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sábado, 9 de novembro de 2013

"Eu saí do Bolsa Família"

Porta de saída do principal programa social brasileiro já é uma realidade. Em dez anos, 1,7 milhão de famílias abriram mão do benefício para caminhar com as próprias pernas

Josie Jeronimo
Mais importante programa social do Estado brasileiro, o Bolsa Família completa dez anos de existência como uma iniciativa louvada não só pelo governo, como também pela oposição. Considerado imprescindível por todos os candidatos a ocupar a Presidência da República no próximo ano, o programa tem se revelado uma política pública de sucesso político, econômico e também cultural. Ajudou brasileiros a se reconciliarem com uma dívida social acumulada ao longo de séculos de uma história de exclusão, permitiu a ampliação do mercado interno e, principalmente, conseguiu sepultar de uma vez por todas a alegação de seus principais críticos de que o programa de transferência de renda estimularia os beneficiados a não procurar emprego e melhores condições de vida. Nos últimos anos, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social, milhares de famílias procuraram repartições municipais para entregar seu cartão verde-amarelo, símbolo do programa, e assinar uma declaração de próprio punho na qual afirmam que não têm “mais necessidade de receber o beneficio”. Em uma década, 1,7 milhão de chefes de família – em sua maioria mulheres – abriram mão de um benefício mensal médio da ordem de R$ 250 para caminhar com suas próprias pernas, sem ajuda do Estado.
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ISTOÉ conversou com quatro antigos beneficiários do programa que puderam se emancipar do auxílio do Estado. Ouviu relatos de famílias que conquistaram aumento de renda e qualidade de vida. As histórias de vida de bolsistas do Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste mostram que a porta de saída do programa não é um milagre, mas uma arquitetura realista quando famílias que enfrentam a pobreza em seus múltiplos aspectos – econômico, educacional, médico, social – recebem amparo e orientação para transformar vocações profissionais em fonte de renda. “Há quatro anos, fiz um curso oferecido pelo Sebrae e pelo governo do Estado e abri um ateliê em casa para artesanato. O negócio cresceu e hoje temos uma loja de joias, na avenida principal da cidade.  Nós fomos os primeiros a entregar o cartão, aqui na região. O gestor ficou admirado”, conta Osmarina Uchoa, ex-beneficiária do Bolsa Família, moradora de Pedro II, município a 200 quilômetros de Teresina, no Piauí.
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Outro ex-bolsista, Samuel Rosa Rodrigues, trilhou um caminho parecido com o de Osmarina. Era flanelinha e, com a ajuda do Bolsa Família, conseguiu montar um lava-jato. “Fiquei muito orgulhoso quando pude devolver o cartão do Bolsa Família. Eu quero que lá na frente o meu filho saiba dessa história e diga: meu pai é um lutador”, afirmou.
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A exemplo de Osmarina e Samuel, a maioria do 1,7 milhão que devolveu o cartão do programa se tornou microempreendedor individual. Atualmente, 290 mil ex-bolsistas sustentam suas famílias trabalhando no setor de serviços. Outros 760 mil receberam orientação e ajuda para conseguir microcrédito e abrir pequenos negócios. De tanto oferecer cursos aos chefes de família e permanecer com vagas abertas, o governo percebeu que focar as ações do programa nas mulheres multiplicava os resultados. Hoje, 93% dos titulares são do sexo feminino e o mercado privado começa a oferecer cursos às beneficiárias.
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Entre tantos passos intermediários na consolidação do programa, tem-se como certo que em 2006, quando teve início a formação do Cadastro Único, para verificar a situação social das famílias de todo o País, foi possível atravessar uma fronteira capaz de separar o assistencialismo convencional daquilo que se considera uma política social atualizada e efetiva, cuja base é um esforço pela autonomia dos cidadãos e não pela preservação de sua dependência. O coordenador-executivo da ONG Articulação pelo Semiárido (ASA), Naidson Baptista Quintella, cita o exemplo das cisternas para lembrar como a articulação do Ministério do Desenvolvimento Social e Integração Nacional consegue mudar a vida de famílias que vivem em áreas de seca severa. Com os recursos do Bolsa Família, que variam de R$ 70 a R$ 306, a família sai de uma situação de mendicância e de mazelas – às vezes incuráveis – que afeta a vida de cada um de seus membros. O acesso à água faz o beneficiário começar a sonhar em cultivar ou criar algo em suas terras para sustento da família ou gerar renda. “Antes, nos períodos de estiagem, nós sempre nos deparávamos com filas de pedintes e saques em armazéns,” lembra Naidson Quintella. Outro elemento notável é de natureza política. Impessoal, acessível a toda família que preenche um conjunto de requisitos idênticos, sem distinção de qualquer tipo, o programa também contribuiu para a derrocada dos coronéis que sempre dominaram a política das regiões mais atrasadas do País – quase sempre, as mais miseráveis – por meio da distribuição de favores de sobrevivência em troca de votos e de submissão política. Embora tenha se transformado numa alavanca poderosa para a popularidade de Luiz Inácio Lula da Silva, no plano local o benefício não tem nome nem rosto. “É um crédito em conta, que não se vincula a ninguém,” afirma Naidson Quintella.
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Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado este ano aponta que R$ 1 de aplicação no Bolsa Família gera crescimento de R$ 1,78 no Produto Interno Bruto (PIB). Não é de surpreender, assim, que nos anos de 2007 e 2008, quando a economia brasileira registrou grande expansão, com aumento de capital circulante, o número de beneficiários do programa sofreu redução. Um dos pioneiros na criação do Bolsa Família, o economista Ricardo Henriques, coordenador do grupo que criou o benefício, afirma que o movimento é circulante. “É mão dupla. O programa impacta a economia e a economia impacta o programa. A economia aquecida pode gerar o impacto do aumento de renda.”
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Nas regras de concessão do Bolsa Família, não existe tempo-limite para o recebimento do benefício. As famílias podem ficar o tempo que necessitarem. Mesmo assim, o governo segue oferecendo cursos de capacitação para tentar abrir portas a quem teve poucas oportunidades. Até agora, só 5% dos beneficiários terminaram algum tipo de qualificação profissional proporcionado pelo governo. Na pasta de Educação, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego (Pronatec) oferece cursos especialmente direcionados aos bolsistas. Das 918 mil vagas abertas a beneficiários do Bolsa Família, 753 mil foram preenchidas. As letras e os números ainda assustam num universo em que 25 mil dos beneficiários se declaram analfabetos. Henriques conta que, durante a criação do programa, o objetivo de longo prazo era dar educação aos filhos de famílias comandadas por pais que não tiveram nenhuma educação formal. “O programa tem três dimensões: o impacto imediato da garantia alimentar, a transferência de renda para famílias e territórios e o impacto de longo prazo, que é a mudança da trajetória educacional de crianças filhas de pais analfabetos.” Sempre que ouve a observação de que muitas pessoas demoram para encontrar a porta de saída, o sociólogo Quintella rebate: “As pessoas vão caminhando em seu próprio tempo, não no tempo ditado pelos gabinetes. É uma tarefa para uma geração”.
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Foi caminhando no seu próprio ritmo que Iolanda Silva, moradora da periferia de São Paulo, conseguiu mudar de vida. Depois de perder a guarda dos filhos, por falta de condições para sustentá-los, cadastrou-se no Bolsa Família e usou o dinheiro para reconstruir sua vida. “Consegui ter os meus cinco filhos de volta. O benefício do Bolsa Família ajudou muito. Todos os meus filhos estão estudando e o meu sonho, agora, é fazer um curso de enfermagem e melhorar minha renda”, disse.
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A socióloga Amélia Cohn lembra que o Bolsa Família não faz parte do texto constitucional, por isso, as reservas orçamentárias do programa dependem exclusivamente da vontade do presidente em exercício, o que muitas pessoas consideram preocupante. A necessidade de garantir o Bolsa Família na Constituição voltou à agenda política depois que, em julho deste ano, rumores sobre o cancelamento do programa produziram uma corrida aos terminais eletrônicos da Caixa Econômica Federal. Em um fim de semana, R$ 152 milhões foram sacados. A Polícia Federal e a Caixa Econômica – banco que faz a gestão financeira do programa – foram acionadas para rastrear a origem do boato e possíveis falhas que permitiram os saques antecipados de benefícios, mas até hoje não conseguiram explicar exatamente o que motivou o desespero de mais de 900 mil pessoas.
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