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sábado, 3 de abril de 2010

Entre o céu e o inferno-Aeroportos Brasil

Entre os fenômenos socioeconômicos produzidos pela estabilização econômica dos últimos quinze anos, o acesso de um número maior de brasileiros às viagens aéreas é o de maior impacto. Viajar frequentemente de avião comercial era coisa de rico nos anos 80. Hoje os aviões se tornaram os ônibus do ar e os aeroportos ficaram barulhentos, lotados e desconfortáveis como as velhas estações rodoviárias. Os números são impressionantes. Em fevereiro deste ano, 10 milhões de passageiros foram transportados em voos domésticos, um aumento de 43% em relação ao mesmo mês no ano passado. A previsão é que, no fim de 2010, o número de passageiros transportados no país supere em 36% o total de 2009.
Os brasileiros só teriam o que comemorar com essa nova realidade, não fosse um grande e incômodo fator: os aeroportos ficaram acanhados demais para tanta gente com bilhete aéreo no bolso. Vislumbra-se um divórcio quando se compara o ímpeto de voar com a capacidade do governo federal de aumentar o potencial dos aeroportos ou construir novos. A quantidade de pessoas que viajam de avião no Brasil praticamente dobrou nos últimos cinco anos. Para atender a essa explosão de demanda por passagens, a partir de 2006 as duas maiores companhias aéreas brasileiras, Tam e Gol, ampliaram sua frota em, respectivamente, 72% e 60%. As duas companhias que dominam o mercado aéreo nacional e as que chegaram para concorrer com elas trabalham agora com agressivos planos de expansão. Será preciso combinar com o governo federal, cuja empresa Infraero tem o monopólio da construção e exploração comercial de todos os aeroportos de uso comercial no país. A Infraero não tem recursos nem condições técnicas para dar conta da atual demanda – quanto mais dos imensos desafios que se avizinham.
Há três explicações convergentes para o aumento do número de passageiros no ar. A primeira delas é a situação econômica favorável. De modo geral, o setor aéreo de um país cresce o dobro da economia como um todo. Entre 2004 e 2009, o PIB acumulado do Brasil somou 24%. O volume de passageiros dobrou no mesmo período. O segundo fator foi a desconcentração do setor com a chegada de novas companhias e a consequente redução no preço das passagens, resultado do aumento da concorrência e da liberdade tarifária. Para atraírem consumidores, as empresas aéreas brasileiras, em média, diminuíram o preço da milha voada de 53 para 41 centavos de real. O valor médio da passagem aérea doméstica caiu de 448 reais para 323 reais. A terceira, que é a mais importante e a mais duradoura explicação para o fenômeno, é a ascensão econômica da classe C. Um em cada dez dos passageiros da Gol nos últimos anos voou pela primeira vez na vida.
O gargalo dos aeroportos, infelizmente, pode atrapalhar essa festa nos céus do Brasil. Nas últimas décadas, enquanto a demanda por passagens crescia, a infraestrutura aeroportuária do país foi se deteriorando, sem receber por parte dos sucessivos governos os investimentos necessários para modernizá-la. Hoje, os grandes aeroportos recebem mais passageiros do que sua capacidade comporta, tornando um suplício o embarque e o desembarque nos horários de maior movimento. A Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata) recomenda que as obras de ampliação e remodelação dos aeroportos sejam feitas tendo em vista que eles operem 40% abaixo de sua capacidade máxima – justamente para absorver sem traumas as demandas nos períodos de pico e o aumento natural do tráfego aéreo. Na contramão dessa norma, os principais aeroportos brasileiros operam 30% acima de sua capacidade. A situação, que é ruim, deve se tornar caótica na Copa do Mundo de 2014, quando o tráfego aéreo no país, segundo as estimativas, será 49% maior do que hoje. Na semana passada, o governo anunciou um reforço de 3 bilhões de reais ao investimento já prometido de 5,5 bilhões nos dezesseis aeroportos das cidades que vão sediar a Copa. Um estudo do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias (Snea), feito em conjunto com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra que o problema vai continuar quase do mesmo tamanho ainda que essas obras milagrosamente saiam do papel como planejado. Segundo o estudo, com o aumento do número de passageiros nesses quatro anos, os dezesseis aeroportos de cidades-sede da Copa chegarão a 2014 com um déficit de 30% em sua capacidade operacional. Os principais problemas dos grandes aeroportos brasileiros anotados pelos especialistas ouvidos por VEJA são muito familiares aos brasileiros que viajam:
• Filas quilométricas no check-in – O número de guichês no check-in em todos os dezesseis aeroportos da Copa precisa ser ampliado. Terceiro maior aeroporto brasileiro em volume de passageiros, o de Brasília é aquele em que o problema é mais grave: as filas, em horários de pico, chegam a 100 metros de comprimento e se estendem até a calçada. Se nada for feito, em 2014 as filas atingirão 200 metros.
• Superlotação nas salas de embarque – De acordo com a Iata, a ocupação ideal de uma sala de embarque, para que se garanta um mínimo de conforto aos passageiros, não deve ultrapassar a média de aproximadamente uma pessoa por metro quadrado. Nos aeroportos de Congonhas, Confins, Porto Alegre, Brasília e Fortaleza, nos horários de maior movimento, essa média é maior.
• Demora na retirada das bagagens – As esteiras dos aeroportos brasileiros são obsoletas e não atendem à demanda. Por elas passam, em média, 600 bagagens por hora, enquanto em aeroportos internacionais do exterior o ritmo chega a 2 000 malas por hora. Nesse quesito, a pior situação é a dos aeroportos de Curitiba e Salvador, onde as esteiras, em péssimo estado de conservação, chegam a danificar as malas.
• Falta de vagas para os aviões nos pátios – Frequentemente os passageiros ficam de castigo, dentro do avião, à espera de outra aeronave decolar e ceder espaço para o desembarque. Os casos mais dramáticos são os de Guarulhos e Brasília, aeroportos em que os passageiros ficam retidos dentro do avião por até meia hora por causa dessa limitação.
Em Guarulhos, um problema crítico é o fluxo de passageiros que chegam do exterior. Primeiro, formam-se longas filas no setor de imigração para apresentar o passaporte aos agentes da Polícia Federal. Há apenas vinte guichês para isso. Para efeito de comparação, o aeroporto de Seul, que recebe 30 milhões de passageiros por ano, 11 milhões a mais que Guarulhos, conta com 120 postos de inspeção de passaportes. Depois, nova fila se forma na alfândega, para a entrega de um papelete de "nada a declarar" à Receita Federal. Ao todo, pode-se levar duas horas entre cruzar a porta do avião e sair do terminal. Mesmo que as autoridades resolvessem agilizar o desembarque em Guarulhos, faltaria espaço físico para ampliar as instalações da Polícia Federal e da alfândega. O problema só seria resolvido, em parte, com a construção do terceiro terminal do aeroporto, já prevista, mas que até hoje não saiu do papel.
Depois do acidente entre o Boeing da Gol e o jatinho Legacy, nos céus da Amazônia, que deixou 154 mortos em 2006, descobriu-se que voar no Brasil era perigoso. Parte da culpa pelo desastre recaiu sobre os controladores de tráfego aéreo, que realizaram uma operação padrão destinada a chamar atenção sobre as más condições de trabalho a que eles eram submetidos e ao sucateamento dos equipamentos que operavam. Foi o início do caos aéreo, em meio ao qual as autoridades anunciaram uma série de medidas para tornar os céus brasileiros mais seguros. Pouco foi feito. O Brasil permanece muito atrás dos países desenvolvidos no que diz respeito à segurança do tráfego aéreo. O espaço aéreo do país é controlado, basicamente, por radares que reportam a softwares o posicionamento das aeronaves em determinada área. O software utilizado hoje é exatamente o mesmo da época do acidente, o X-4000. Algumas cidades, como Curitiba e Florianópolis, até o início deste ano ainda operavam com uma versão anterior a ele. Quando o governo injetou 600 milhões de reais em investimentos no setor, a partir de 2007, parte desse dinheiro foi destinada a levar a essas cidades o já antiquado X-4000. O software ainda se baseia na experiência do controlador no que diz respeito à altitude das aeronaves que sobrevoam uma mesma área. O controlador precisa reportar manualmente ao software qualquer tipo de mudança de posicionamento do avião, informação que é transmitida pelo piloto. Diz o tenente-brigadeiro Ramon Borges Cardoso, diretor do Departamento de Controle do Espaço Aéreo: "Os soft-wares mais modernos fazem isso automaticamente. Informam, por exemplo, distância, desvios e altitude da aeronave. Eles são mais seguros e possibilitam ao controlador operar mais voos ao mesmo tempo".
Um software mais moderno, chamado Sagitário, está em fase de testes em Curitiba e no espaço aéreo sobre o Atlântico na costa do Nordeste, mas não há previsão de que seja implantado no país. "Não temos verba para comprá-lo", diz Cardoso. O Departamento de Controle do Espaço Aéreo calcula que serão necessários 500 milhões de reais para tornar os céus brasileiros seguros. O governo federal reconhece que fez pouco para modernizar os aeroportos e solucionar o nó aéreo, mas avisa que as providências nesse sentido ficarão para o presidente que assumir em 2011. Em sete anos, a política aérea do governo Lula nunca decolou. A Infraero, estatal responsável por administrar os aeroportos do país desde 1972 e que sempre foi comandada por técnicos, transformou-se num antro de dirigentes corrompidos e contratos superfaturados. Milhões de reais que deveriam ter sido gastos em obras de infraestrutura foram parar no bolso de políticos, lobistas e empresários. A Polícia Federal e o Ministério Público abriram investigações criminais que correm até hoje na Justiça. Embora a palavra privatização seja estranha à cartilha do PT, hoje, no governo, prevalece a opinião segundo a qual a melhor solução para modernizar os aeroportos é entregar sua administração à iniciativa privada. Um movimento único nesse sentido foi feito com a construção, ora em andamento, do novo aeroporto de Natal (veja o quadro abaixo), obra prioritária para a Copa do Mundo de 2014. Até as eleições, o governo não vai fazer mais nada porque não quer ter sua imagem ligada à "privatização", uma saí-da demonizada pela esquerda em pleitos anteriores. O Brasil não pode se dar ao luxo de paralisar a infraestrutura aeroportuária por razões ideológicas. Com um governo ainda mais centralizado que o Brasil, o México recorreu à iniciativa privada para modernizar seus aeroportos. O Terminal 1 do Aeroporto Internacional da Cidade do México foi o primeiro daquele país a ser privatizado, com resultados excelentes em termos de prazo e eficiência.
É vital que o próximo governo encare como prioridade a privatização dos aeroportos brasileiros e sua consequente modernização. Os terminais aéreos são símbolos do estágio civilizatório atingido pelas nações. "Existe uma incompatibilidade simbólica entre a posição que o Brasil ocupa no cenário mundial e a imagem que ele passa ao visitante", diz o economista Maílson da Nóbrega. "Se o país quer ser grande e respeitado, os aeroportos têm a obrigação de refletir esse crescimento." O Aeroporto Internacional de Pequim, hoje um dos mais modernos do mundo, deixa os visitantes com a sensação de que seus construtores esperam que a China cresça ainda muito. Até 2007, ele tinha capacidade para 35 milhões de pessoas por ano. Com a Olimpíada de 2008, a expectativa era de que esse movimento dobrasse, o que de fato ocorreu. Ao planejar a ampliação do aeroporto, o governo chinês não se limitou a esse patamar, já alto, mas decidiu ir além, aumentando a sua capacidade para 82 milhões de passageiros. Diz o engenheiro da área de transportes Mário Luiz Ferreira de Mello: "A visão do planejador chinês contrasta com a do brasileiro. Quando uma obra de ampliação de um aeroporto termina por aqui, ela já está aquém da demanda". Está passando da hora de mudar isso e deixar que o sonho de voar dos brasileiros decole de verdade.Um bom exemplo em Natal-Natal, a capital do Rio Grande do Norte, vai ganhar até 2012 um aeroporto exemplar. Localizado em São Gonçalo do Amarante, terá capacidade inicial de 5 milhões de passageiros e 500 000 toneladas de carga por ano. Sua vocação é se tornar o quarto hub – centro de irradiação de voos para outros aeroportos – do Brasil. Hoje, há apenas três aeroportos no país que funcionam como hubs, os de Guarulhos, Congonhas e Brasília. A grande novidade do novo aeroporto de Natal, contudo, é que ele será o primeiro do Brasil que escapará da gerência ruinosa da Infraero. A pista foi construída pelas Forças Armadas, mas a missão de erguer o terminal e administrar o aeroporto será entregue à iniciativa privada, em regime de concessão. Há duas semanas, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, enviou ao presidente Lula uma proposta nesse sentido. O documento diz que a concessionária responderia diretamente à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e teria autorização para explorar comercialmente o aeroporto por 35 anos, com possibilidade de renovação pelo mesmo período. No momento, está em construção um aeroporto novo em Macapá, capital do Amapá. O último aeroporto de grande porte construído no Brasil foi o de Palmas, capital do Tocantins. As demais obras aeroportuárias tocadas pela Infraero são pouco mais que remendos em instalações já saturadas, cujo resultado não deve causar alívio duradouro no congestionamento dos aeroportos.
Embora a ideia de privatizar qualquer órgão público cause arrepios na administração petista, entregar o aeroporto de Natal à iniciativa privada foi a única alternativa para que ele entre em funcionamento até a Copa do Mundo de 2014. Ele só não é o marco inicial de uma revolução porque o governo não pretende repetir a concessão com outros aeroportos. O ministro Jobim deixa claro que o aeroporto de Natal é uma exceção: "Durante este ano eleitoral, não haverá concessões. Isso aí deixa para o governo seguinte decidir sobre o assunto".

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