Por que a tragédia do Mineirão representa uma oportunidade única para o País se livrar das mazelas que há muito tempo corroem o futebol brasileiro
Amauri Segalla (asegalla@istoe.com.br)
Se fracassos
servem para alguma coisa, é para lembrar que está na hora de promover
mudanças. O inacreditável 7 a 1 da Alemanha contra o Brasil foi uma
desonra para a camisa mais vitoriosa da história, mas pode significar
também uma oportunidade. Se tem algum sentido, a bordoada escancarou que
algo vai muito mal com o futebol brasileiro. Claro, o técnico Luiz
Felipe Scolari cometeu uma série de barbaridades – a paralisia diante do
blitzkrieg alemão, a soberba mesmo depois da derrota acachapante, a má
escalação, a má convocação, e muitas outras –, mas ele é apenas parte de
um problema muito maior. Corrupção, gestão amadora, clubes insolventes,
êxodo de jogadores, estádios vazios, campeonatos esdrúxulos que vez ou
outra terminam no tapetão, tudo isso seria ignorado não fosse a
humilhação imposta pelos alemães. É horrível perder de 7 a 1,
principalmente se você jogar em casa e estiver numa semifinal de Copa
do Mundo, mas o Brasil precisava de um choque de realidade, por mais
cruel que ele fosse. “O que acontece dentro do campo tem relação com o
que acontece fora, está ligado à direção do futebol brasileiro”, diz
Tostão, craque do time tricampeão em 1970 e hoje um lúcido crítico. “É
um sistema viciado, incompetente e promíscuo, baseado numa estrutura
política de troca de favores que começa desde as categorias de base. A
derrota só reflete isso.”
DE SAÍDA
Felipão e Parreira deixam o Mineirão depois da goleada para a Alemanha:
eles apostaram na mística da Seleção e não no trabalho e planejamento
Em outras palavras: o futebol brasileiro
virou uma sombra do que foi no passado graças aos péssimos serviços
prestados pelos seus gestores. A CBF, a entidade que comanda o esporte
no País, é um meio para o enriquecimento de cartolas e não para apoiar
clubes e atletas. Basta um exemplo para comprovar isso: Ricardo
Teixeira, presidente da CBF entre 1989 e 2012, renunciou ao cargo para
fugir das denúncias de corrupção que associavam seu nome a negócios
espúrios realizados com a Fifa. Sucessor de Teixeira, José Maria Marin
não tem demonstrado disposição para deflagrar as mudanças necessárias,
responsabilidade empurrada para Marco Polo Del Nero, que assumirá a
presidência da CBF em 2015. Por eles, tudo seria mantido como está, com a
entidade rica e clubes pobres, mas ninguém imaginou que os alemães
fariam o que fizeram no estádio Mineirão. Como deixar tudo no mesmo
lugar depois de uma humilhação dessas?
É preciso virar o futebol brasileiro do
avesso, a começar pela formação de jogadores. Por que, afinal, aparecem
cada vez menos Zicos e Rivellinos? O que explica o fato de o Brasil ir a
campo, em uma Copa disputada em seu próprio território, com apenas um
craque de verdade? É óbvio que há um problema sério na formação de
talentos, e isso se deve principalmente à mercantilização cada vez mais
precoce. As categorias de base dos principais clubes brasileiros são
dominadas por empresários e se transformaram em balcões de negócios
entre pais, agentes e técnicos de futebol. Hoje em dia, você só consegue
entrar num sub-12, num sub-15 de um time grande se pagar propina para
um empresário, que, por sua vez, suborna o diretor do clube. Não importa
mais se o garoto é bom de bola. O que interessa é que ele possa gerar
algum dinheiro.
Mesmo quando o talento excepcional se
impõe, como é o caso de Neymar, as deficiências na formação ficam
evidentes. Na entrevista coletiva da quinta-feira 10, Neymar disse que
futebol é ensinado de forma equivocada no Brasil. “Eu fazia coisas em
casa que no treino não fazia”, disse o camisa 10 da Seleção. “Aprendi
muita coisa de maneira errada.” Nossos técnicos, mesmo aqueles que
deveriam trazer conceitos inovadores, como os que têm a rara chance de
dirigir um time grande, pararam no tempo – Felipão é o exemplo acabado
da falta de sintonia com os novos tempos. “Há um desinteresse das
federações e da CBF na promoção de cursos para técnicos e na realização
de intercâmbio com treinadores estrangeiros”, diz José Alberto Cortez,
coordenador do grupo de estudos de futebol da Universidade de São Paulo.
“Na Alemanha, quando perceberam que o futebol não atingia os objetivos,
foram criados vários núcleos de treinamento com profissionais
especializados.”
A Alemanha é o modelo mais pulsante do que
pode ser feito com planejamento, organização e boas ideias. Quando a
seleção perdeu a final para o Brasil na Copa de 2002, os cartolas do
país fizeram um pacto: era preciso mudar tudo para que os alemães
voltassem a rivalizar com os gigantes do futebol. O primeiro passo foi
fazer uma varredura na situação financeira dos clubes, expurgar a
corrupção e investir pesado no que realmente interessa – os jogadores.
No período de dois anos, foram construídos 200 centros de excelência
esportiva no País (hoje já são quase 400), onde trabalham técnicos,
fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, educadores, médicos e o
pessoal jovem das universidades que têm a missão de sugerir formas de
aprimorar a tática e a técnica dos futuros atletas. Uma parceria com a
Universidade de Colônia resultou na elaboração minuciosa de estatísticas
sobre o universo do futebol. Os acadêmicos passaram a contabilizar
coisas como “chutes certos para o gol”, “nível de estresse”, “potencial
criativo” e “capacidade de concentração.” Depois, as informações são
transmitidas aos treinadores, que detectam o que precisa ser melhorado
em cada jogador. Dos 23 atletas da Alemanha convocados para a Copa no
Brasil, 22 foram formados assim. A exceção é o artilheiro Klose, o
veterano de 36 anos que começou a carreira antes desse processo.
FIASCO
Marin, presidente da CBF, e treino da Seleção na Granja Comary:
sucessão de erros culminou no maior vexame do futebol brasileiro
Enquanto isso, no Brasil, a máxima de que
“brotam talentos naturalmente” acomodou uma geração inteira de gestores e
treinadores. Na cabeça arcaica deles, nada precisava ser feito, porque
uma hora ou outra novos Romários iriam aparecer. Pior ainda: muitos
técnicos continuaram a dar valor excessivo para valores etéreos. Na
Copa, segundo dados da imprensa esportiva, o Brasil foi o time que menos
treinou. Em vez de trabalhar variações táticas e estudar os
adversários, Felipão preferiu confiar o destino da Seleção para a sua
santa preferida, para o casaco que ele jamais tirou por ser um amuleto
da sorte, para frases de autoajuda marteladas diariamente na cabeça dos
jogadores.
Carlos Alberto Parreira, o auxiliar de
Felipão, agarrou-se à mística da Seleção e não à realidade nua e crua.
“O futebol tem hierarquia”, “a camisa pesa”, “a amarelinha vale ouro”
são frases que ele repetiu o tempo todo, em vez de explicar, digamos, à
zaga brasileira como bloquear os avanços dos atacantes alemães. Para
Carlos Alberto Torres, o capitão do tri, Felipão esqueceu que ganhou o
penta porque tinha no time gente como Ronaldo Fenômeno, Ronaldo Gaúcho,
Rivaldo e Cafu, e não porque ele tem mais fé que os adversários. É esse
modo de agir que flerta com o amadorismo que precisa ser combatido. Até a
escolha da Granja Comary, em Teresópolis, como local de treinamento da
Seleção foi uma estupidez. O Brasil treinou com temperaturas em torno de
15 graus para jogar em fornos como Fortaleza. Felipão disse que não
preparou variações táticas porque a Granja não permite privacidade e
havia o risco de os rivais desvendarem as armas brasileiras. Ora, por
que razão insondável ele então aprovou Teresópolis?
Mas não deve ficar apenas na conta dos
técnicos as explicações para o fracasso brasileiro. “A origem do
problema está no organograma dos clubes”, diz Fernando Ferreira,
fundador da Pluri Consultoria, especializada no mercado esportivo. O
fato de dirigentes esportivos não serem remunerados no Brasil leva a
duas situações: à dedicação parcial ao clube e, mais grave ainda, à
corrupção. “Essa estrutura amadora não combina com o grande negócio que é
o futebol”, diz Ferreira. País que é referência mundial neste esporte, o
Brasil está perdendo a corrida não apenas para os grandes centros, como
Alemanha, Espanha e Inglaterra, mas até para emergentes. Um estudo da
Pluri concluiu que o campeonato brasileiro tem valor de mercado
calculado em 672 milhões de euros, atrás de nações sem brilho
futebolístico como Turquia e Ucrânia. No ano passado, o campeonato
brasileiro foi o que mais se desvalorizou, com queda de 28%. Os que mais
avançaram em valor de mercado foram China (alta de 55%) e Estados
Unidos (36%). Com a saída cada vez mais precoce dos talentos brasileiros
e uma provável ressaca pós-Copa, há o risco de o cenário piorar.
A boa notícia é que está diante dos
gestores do futebol brasileiro uma oportunidade única. Não há mais
desculpas para não mudar. Por que não promover uma ruptura completa? Por
que não contratar um técnico estrangeiro em vez de ficar na mesmice?
Por que não cobrar dos clubes o saneamento de suas finanças? Por que não
dar espaço para moleques talentosos, em vez de transformar a formação
num negócio rentável? Por que não investir na preparação, em vez da
magia? Marin, Del Nero, Felipão, Parreira e companhia precisam agora
responder a tudo isso.
Com reportagem de Camila Brandalise
Foto: Alex Livesey/ FIFA/Getty Images, Michael Dalder/Reuters, Buda Mendes/LatinContent/Getty Images
Foto: Alex Livesey/ FIFA/Getty Images, Michael Dalder/Reuters, Buda Mendes/LatinContent/Getty Images
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