores de conexão à internet armazenem registros que permitam saber quais sites foram acessados pelos usuários e quando. Hoje, os usuários podem escolher se circulam ou não pela web logados a sites como Google e Facebook, fornecendo informações de navegação a eles. Eles não têm a mesma escolha em relação aos provedores de conexão, daí a importância de estabelecer limites para o uso que essas empresas podem fazer dos registros de navegação dos seus clientes. A medida, portanto, é correta.
O que vai muda com o Marco Civil da internet
Como é hoje | Como vai ficar | |
---|---|---|
Neutralidade de rede |
É estabelecida por uma resolução da Anatel, que pode ser facilmente revogada | Provedores de conexão à web (Oi, Vivo, Net etc.) deverão dar o mesmo tratamento a todos os pacotes de dados que trafegam pela rede, não importanto conteúdo, origem ou destino |
Exclusão de dados do usuário por serviços web | Não há norma disciplinando a questão | Provedores de serviços (Google, Facebook, Netflix etc.) deverão excluir definitivamente dados do usuário quando este encerra sua conta |
Responsabilidade por conteúdos publicados | Provedores de aplicações (Google, Facebook, Instagram etc.) podem ser responsabilizados civilmente por conteúdos publicados em seus serviços por terceiros | Os provedores de aplicação só serão responsabilizados civilmente pelo conteúdo de terceiros se, após ordem judicial, se recusarem a retirar do ar o conteúdo em questão |
Guarda de dados de conexão | Acordo entre o Comitê Gestor de Internet (CGI.br) e provedores de conexão à rede prevê a guarda de dados por três anos | Os provedores de conexão deverão manter os registros de acesso do usuário por um ano |
Guarda dos registros de navegação de usuários | Tanto os provedores de conexão (Oi, Vivo, GVT, Net) quanto os de aplicação (Google, Facebook, Netflix etc.) podem guardar registros de navegação pelo prazo de três anos | Os provedores de conexão à internet serão proibidos de armazenar registros que permitam saber quais sites foram acessados pelos usuários e quando. Provedores de aplicação (Google, Facebook, Netflix etc.) podem guardar tais dados desde que não repassem as informações a terceiros |
Entre as maiores disputas travadas em público e nos bastidores está a que se deu em torno da neutralidade. As empresas provedoras de acesso à rede, contrárias ao conceito, defendiam o direito à discriminação dos pacotes de dado, o que, segundo elas, permitiria a criação de novos produtos a preços diferentes: um pacote para quem "baixa" muitos arquivos, outro para quem apenas acessa e-mails, e assim por diante. Não conseguiram. Mas os opositores da neutralidade na Câmara conseguiram impor uma mudança nesse capítulo do projeto de lei.
Comandado por Eduardo Cunha — líder do PMDB na Casa, porta-voz do chamado "blocão", grupo parlamentar que ao mesmo tempo apoia e faz oposição ao governo, e "simpatizante" da causa das teles — o grupo promoveu uma alteração no artigo que trata da regulamentação da neutralidade. E a mudança foi positiva. Originalmente, o texto dizia que a regulamentação seria feita por decreto do presidente da República. Com a nova redação, a regulamentação dependerá de consulta prévia ao Comitê Gestor da Internet e à Anatel.
Depois de ceder na questão da neutralidade, o governo capitulou no capítulo dos data centers. Os dois passos abriram espaço para a votação. Entre as razões que levaram o governo a ceder, está o fato de que o Brasil receberá, nos próximos dias 23 e 24, o The Global Multistakeholder Meeting on the Future of Internet Governance (Encontro Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança da Internet), que discutirá princípios de colaboração e regulação da rede em escala global. A avaliação é que a imagem do país sairia arranhada se o anfitrião do encontro tivesse fracassado na tarefa de aprovar legislação a respeito.
O Marco Civil começou a ganhar forma em 2009, com o objetivo de disciplinar o uso da rede, estabelecendo direitos e obrigações de seus atores. Em 2011, a versão final foi apresentada ao Legislativo e passou a ser discutida na Câmara. Representantes de empresas circularam pelos bastidores do poder tentando influenciar os rumos da discussão.
"Foram três anos de análise que permitiram que a gente chegasse a um texto melhor que o inicialmente apresentado. Ele foi aperfeiçoado por meio de audiências públicas e com contribuições de diversos setores", afirmou Molon, após a aprovação. "Essa é uma vitória principalmente do internauta, que passa a ter uma garantia que não tem hoje: a sua privacidade, a sua liberdade de expressão e também a neutralidade da rede."
O texto aprovado na Câmara também traz disposições gerais sobre importância da rede e os direitos dos usuários. É o caso dos artigos que tratam da privacidade e liberdade de expressão. Apesar de terem despertado a atenção do mundo nos últimos meses, em especial após a divulgação das suspeitas de espionagem americana, esses temas já são contemplados na Constituição Federal. Não há novidade, portanto.
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