Um cartel montado por militares e ex-militares do Exército para vencer licitações e abocanhar cifras milionárias de obras pagas com dinheiro público pôs no centro de uma investigação um dos mais importantes centros acadêmicos do país, o Instituto Militar de Engenharia (IME). O Ministério Público Militar investiga pelo menos 12 empresas cujos sócios são parentes ou possíveis laranjas - pessoas ligadas a oficiais que já estiveram lotados no instituto - que prestaram serviços de consultoria como melhorias na BR-101, uma das maiores rodovias do país, recebendo algo em torno de R$15,3 milhões. Os primeiros levantamentos revelam que as empresas não funcionam nos endereços fornecidos à Receita Federal; há sócios que declaram morar até em favelas no Rio.
Os valores eram liberados de forma ágil, e há indícios de que algumas empresas foram constituídas só com a finalidade de vencer concorrências de cartas marcadas. A firma era criada e, poucos dias depois, já estava à frente de um projeto do IME, em geral em parceria com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), do Ministério dos Transportes. A verba saía sempre através do IME.
Clima de caça às bruxas após denúncia
A maior parte do montante investigado foi pago por meio de ordens bancárias, entre 2004 e 2006, pouco antes de o esquema ser notado por outros militares, que o denunciaram a superiores, dando início a um clima de caça às bruxas na instituição. Empresas foram desativadas, outras mudaram de nome. Os militares que estariam ligados a elas deixaram o IME, transferidos ou após pedirem tranaferência, inclusive para outros estados.
Uma das empresas que mais receberam recursos públicos foi a GNBR, que, entre 2004 e 2008, teve R$3,3 milhões liberados, de acordo com o Portal da Transparência do Governo Federal, por meio de notas bancárias pagas pelo IME por serviços prestados ao próprio instituto e ao Colégio Militar do Rio. A GNBR já teve outras razões sociais com o mesmo CNPJ: JLG e Olecram. Seus sócios também figuram em outras sete empresas que já tiveram contratos com o IME. Metade delas tinha, entre seus donos, parentes de um militar que, na época, trabalhava no instituto.
Apesar do contrato com valores vultosos com o IME, a GNBR nunca funcionou no endereço fornecido à Receita. No local, uma casa simples de dois andares no Jockey, bairro pobre de São Gonçalo, ninguém ouviu falar no nome da firma ou conhece seus sócios. Como JLG, funcionou num centro comercial do município, mas saiu de lá há mais de dois anos. Ao se escolher aleatoriamente o endereço residencial de um dos proprietários da GNBR, Célia Lourenço da Silva, que consta nos cadastros do Detran, descobre-se que se trata de uma casa no Morro do Urubu, em Piedade, onde ela nunca morou. No local, vive uma família há mais de 30 anos.
Outro sócio da GNBR localizado, Alfredo Balbino, que também figura como dono de outra prestadora de serviços do IME, a Enrilan/Acionom, afirma ter sido usado como laranja. Perguntado sobre suas empresas, ele, que foi faxineiro, mostrou-se surpreendido. Com três pessoas da família desempregadas, Alfredo disse atravessar dificuldades financeiras. Embora supostamente tenha atuado no ramo de engenharia, ele reclama de infiltrações crônicas em sua casa, que sofre com enchentes.
- Não sou laranja, sou um laranjão. Se tivesse essas empresas todas, eu empregava meus parentes que não têm trabalho - afirmou, acrescentando que hoje sobrevive com a ajuda dos pais e uns poucos biscates. - Quero Justiça. Até a minha assinatura falsificaram.
Duas empresas - Deligon, que já se chamou Antoned, e a 339 G & D -, com CNPJs diferentes, deveriam funcionar num mesmo endereço, segundo a Receita, num prédio no Mutondo, em São Gonçalo. A administração do edifício informou que as firmas não funcionaram lá nos últimos dez anos.
Outra que também está no rol de investigadas é a Grisa, que recebeu R$999,7 mil. Além do IME, prestou serviços à Escola de Saúde do Exército e ao Batalhão de Manutenção e Armamento, entre outras unidades militares. No endereço da empresa, em Higienópolis, há apenas um barraco, instalações toscas que aguardam a construção de um prédio residencial projetado por uma empreiteira. Na quarta-feira, seu João, um aposentado que faz bico tomando conta do local, espantou-se ao saber que ali supostamente funcionaria uma empresa com faturamento de quase R$1 milhão. Ex-morador do Complexo do Alemão, que fica próximo, ele não perdeu a piada:
- Quero a minha parte! - brincou. - Há mais de um ano estou aqui aguardando a construção de um prédio e nada. Nunca ouvi falar nessa empresa ou em seus donos.
O arquiteto responsável pelo projeto, Ricardo Rosalba, disse que, há cerca de dez meses, um oficial de Justiça tentou notificar os proprietários da Grisa. Mas, segundo ele, o lote só teve três donos, nenhum deles ligados à firma.
Investigado era da comissão de licitação
A investigação está sendo conduzida pela procuradora Maria de Lourdes Souza Gouveia Sanson. O procedimento foi instaurado no 5º Ofício da Procuradoria de Justiça Militar no Rio, em 22 de janeiro deste ano. O Comando Militar do Leste apenas confirmou que está apurando os fatos denunciados. Entre os militares investigados, estão o major Washington Luiz de Paula (que era lotado no IME e tem cinco pessoas da família, entre elas cunhadas e sogro, nas empresas investigadas) e o capitão Márcio Vancler Augusto Geraldo (que na época era da comissão de licitação do instituto).
Outro que ganhou licitações sob suspeita é o empresário Marcelo Cavalheiro, que foi tenente temporário formado pelo Centro Preparatório de Oficiais da Reserva (CPOR) e é dono da Grisa e de outra empresa. O GLOBO tentou contato com Washington e seus parentes que são sócios de firmas investigadas, mas não obteve retorno. Marcelo Cavalheiro também não foi localizado, apesar de terem sido feitos contatos com pessoas de sua relação, assim como o capitão Vancler Augusto Geraldo.
DESPESAS NA MIRA: Rapidez com que pagamentos eram feitos também levantou suspeitas e está sendo investigada
Formação de empresas vai ser analisada
Suspeita é que firmas foram criadas apenas um mês antes do anúncio de licitações feitas por instituto do Exército
Carla Rocha e Vera Araújo
Uma das linhas de investigação é verificar todo o ciclo de constituição das empresas e a contratação de seus serviços pelo IME. A suspeita é que algumas foram criadas apenas um mês antes do anúncio das licitações, sendo logo declaradas vencedoras, com direito a ordens de pagamentos feitas muito rapidamente. Uma engenharia difícil de ser concretizada, uma vez que se tratava de consultorias técnicas, algumas complexas, na área ambiental e de informática, para grandes obras. A Enrilan, por exemplo, foi criada em 13 de setembro de 2004, venceu a licitação em 27 de outubro do mesmo ano e recebeu o primeiro pagamento do IME em menos de um mês, em 19 de novembro.
A Enrilan foi contratada para apoiar o IME com consultoria em geoprocessamento e sensoreamento remoto para orientar estudos ambientais na BR-116, no trecho São Paulo-Curitiba. Há outras concorrências vencidas pela empresa voltadas para projetos na BR-153 (entre São Paulo e Minas Gerais) e na BR-381 (Rodovia Fernão Dias), entre outras. Em apenas três meses em seu primeiro ano de funcionamento, a Enrilan faturou R$654.404,01. A empresa está em nome de Henrique Bittencourt Lousa (que é concunhado do Washington Luiz de Paula), de William Lourenço da Silva (que foi soldado do Exército), Célia Lourenço da Silva e Alfredo Balbino (que se diz laranja).
A situação se repete em outros casos. A Deligon, fundada em 22 de novembro de 2004, venceu uma licitação em menos de um mês (20 de dezembro) e, oito dias depois, já recebeu seu primeiro pagamento do IME. Num ano em que só funcionou um mês, a Deligon faturou R$448.869, segundo o Portal da Transparência do Governo Federal. Na Deligon, aparecem como sócios o mesmo ex-soldado William Lourenço da Silva, Jacqueline Fonseca Lousa (cunhada do major Washington), seu marido, Edson Lousa Filho, Deleon Alves dos Santos e Gleice Regina Balbino de Almeida.
Empresa recebeu oito dias após vencer concorrência
Outra que se beneficiou da mesma agilidade no pagamento foi a 339 G & D. Criada em 22 de novembro de 2004, ela venceu uma concorrência em 20 de dezembro e recebeu no dia 28 do mesmo mês. Alguns serviços prestados pela empresa: estudos hidrológicos; de impacto sociocultural no Morro do Quilombola, no Rio Grande do Sul; e desenvolvimento de softwares. A 339 G & D encerrou o ano com R$448.632,21, conforme revela consulta ao Portal da Transparência do Governo Federal. No ano seguinte, em 2005, a empresa deu, por exemplo, apoio logístico a técnicos do IME na avaliação de trechos da BR-101, com direito a diárias e hospedagens pagas.
IME, um centro de excelência
O Instituto Militar de Engenharia (IME) ganhou este nome em 1959 com a fusão de dois centros de estudos do Exército: a Escola de Engenharia Militar e o Instituto Militar de Tecnologia. Mas sua história é resultado de uma série de avanços que começou no período colonial. Com a reputação de ter um dos mais difíceis vestibulares do país, o IME oferece cursos de graduação e pós-graduação para alunos militares e civis. Considerado um centro de excelência, foi a primeira escola de engenharia a surgir nas Américas e a terceira do mundo. Fica no bairro da Urca, ao lado do Bondinho do Pão de Açúcar.
Além de se dedicarem à formação acadêmica, os profissionais do IME também dão apoio técnico a grandes obras de infraestrutura, como no caso das parcerias com o Dnit que estão sendo objeto de investigação. A restauração do Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente da República, concluída em abril, foi custeada por empresários e realizada pela Fundação Ricardo Franco, que pertence ao instituto.
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