A decisão da Crimeia de se separar da Ucrânia dá fôlego a movimentos de independência no Reino Unido, Itália, Espanha e Canadá e ameaça a estabilidade da geopolítica ocidental
Mariana Queiroz Barboza (mariana.barboza@istoe.com.br)Faltavam poucos minutos para as 11 horas de uma manhã quente de junho de 1914 em Sarajevo, a hoje capital da Bósnia-Herzegovina, quando o jovem separatista Gavrilo Princip disparou por duas vezes uma pistola semiautomática .380 de fabricação belga contra o arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do império Austro-Húngaro, e sua esposa, a duquesa Sofia. Ferdinand foi atingido na veia jugular e, Sofia, no abdome. Ambos morreram poucos minutos após serem alvejados. Princip fazia parte de um pequeno mas aguerrido grupo separatista que lutava apenas pela independência da Sérvia e da Bósnia do Império Austro-Húngaro, mas que, com seus tiros, fez com que a Europa e o mundo mergulhassem em um período de instabilidade, crises e guerras, que, em última instância, duraria mais de 30 anos e mataria quase 100 milhões de pessoas nos dois maiores conflitos armados da história da humanidade.
CONFRONTO
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XADREZ
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RETÓRICA
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MOTIVAÇÃO
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Embora os argumentos econômicos tenham importância central no debate, no cerne do separatismo estão as raízes culturais, étnicas e históricas e um sentimento de identidade. Em Veneza, capital do Vêneto, região ao norte da Itália, há uma série de iniciativas criadas para a conquista de sua independência e a volta da Sereníssima República de Veneza. Soberana até o século 18, quando foi tomada pelo expansionismo do imperador francês Napoleão Bonaparte, a República de Veneza era governada por um doge, auxiliado por um conselho de notáveis, e foi rival de Gênova no mar e do Ducado de Milão em terra. Capital do estilo barroco na música, de onde se sobressaíram as figuras dos compositores Antonio Lucio Vivaldi, Alessandro e Benedetto Marcello, Veneza inspira saudade de uma época de efervescência cultural. Na semana passada, do domingo 16 à sexta-feira 21, milhares de pessoas participaram de um plebiscito online que perguntava aos venezianos se eles queriam que o Vêneto se tornasse uma república federal independente e soberana. Outros grupos trabalham paralelamente recolhendo assinaturas para serem enviadas à União Europeia e desenvolvendo projetos políticos que reconheçam aos venezianos o direito de autodeterminação.
FORÇA
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Por mais legítimo que possa parecer o direito de uma maioria decidir seu alinhamento político, de acordo com seu senso de identidade, como aconteceu na Crimeia, a prerrogativa de autodeterminação é limitada no direito internacional. Há um consenso de que isso só pode ocorrer dentro de um processo democrático, transparente e aceito pelo governo central, como acontece no Reino Unido. Marcado há dois anos, depois de uma longa negociação entre o parlamento escocês e o britânico, um referendo de uma única questão deve decidir sobre a separação da Escócia em setembro.
Uma pesquisa da consultoria Ipsos Mori de março mostrou que 57% dos escoceses votarão pelo não, influenciados pelas consequências econômicas do rompimento com Londres. O debate público fez até as celebridades darem seus palpites. Histórico ativista pró-independência, o ator Sean Connery, nascido em Edimburgo, declarou: “Essa oportunidade é muito boa para ser perdida.” O cantor David Bowie pediu, em contrapartida, ao receber um prêmio em fevereiro: “Escócia, fique conosco”. Oficialmente, o governo britânico diz que a “Escócia é mais forte dentro do Reino Unido e que o Reino Unido é mais forte com a Escócia.” Mas o primeiro-ministro, David Cameron, tem adotado um discurso mais agressivo. O premiê conservador já alertou que, uma vez independente, a Escócia não poderá mais usar a libra esterlina e vai esbarrar em dificuldades para entrar na União Europeia.
A Espanha tem especial interesse em atrapalhar a adesão de novos Estados independentes ao bloco europeu. De norte a sul, diversos movimentos separatistas convivem em seu território. Não por acaso, o primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, tem bloqueado todas as tentativas da região autônoma da Catalunha de promover seu próprio referendo, apesar de metade da população concordar com a soberania de Barcelona. Com o agravamento da crise econômica na Espanha, onde o nível de desemprego, em 26%, é o dobro da média da zona do euro, o apoio à independência só cresceu. A Catalunha é altamente industrializada e calcula que 43 centavos de cada euro pago em impostos ao governo central não são revertidos para a região. Em novembro, os catalães votarão num referendo mesmo sem o consentimento de Madri, que denuncia a ação como inconstitucional. Isso não impede o avanço de medidas para a fundação de um novo Estado. No fim de fevereiro, por exemplo, o governo catalão criou uma nova agência de coleta de tributos e a classificou como um “embrião” para uma futura autonomia fiscal.
Instabilidade
Fora da Europa, o separatismo também entrou para a agenda. No Canadá, o Parti Québécois, liderado por Pauline Marois, coloca como seu principal objetivo fazer da província de Quebec um país. Com mais de 8 milhões de habitantes, que majoritariamente usam o francês como primeiro idioma, Quebec é a segunda província mais populosa do país. De acordo com os separatistas, quando livre, o Quebec garantirá a continuidade dos serviços oferecidos pelo governo federal, mas poderá reinvestir seus impostos de acordo com suas escolhas e valores, modernizar seu sistema político, incentivar a produção de energia hidrelétrica e se libertar da importação do petróleo. O partido propõe manter o dólar canadense como moeda oficial e influenciar a política monetária com um assento no conselho do banco central, mas é incerto se Ottawa permitiria isso. A participação de Quebec no Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta), bloco econômico de Canadá, México e Estados Unidos, seria discutida. Já houve dois referendos sobre a independência, em 1980 e 1995, que rejeitaram a proposta dos separatistas, mas o último teve uma diferença de pouco mais de um ponto percentual, o que alimenta a esperança de um resultado favorável agora.
Ainda é cedo para saber se a nova onda de separatismo que aflora no Ocidente vai, de fato, redefinir as fronteiras em áreas que pareciam fadadas a uma estabilidade perene, como na Europa Ocidental do pós-guerra. Mas uma coisa parece certa. O eterno desejo de independência dos povos continuará sendo um componente importante de instabilidade no mundo.
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