O desmoronamento de três edifícios no centro do Rio de Janeiro leva pânico à cidade e é um exemplo de como reformas irregulares podem acabar em tragédias
Juliana Dal Piva, Luciani Gomes, Michel Alecrim e Wilson Aquino
Quarta-feira, 25 de janeiro
O que era o escritório comercial de milhares de pessoas virou,
em segundos, uma montanha de entulho de cerca de 15 metros
Os cascalhos que caíam a cada vez que a porta do elevador se abria podem ter sido os sinais mais visíveis da tragédia que estava para acontecer na avenida Treze de Maio, no centro financeiro do Rio de Janeiro, às 20h30 da quarta-feira 25. “Era comum ver pedaços de reboco em cima daquele elevador”, lembra Cleyton da Silva Almeida, 22 anos. Sabe-se, hoje, que essas foram as últimas evidências de que algo estava errado dadas pelo clássico Liberdade, nome com o qual o prédio de 20 andares fora batizado há 71 anos. O diagramador Almeida, que trabalhava numa empresa de informática no local há quatro anos, teve a sorte de não estar dentro do prédio quando ele desabou arrastando duas outras edificações vizinhas, o Colombo, de dez andares, e um prédio de quatro andares. Até a sexta-feira 27, o saldo era de 15 desaparecidos, cinco feridos, 11 mortos e um cenário de horror que lembrava a queda das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York. Os escritórios comerciais viraram, em segundos, uma montanha de entulho de quase 15 metros. O País viu, na internet e na televisão, as cenas registradas por testemunhas e, em especial, a imagem gravada por uma câmera de segurança de um prédio próximo, na qual pessoas correm pela avenida enquanto uma gigantesca nuvem de fumaça avança e encobre carros, calçadas, árvores.
As cenas eram impressionantes. “O prédio parecia que estava escorregando, derretendo devagar, e de repente ruiu. Parecia uma bomba atômica”, diz Julieta Duarte Loureiro, vizinha dos prédios que caíram. A hipótese mais provável pelo esfacelamento do Liberdade é que obras internas no terceiro e no nono andares – que seriam irregulares, pois não estavam registradas no Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio (Crea-RJ) – tenham abalado a estrutura do edifício. O Rio vive um momento único de boom nos imóveis. Às vésperas da Copa do Mundo e da Olimpíada, a cidade registra uma das maiores valorizações imobiliárias de sua história. O preço médio dos escritórios, apartamentos e casas subiu 114% na cidade entre 2008 e 2011, segundo a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). O Rio está em reconstrução, as reformas prosperam, mas não se tem notícia de aumento de registro ou planejamento de obras. Nesse contexto, a imprudência pode ser fatal.
“Quando o problema acontece nos pilares de sustentação de um dos andares do prédio, esse incidente pode ocasionar a queda do edifício inteiro, sim”, diz Fernando Amorim, professor do departamento de engenharia de estruturas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele adverte, no entanto, que esse problema não deve ser motivo de pânico: “Isso não é comum.” O engenheiro Marcelo José Bianco, especializado em estruturas e desastres naturais, compara a queda de um prédio a de um avião. “Assim como uma aeronave é capaz de continuar voando com apenas uma turbina até pousar, um prédio não desaba por causa de um único fator. No geral, há uma série de problemas estruturais por falta de manutenção”, afirma o especialista. É preciso dar atenção aos sinais, pois um prédio não cai de repente. “Porta que não abre, janela emperrada, parede rachada, isso tudo deve ser investigado”, diz Orlando Celso Longo, coordenador de pós-graduação de engenharia civil da Universidade Federal Fluminense (UFF). Lamentavelmente, os cascalhos, provavelmente produzidos pelas reformas no terceiro e no nono andares, no elevador do Liberdade não receberam a atenção devida.
Tão logo soube da tragédia, o prefeito Eduardo Paes (PMDB) seguiu para a área dos desabamentos, onde permaneceu por toda a madrugada acompanhando os serviços de resgate. O governador Sérgio Cabral (PMDB) decretou luto oficial de três dias no Estado e a presidenta Dilma Rousseff fez questão de se manifestar publicamente. “Gostaria de me solidarizar com o povo do Rio de Janeiro, principalmente com as famílias daquelas pessoas que foram atingidas por essa catástrofe. Acompanhei todo o esforço que o governo do Estado e a prefeitura estão fazendo e transmiti a eles também a esperança de que sejam encontradas pessoas com vida”, disse ela na quinta-feira 26, quando participava do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre.
Dois dias depois do desabamento, eram remotas as chances de encontrar sobreviventes nos escombros. A maioria dos desaparecidos participava de um treinamento interno da empresa Tecnologia Organizacional (TO), no sexto andar do edifício Liberdade, como a auxiliar financeira Kelly Meneses, 28 anos. “Mãe, não morre, fica comigo! Te amo do fundo do meu coração”, postou na rede social Facebook, na quinta-feira 26, Catharina, filha de Kelly, que está desaparecida. Dos que estavam dentro do prédio, poucos conseguiram escapar, como o pintor de paredes Alexandro Santos, salvo porque entrou no elevador (leia à pág. 79). Outros sobreviveram por sorte.
Gilberto Figueiredo, 31 anos, dono de uma empresa que prestava serviços no edifício Liberdade, procurou sair do local logo que ouviu os primeiros estalos. “O elevador balançou muito e de modo estranho enquanto descia. Quando vi a poeira, só pensei em sair de lá”, contou. Antes de deixar o local da tragédia, o operário André Moraes protagonizou uma cena heroica: resgatou Cristiane do Carmo, sua chefe, que havia caído quando tentava fugir. “Peguei ela pelos braços e fui arrastando”, contou. Segundo o operário, ela foi atingida por uma pilastra. Cristiane passou por uma cirurgia e permanecia internada no Hospital Casa de Portugal. Até a sexta-feira 27, a poeira ainda não havia se dissipado no centro do Rio e os que desapareceram sob os escombros continuavam a ser lembrados por companheiros que sobreviveram. Como o gerente de recursos humanos Celso Renato Cabral, 44 anos, que foi chamado, pelo colega Damião da Silva Alves, para ir embora – mas, como queria concluir, antes, uma tarefa, preferiu ficar. “O Celso não gostava de ir para casa e deixar o trabalho incompleto. Ele lutou muito para estudar e arrumar um bom emprego”, contou Alves. Ambos são de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio. A infeliz história é parecida com a da empresária Ana Cristina Faria, 55 anos, que permaneceu no escritório de contabilidade mesmo depois da saída do marido, Roberto Flaviano, de quem era sócia. “Ela trabalhava havia mais de 30 anos. Era costume dela sair bem tarde”, contou o primo André Luiz Souza.
Todos os amigos e parentes das vítimas que compartilham do mesmo drama passaram os últimos dias na Câmara Municipal, transformada em uma espécie de QG pós-tragédia, amparados por psicólogos e assistentes sociais. Lá, fazem a mesma pergunta: Por que aconteceu isso? De quem é a culpa? A Polícia Civil abriu inquérito para apurar as responsabilidades do desabamento dos três prédios, mas vai demorar algum tempo para que se concluam todas as investigações e perícias e se aponte um responsável, ou vários. Por enquanto, as obras realizadas em dois diferentes andares do Liberdade são consideradas as causas mais fortes. A possibilidade de ter ocorrido uma explosão por vazamento de gás foi descartada pelo prefeito Paes.
A empresa Tecnologia Organizacional (TO), que ocupava os terceiro, quarto, sexto, nono, décimo e 14º andares do edifício 44 da avenida Treze de Maio, realizava obras em dois andares simultaneamente, o nono e o terceiro. No nono andar, a reforma capitaneada por Cristiane do Carmo, uma das vítimas do desabamento que ainda está hospitalizada, seria apenas a troca do piso e pintura das paredes, mas a do terceiro andar era radical e pode ter atingido alguma viga ou pilar estrutural. “Quando a porta estava aberta podia-se ver que a sala ficou imensa e bem ampla, sem paredes”, contou Marcelo Ferreira, 41 anos, que tinha uma loja de montagem de óculos no 11º andar. “Derrubaram todas as paredes. Ficou parecendo um loft”, contou o estudante Marcel Lima, 22 anos, aluno de um curso de informática que funcionava no endereço.
A empresa nega qualquer irregularidade. O analista de sistemas Sérgio Alves, um dos cinco sócios da TO, classificou de “absurdo completo” a acusação de que a obra era irregular. “O síndico foi informado, pediu um laudo, contratamos um engenheiro para isso e a obra tinha uma arquiteta responsável”, diz ele. “Era nossa terceira obra. Fui informado pela arquiteta de que, como não seria uma obra estrutural, não precisava de autorização do Crea. Ninguém seria louco de mexer na estrutura, tirar uma viga.” O síndico, Paulo Renha, deverá comparecer à delegacia no início da semana para prestar depoimento. Na sexta-feira 27, porém, Geraldo Beire, seu advogado, afirmou que apenas parte da documentação exigida pela administração do edifício fora entregue.
O presidente do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do Rio (Crea-RJ), Agostinho Guerreiro, informou que as obras internas realizadas no Liberdade não eram registradas no conselho, conforme exigido em casos de alteração estrutural. O último registro naquele endereço data de 2008. “Existe uma tendência de se sair quebrando paredes de forma irresponsável. A estrutura de um prédio equivale ao esqueleto humano. Dependendo do pedaço removido, o corpo não se mantém de pé”, diz ele.
Guerreiro garantiu que, caso o profissional responsável pelas reformas seja do Crea, poderá ser punido através do código de ética e/ou perder o credenciamento e o direito de continuar trabalhando. Nem todas as obras precisam de registro junto ao órgão ou mesmo autorização da prefeitura. Mudança de revestimento, de cor ou trocas de portas são reformas cotidianas, que podem ser feitas por leigos. No entanto, qualquer modificação estrutural no imóvel, como a derrubada de uma parede, tem que ser supervisionado por um engenheiro civil com registro profissional. O Crea utiliza o método da Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), um sistema online em que o órgão acompanha tudo o que é feito na construção. Na prática, o engenheiro se responsabiliza pela estabilidade da construção após as modificações. A prefeitura carioca só solicita que seja feito registro junto à Secretaria de Urbanismo quando a obra acarretar uma modificação de área. Um exemplo disso é quando o proprietário amplia o espaço construído.
O fato de os prédios serem geminados também ampliou a tragédia, pois o Liberdade arrastou os edifícios de dez e de quatro andares. “Esse é um conceito antigo de construção”, diz o engenheiro Bianco. “Quando são grudados, a chance de um cair e levar o outro é enorme. O mesmo acontece numa situação de incêndio. O fogo derruba paredes, de forma que o prédio ao lado do que está pegando fogo é forte candidato a ser o próximo a incendiar.” Quando o Liberdade começou a desabar, cerca de 40 pessoas que estavam no edifício vizinho – que permaneceu inteiro – entraram em pânico. Com as escadas obstruídas por escombros, correram para a cobertura, de onde foram resgatadas pelos bombeiros.
A retirada dos restos dos três prédios que desabaram deve durar dois meses, de acordo com a previsão do secretário estadual de Defesa Civil, coronel Sérgio Simões. Cerca de 350 funcionários da prefeitura e 60 bombeiros trabalham na busca de vítimas e na retirada de escombros. Nas primeiras 48 horas, oito retroescavadeiras recolheram mais de 15 mil toneladas de entulhos e os caminhões fizeram cerca de 400 viagens para levar esse material ao local de armazenamento, onde será feito o trabalho pericial. O desmoronamento no coração financeiro carioca ganhou as manchetes mundiais. Palco de eventos esportivos internacionais como a Olimpíada de 2016 e uma das cidades que sediarão jogos da Copa do Mundo em 2014, o Rio quer ser citado em jornais estrangeiros por motivos mais nobres, e não por imprudências como essa.
Colaboraram: Débora Rubin e Paula Rocha
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