As falhas de Santa Maria se repetem
criminosamente em todo o Brasil. Mais de 70% das casas noturnas não
respeitam normas mínimas de segurança e ameaçam a vida de nossos
jovens. Ou se ajustam ou devem ser fechadas
Flávio Costa, Rachel Costa, Tamara Menezes e Rodrigo Cardoso
Segunda-feira 28 de janeiro.
Um dia depois, o cenário na entrada da Kiss denunciava o efeito nefasto da tolerância
com irregularidades. Por existir apenas uma porta, boa parte das mil pessoas
que lotavam a boate não conseguiu sair. Dezenas de corpos estavam empilhados
a apenas um metro da saída. Somente no banheiro havia 180 vítimas.
Casas noturnas irregulares como essa funcionam em todo o País e deveriam ser fechadas
A morte de 236 pessoas na boate Kiss, de Santa Maria, no Rio Grande
do Sul, é resultado de uma sucessão de erros, omissões e
irresponsabilidades dos proprietários da casa noturna, da banda, que
acendeu um sinalizador e provocou o incêndio, e da fiscalização do poder
público, especificamente o Corpo de Bombeiros e a prefeitura da cidade
gaúcha. Infelizmente, porém, a Kiss não é o único exemplo de espaço em
que o entretenimento se torna arma letal.
Por todo o País, diversos proprietários negligenciam o capítulo
segurança em suas casas noturnas, tratando-o como um custo para o
empreendimento, e não como um investimento na vida de seus clientes.
Até a sexta-feira 10, centenas de bares e boates foram interditados
pelas prefeituras das capitais e de cidades de médio porte dos Estados
da Bahia, Amazonas, Ceará, Alagoas, Pernambuco, Santa Catarina, Rio de
Janeiro e Rio Grande do Sul. Esses espaços de reunião – fiscalizados
após a tragédia de Santa Maria – apresentavam falhas de segurança
semelhantes às da Kiss. Somente em Manaus, 66 boates e bares foram
interditados, inclusive a Tropical Club, uma das mais frequentadas da
cidade, que leva o nome do luxuoso hotel que a abriga. Nela, as saídas
de emergência estavam fechadas e os extintores de incêndio não tinham
sinalização. Em Salvador, várias boates funcionavam sem alvará, uma
delas – localizada no bairro boêmio do Rio Vermelho – era uma
borracharia pela manhã e uma danceteria à noite.
Fiscalização dos bombeiros na quarta-feira 30 lacra boate 021, na Barra da Tijuca, no Rio
Em Florianópolis, 31 das 47 boates irregulares não possuem planos de
prevenção contra incêndio. O Corpo de Bombeiros do Ceará fechou as casas
de show Kukukaya e Terraço e as boates L4 Up Club e Meet Music &
Lounge, todas de Fortaleza. Lá, 70% das boates apresentam problemas. No
Estado do Rio de Janeiro, a fiscalização constatou que apenas 5% dos
estabelecimentos estão regulares. A casa The Best Etílico, em Cabo Frio,
foi a primeira a ser fechada. O local terá que passar por reforma para
que sejam incluídas saídas de emergência. Na Kiss, de Santa Maria, havia
apenas uma porta, sem opções alternativas de fuga. Pior: esse acesso,
por alguns minutos, foi fechado por seguranças que, sem saber do
incêndio, exigiram a apresentação da comanda das pessoas que queriam
deixar o local. Naquela fatídica noite, a Kiss, com capacidade máxima
para 631 frequentadores, distribuiu 830 comandas. A polícia já constatou
que mais de mil pessoas estavam na casa. Imagens do sistema interno de
segurança poderiam provar definitivamente a superlotação. Mas os
aparelhos foram retirados do local. Uma série de outras irregularidades,
como uso de espuma de fácil combustão e extintores que não funcionavam,
contribuiu para ampliar o acidente. Por isso, dois sócios, Elissandro
Calegaro Spohr e Mauro Hoffmann, estão presos. Dois integrantes da
banda, Marcelo dos Santos e Luciano Leão, também foram detidos em função
do uso do sinalizador. A prisão é por 30 dias.
Para conhecer as condições de segurança de outras casas noturnas do
País, ISTOÉ percorreu as principais boates de São Paulo e do Rio de
Janeiro no início da semana passada. Na capital fluminense, a danceteria
Melt, por exemplo, tem capacidade para 650 pessoas. A casa informava
ter mais do que o dobro do número de extintores exigidos pela
legislação, mas nenhum estava visível. No Estado do Rio, 200
estabelecimentos foram visitados e 127 sofreram interdição. As
autoridades decidiram fechar inclusive 13 teatros da capital e Niterói
em situação irregular.
Após a tragédia, a OutLaws, do músico Luan Santana, resolveu cumprir a lei e
proibiu os fogos acoplados às garrafas de champanhe, o que não acontecia antes
Na capital paulista, de acordo com a prefeitura, 600 boates estão
sem alvará de funcionamento, número três vezes maior do que as que
funcionam legalmente. A culpa, admite o próprio poder público, nem
sempre é do proprietário, mas sim de burocracias internas do órgão
municipal. Para agravar a situação, em uma blitz do Corpo de Bombeiros
realizada na semana passada em todo o Estado, de 303 casas fiscalizadas,
177 apresentaram problemas relacionados à segurança. Dessas, 66 têm o
Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB), mas possuem falhas, como
luz de emergência apagada ou extintor de incêndio vencido, e 111 nem
sequer dispõem do documento. A Kiss, de Santa Maria, funcionava sem
alvará desde agosto de 2012. Tanto a prefeitura quanto os bombeiros
sabiam disso e fizeram vistas grossas. Agora, o prefeito e o comandante
da corporação podem ser corresponsabilizados pelas mais de 200 mortes.
No centro de São Paulo, encontra-se na mesma situação a badalada casa
noturna Alberta. Já vão três anos que o estabelecimento abre as portas
sem a autorização da prefeitura. Empresários do setor se reuniram com o
prefeito Fernando Had- dad, na quarta-feira 30, para se queixar da
morosidade da liberação do alvará por parte do poder público e melhorar
os procedimentos de segurança. “Mas é uma falsa ilusão achar que um
alvará indique que o lugar está seguro. Pode não estar”, afirma o
arquiteto e urbanista Ives de Freitas, ex-diretor do Departamento de
Controle do Uso de Imóveis (Contru).
Segundo Freitas, as adaptações feitas no interior dos
estabelecimentos muitas vezes não são informadas ao poder público, que,
por seu turno, não fiscaliza como deveria por falta de pessoal para
visitar os estabelecimentos após a liberação do alvará. “Nossas normas
são de Primeiro Mundo. Elas não são o problema. O problema é o que se
instala nas casas noturnas depois da aprovação da licença”, reforça
Paulo Giaquinto, professor de urbanismo da Faculdade de Arquitetura
Mackenzie. Assim foi feito pelos proprietários da Kiss, que colaram no
teto uma espuma de isolamento acústico altamente combustível, proibido
por lei. “A espuma foi colocada por um funcionário da boate em julho.
Não poderiam tê-la usado de forma alguma”, afirmou o delegado Marcelo
Arigony, responsável pela investigação do caso. Esse material pegou fogo
logo que um integrante da banda Gurizada Fandangueira acendeu um
sinalizador no palco na madrugada do domingo 27.
Após donos negarem o uso de fogos no interior da boate, o delegado responsável
pelo caso postou no Facebook, na quinta-feira 31, suposta foto de show pirotécnico na Kiss
Em São Paulo, a Outlaws, casa de música sertaneja do músico Luan
Santana, exibia até a semana passada em sua página no Facebook fotos de
grupos de frequentadores – a casa comporta 800 pessoas – segurando
garrafas de champanhe acopladas a artefatos pirotécnicos em ambiente
fechado. De acordo com a assessoria de imprensa do local, a cena não vai
mais se repetir. Outra prova de que durante muito tempo convivemos sem
saber com a insegurança nos espaços de diversão é uma pesquisa divulgada
pela Proteste Associação de Consumidores em 2011. O resultado do
estudo, que avaliou quesitos básicos de segurança em 17 casas de São
Paulo e Rio de Janeiro, já mostrava a fragilidade do cumprimento de
normas de segurança à época: nenhum dos estabelecimentos cumpria todos
os critérios necessários. “Vimos várias situações de risco. Nenhuma casa
possuía a lotação máxima afixada na porta, algumas tinham as saídas de
emergência obstruídas e outras nem sequer possuíam extintor de incêndio
em lugar visível”, comenta Maria Inês Dolci, coordenadora institucional
da Proteste. Uma das visitadas foi a The History, que fica na Vila
Olímpia, em São Paulo. “A The History apresentava muitos obstáculos
próximos à saída, o que pode dificultar a fuga em caso de incêndio.”
O medo, tanto dos frequentadores quanto dos proprietários, tem se
refletido no movimento das noites em todo o País. Na terça-feira 29, um
dos mais famosos locais de diversão do Brasil, a rua Augusta, em São
Paulo, estava vazia. Dois dias após a tragédia de Santa Maria, poucas
foram as casas noturnas paulistanas que se arriscaram a abrir as portas.
Mesmo após a reunião com o prefeito Fernando Haddad, vários donos de
boates optaram por não retomar a programação. O grupo justifica que é um
modo de expressar solidariedade e, ao mesmo tempo, checar a própria
segurança. Também correm para corrigir falhas que seriam flagrantes. A
profusão de portas fechadas é um indício claro de que muita coisa
permanece obscura quando o assunto é a segurança de espaços onde
multidões se concentram. “É fundamental que se estabeleça uma legislação
federal que unifique as normas para estabelecimentos”, afirma o
especialista em análise e gestão de risco Ricardo Chilelli,
diretor-presidente da RCI First. A expectativa é de que esses sinais se
transformem em medidas objetivas para garantir que tragédias como a de
Santa Maria não se repitam.
Foto: JEFFERSON
BERNARDES/AFP, Gustavo Stephan/Ag. Globo; NEY MENDES/ACRITICA/PAGOS;
Rafaella Arcuschin/Folhapress; Jean Schwarz/Ag. RBS/Folhapress
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