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sábado, 25 de janeiro de 2014

Nada mudou

Um ano após a tragédia que matou 242 pessoas na boate Kiss e escancarou as condições precárias das casas noturnas brasileiras, ISTOÉ visita baladas do eixo Rio-São Paulo e constata que elas continuam perigosamente inseguras

Mariana Brugger, Raul Montenegro, Simone Felício e Wilson Aquino
Depois que passa, a gente se dá conta do absurdo que é um jovem entrar num buraco daqueles e sair morto”, diz Elaine Gonçalves, que há um ano perdeu dois filhos no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (RS). No dia 27 de janeiro de 2013, depois de um dia de calor intenso no interior gaúcho, 242 pessoas morreram na tragédia que escancarou ao País as condições precárias das casas noturnas brasileiras. Na época, muitas promessas foram feitas – com estabelecimentos e autoridades de todas as esferas se comprometendo a endurecer medidas de combate ao fogo no território nacional. Um ano depois, porém, quase nada saiu do papel e muitos dos “buracos” continuam funcionando sem condições mínimas de proteção. Em um deles, visitado por ISTOÉ, uma pessoa pode se deparar com uma parede de tijolos ao abrir a porta de emergência que deveria levá-la ao lado de fora.

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HORROR
27 de janeiro de 2013: pânico em Santa Maria na madrugada
da tragédia. Um ano depois, ninguém foi punido
A imagem que beira o surreal pode ser vista numa casa de shows localizada entre os bairros de Pinheiros e Vila Madalena, dois dos mais badalados de São Paulo. A reportagem foi a boates da capital paulista e do Rio de Janeiro na semana passada para verificar as condições de segurança das baladas, o que já havia feito no ano passado, e constatou que pouca coisa mudou.
 Naquela madrugada de domingo em Santa Maria, a existência de uma única saída foi uma das causas apontadas por especialistas para o número de mortes. A maioria das casas noturnas visitadas possui problemas nas saídas de emergência. Na Ó do Borogodó, que emparedou um dos acessos à rua, instrumentos musicais bloqueavam outra porta da casa. De acordo com o proprietário Leonardo Gola, o prédio possui outros dois acessos que são suficientes. No pub Kia Ora, na zona oeste paulistana, uma delas leva à cozinha, que, por sua vez, termina numa passagem trancada. No Beco 203, na rua Augusta, centro de São Paulo, uma das saídas, ao lado do fumódromo, estava fechada no dia da visita. Os frequentadores também dariam com a cara na porta de emergência do Maavah, bar da zona leste paulistana que toca música sertaneja e pagode. ISTOÉ não conseguiu contato com Beco 203 e Maavah. O Kia Ora disse que um botão ao lado da porta que dá para a rua, quando pressionado, libera a passagem. No Rio, o caso mais grave foi o da 021 Club, na Barra, cuja entrada é cercada por grades de metal fixas, empecilho invencível para sair do lugar em caso de incêndio. Apesar das três saídas de emergência, não há sinalização, aponta Vinicius Cavalcante, diretor da Associação Brasileira de Profissionais de Segurança no Rio, que acompanhou a reportagem. Procurada, a casa não se pronunciou. No centro carioca, o Pampa Grill tinha mesas e uma porta de metal obstruindo saídas.
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Edgar Vargas, gerente do local, reconheceu as falhas. A Casa da Matriz, em Botafogo, chegou a ser fechada por dois dias no ano passado devido a problema de alvará, mas se regularizou. Na quarta-feira 22, entretanto, acontecia uma festa que tinha, na decoração, uma piscina de plástico na saída. “Confesso que não sabia, mas vamos alertar as produções”, afirma Léo Feijó, sócio. No inferno da Kiss, sobreviventes relataram que muita gente foi parar no banheiro pensando se tratar de uma rota de fuga. No Studio RJ, em Ipanema, há a mesma armadilha: a porta do fumódromo, que leva a um cômodo fechado, parece uma saída de incêndio. A boate não se pronunciou.
 Outro problema grave é a lotação. Na boate Kiss, testemunhas contaram que havia pelo menos mil pessoas no dia do incêndio, apesar de a casa oficialmente comportar 691. Em São Paulo, num cartaz da balada D.Edge, na zona oeste, está escrito que lá cabem 360 pessoas. Funcionários ouvidos pela ISTOÉ, no entanto, afirmam que a boate recebe até dois mil frequentadores. Na segunda-feira 20, a reportagem contou entre 200 e 300 pessoas só no deque superior. Em nota, a D.Edge afirmou que possui autorização para abrigar 609 frequentadores. Na Fosfobox, em Copacabana, a placa afixada do lado de fora consta a capacidade de 100 pessoas, mas há muito mais gente do lado de dentro. Cabbet Araújo, dono, explica: “Nossa licença permite 100 pessoas por pavimento.” Os materiais também são item fundamental na segurança. Na tragédia do ano passado, foi a espuma inflamável do teto que pegou fogo depois que o vocalista da banda Gurizada Fandangueira acendeu um sinalizador durante o show. Na The History, localizada na zona oeste paulistana, a reportagem flagrou uma garrafa com vela que soltava faíscas, o que não é recomendado pelos bombeiros – a administração afirmou que a chama não oferece riscos. Na casa noturna Alberta #3, no centro de São Paulo, o teto da pista de dança também é de espuma. A fiação e uma tomada elétrica ficam próximas ao forro, mas a assessoria informa que o material é antichamas. Já na carioca Rio Music, fios expostos e assentos com espuma podem ajudar na propagação de incêndios. “Ainda existem elementos de papel na decoração”, afirma Jaques Sherique, engenheiro especializado em segurança e vice-presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio (CREA-RJ), que percorreu endereços noturnos com a ISTOÉ. Ulisses Xavier, sócio, informou que a casa já passou pelo processo de adequação e está em dia com os bombeiros. “Um grande problema é que esses produtos não são avaliados. Na área da saúde você não vê remédios sendo vendidos sem teste” afirma José Carlos Tomina, superintendente do Comitê Brasileiro de Segurança Contra Incêndio da ABNT.
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 Muitas das casas do País funcionam sem alvará. Em São Paulo, segundo a prefeitura, foram emitidas ou revalidadas 178 permissões para locais com capacidade superior a 500 pessoas em 2013. Mais 224 estabelecimentos estão abertos aguardando regularização. No Rio, 2.600 “casas de diversão” foram vistoriadas pelo município. Desses, 825 foram autuados por funcionarem sem alvará ou em desacordo com a documentação. Belo Horizonte (MG) tem apenas 34 locais de shows completamente regulares, dos 264 vistoriados em 2013. Entre os 201 estabelecimentos visitados em Porto Alegre (RS), 98 possuíam licença e 71 estão fechados por falta de documentação. Já em Salvador (BA), a prefeitura fiscalizou 64 casas noturnas no ano passado – 20 foram interditadas, mas 12 já estão funcionando. Estudiosos afirmam que há pouca gente para fazer a fiscalização. Somente 14% dos municípios brasileiros têm Corpos de Bombeiros, o principal parceiro das autoridades nesse trabalho.
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Desde o caso Kiss, a legislação referente ao tema avançou um pouco. O Rio Grande do Sul aprovou regras mais duras no ano passado, como uma maior rigidez na obtenção de alvarás de prevenção contra incêndio, por exemplo, mas elas vão demorar meses para sair do papel. Em Santa Catarina, bombeiros lutam pelo poder de interditar imediatamente locais que ofereçam riscos – o que já acontece no Rio. Tomina, da ABNT, diz que é muito complicado não haver uma legislação nacional sobre o tema. “Os Estados têm sua legislação própria. Isso é muito ruim porque não há um padrão.” Depois do desastre de Santa Maria, a Câmara dos Deputados começou a discutir um projeto de lei para sanar essa questão. A proposta ficou pronta em julho, mas aguarda votação no plenário. O deputado Paulo Pimenta (PT-RS), que coordenou uma comissão sobre o assunto na Casa, afirma que a demora se deu por causa da análise de assuntos com urgência constitucional – que têm prioridade – no ano passado. Para ele, porém, é preciso aproveitar a retomada do interesse para votar a matéria. “O Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), presidente da Câmara, fez a promessa de colocar em votação na primeira semana de fevereiro.”
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Uma das promessas do projeto federal é responsabilizar agentes públicos que não cumprirem suas obrigações de fiscalização. Um ano depois da Kiss, esse é um dos pontos mais incômodos para os familiares das vítimas. “Ficou um sentimento de impunidade”, afirma Helena Rosa da Cruz, mãe de duas vítimas do incêndio. Processos de homicído correm contra dois integrantes da banda e dois proprietários da boate, que chegaram a ser presos, mas foram soltos meses depois. Outros dois inquéritos, sobre poluição sonora e fraude no licenciamento, devem ser concluídos em fevereiro. Para que outras famílias do País não sofram o mesmo que as de Santa Maria, Tomina, da ABNT, diz que deve haver boas regras, produtos de qualidade e fiscalização. “Temos 1.200 vítimas fatais por causa de incêndios anualmente no Brasil. São cinco boates Kiss todo ano.” É preciso dar um basta.
Fotos: Germano Roratto/Ag. RBS/Folhapress; Masao Goto Filho, Kelsen Fernandes, Mariana Brugger – Ag. IstoÉ, Masao Goto Filho, Kelsen Fernandes, Fernanda Ramos – Ag. IstoÉ

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