Pais, mães e filhos podem ser treinados para
alcançar a harmonia em família. Técnicos esportivos, especialistas em
guerra e altos executivos mostram em recente best-seller nos Estados
Unidos como isso é possível
Nathalia Ziemkiewicz
A batalha na casa do escritor americano Bruce Feiler durou quase oito
anos, idade de suas filhas gêmeas Eden e Tybee. As manhãs eram
especialmente caóticas ? nunca subestime o potencial bélico de uma
criança quando acorda e precisa ser vestida, alimentada e encaminhada ao
colégio contra a vontade. Feiler e sua esposa, Linda, estavam prestes a
explodir de frustração. ?Percebi que jogávamos sempre na defensiva,
nunca no ataque?, disse o colunista do jornal ?The New York Times? sobre
vida em família para a ISTOÉ. Cansado dos convencionais guias de
autoajuda, ele recrutou especialistas das mais diversas áreas para
descobrir como manter um grupo unido e motivado: militares, esportistas,
executivos, publicitários, etc. Colocou tudo em prática na sua casa,
melhorou significativamente a dinâmica familiar e, em fevereiro,
publicou ?The Secrets of Happy Families? (?Os segredos das famílias
felizes?, em tradução livre), com um arsenal de 200 dicas inusitadas
para a paz do lar.
A obra já figura entre as mais vendidas no ranking do ?The New York
Times? e teve os direitos comprados pela Ediouro para ser lançado no
Brasil ainda este ano. É um sucesso previsível. Pais modernos são seres
entrincheirados entre a frenética exigência profissional e a
conflituosa rotina doméstica. Décadas atrás, as gerações não percorriam
as prateleiras das livrarias em busca de títulos aconselhadores. Cabia
às mulheres cuidar da educação dos filhos, enquanto os homens se
dedicavam ao mercado de trabalho. Agora, essa divisão de papéis
praticamente inexiste e encontrar o equilíbrio entre eles parece ser a
chave da felicidade. Segundo uma pesquisa da Pew Study feita em 2010,
76% dos adultos consideram a família o elemento mais importante da vida.
?A satisfação dentro de casa norteia os outros aspectos do dia-a-dia, é
o que nos deixa tranquilos ou não fora dela?, afirma José Roberto
Marques, presidente do Instituto Brasileiro de Coaching.
ORDEM
Júlia (com o marido, Robert) cansou de cobrar os filhos, Luka e Nycolas.
Formulou regras, que ficam fixadas na geladeira
Em seu livro, Feiler mostra que dedicamos tempo para aprimorar nosso
trabalho, nosso corpo, nossos hobbies, mas não fazemos o mesmo por
aqueles que mais amamos. E por que isso acontece? ?As demandas
profissionais nunca foram tão grandes e as pessoas têm pouco tempo para
lidar com questões emocionais?, afirma Ana Maria Rossi, doutora em
psicologia e presidente do Isma-BR, uma associação internacional para a
prevenção e o tratamento do estresse. ?É como se elas se reprimissem o
dia inteiro para se enquadrar na postura socialmente aceita, então só
querem ser elas mesmas quando voltam para casa.? Em outras palavras,
você perde a paciência com seu marido porque não pode perder com seu
chefe. O autor americano tenta tirar os pais desse fogo cruzado, com
sugestões de respostas para perguntas cruciais: como transmitir valores e
responsabilidade às crianças, e ainda assim se divertir em família?
Como educar e dar suporte aos filhos, mas também arrumar tempo para
preservar a relação do casal?
A primeira lição que Feiler testou veio da indústria automobilística
japonesa. Lá, os trabalhadores seguem um quadro de tarefas que organizam
o caos e faz com que todos vejam o progresso do time. Eles também
participam de breves reuniões para avaliar o desempenho do grupo e
discutem o que deu certo, o que não deu e qual será o objetivo da
próxima semana. Esses encontros reduzem o estresse e melhoram a
comunicação da equipe. Como todas as propostas do livro, Feiler testou
essa em sua casa. Pregou um fluxograma na parede da cozinha, listando os
deveres de cada membro da família, como ?tirar o lixo? ou ?arrumar a
cama? (leia mais na pág. 66). Também ajudou as filhas a se orientarem de
manhã com um cartaz de passo a passo: ?escovar os dentes?, ?arrumar o
cabelo?, etc. Todos passaram a se reunir uma vez por semana, por 15
minutos, para conversar sobre apenas dois problemas e sugerir soluções.
Desde então, o autor permite que as filhas escolham as próprias
recompensas e punições, como ?uma festa do pijama? ou ?uma semana sem
doce?, de acordo com o comportamento.
HARMONIA
Ana Paula recorreu aos jogos de caça-palavras para salvar
as viagens de carro com os gêmeos João Pedro e Thiago
De fato, há uma série de pesquisas sobre como é vantajoso dar poder
às crianças. Quando planejam o tempo, definem metas e avaliam o
desempenho, elas desenvolvem o córtex pré-frontal. Essa parte do cérebro
é responsável pela cognição, pela tomada de decisões e pela
autodisciplina. De um jeito intuitivo, a empresária Júlia Cencini
aplicou uma técnica parecida com seus dois filhos, Nycolas e Luka, de 19
e 14 anos. Ela pregou na geladeira uma constituição com regras e
tarefas, tudo discutido e assinado por cada um da família. ?Eu era a
chata sobrecarregada, não aguentava mais brigar e cobrar que me
obedecessem?, diz Júlia. A televisão, por exemplo, deve ser desligada às
22h. O castigo vem em forma de descontos na mesada, mas a empresária
ainda não precisou recorrer a isso. Para ela, o desgaste diminuiu
porque, quando as coisas não saem como o esperado, basta apontar para a
?lei? formulada em conjunto.
RELAX
Por causa do trabalho, Ana Júlia não almoça nem janta com Enzo,
mas compensa com o tempo juntos com qualidade
A obrigação das refeições em família é outro mito que o colunista
derruba em seu livro. Ele traz à tona uma pesquisa reveladora: apenas
dez minutos ao redor da mesa são de conversas produtivas. O resto é
ocupado por frases como ?passe o sal? ou ?tire os cotovelos daí?. Ou
seja, em vez de se culpar por não conseguir almoçar ou jantar com os
pequenos, os pais deveriam reservar tempo, de qualidade, com eles em um
horário viável da sua rotina ? pode ser uma leitura infantil antes de
dormir, por exemplo. A descoberta é um alento para mulheres como a
fisioterapeuta Ana Júlia Graf. Ela trabalha 12 horas por dia, o que a
impossibilita de fazer as refeições com o filho Enzo, 8 anos. ?Eu me
cobro por isso, me sinto uma mãe incompleta por não estar com ele nesses
momentos?, diz. Ana tenta recompensá-lo aos fins de semana e dias de
folga, quando está mais relaxada e pode acompanhar trabalhos de escola
ou bater uma bola na praia, em Santos, onde vive com o marido. Melhor
para Enzo, de acordo com uma pesquisa feita com crianças e adolescentes
entre 8 e 18 anos. Elas responderam à pergunta: ?Se você tivesse um
pedido aos pais, qual seria?? Ao contrário do que os adultos
entrevistados imaginaram, os filhos não pediram mais tempo com eles: 34%
queriam que o pai e a mãe estivessem menos cansados.
Esse dado é curioso, na medida em que o próprio rebento se encarrega
de minar as energias de seus progenitores. Imagine que irmãos entre 3 e
7 anos brigam dez minutos a cada hora. E que apenas um em cada oito
combates termina em reconciliação. A comerciante Ana Paula Gaspar
hasteou a bandeira branca há alguns anos, depois de surtar em viagens de
carro com os filhos João Pedro e Thiago, gêmeos de 13 anos. Eles
costumavam passar temporadas no litoral, mas o período de descanso nunca
saía como o esperado. Impacientes no trânsito, com fome, eles
perguntavam o tempo todo ?quanto faltava para chegar? e se cutucavam
para driblar o tédio. Certa vez, Ana Paula colocou a cabeça para fora da
janela e gritou exaurida. Hoje, anda com revistas de caça-palavras para
todo lado, uma tática que não só sossegou os meninos como fez com que
todos se ajudassem para finalizar o jogo. Foi exatamente essa a dica
dada pelos designers de games do Vale do Silício entrevistados por
Feiler, experts em entreter crianças. A essência é estimulá-las a
interagir, não competir entre si. Em salas de espera, como aeroportos,
dê missões como ?descubra a que horas sai o próximo voo para os EUA? ou
?quantos passos são necessários até o portão 3??
NAMORO
Tatiana sofre para equilibrar o trabalho, a casa e a criação
da filha Sofia. Rodrigo quer mais tempo sozinho com ela
A ideia de pertencer a um grupo, nas horas divertidas ou difíceis,
aumenta os laços de afinidade e o poder de resiliência. Feiler
identificou essa qualidade ao conversar com líderes militares e
esportistas ? são indivíduos que compartilham experiências e se movem
juntos por um propósito. Por isso, ele sugere que até mesmo quando se
trata de dinheiro as famílias pensem no grupo. Casais devem separar a
renda entre ?meu?, ?seu? e ?nosso?. Os filhos que ganham mesada podem
contribuir com 15% do valor para algo em prol de todos ? uma noite no
boliche ou férias no campo, por exemplo. É também uma forma de as
crianças entenderem o significado dos impostos e da poupança. A analista
de tecnologia da informação Mônica Japiassú faz questão de educar
financeiramente as filhas Amanda e Letícia, de 8 e 4 anos. Ela e o
marido presentearam as meninas com cofrinhos e pagam uma semanada às
duas. A mais velha ganha R$ 3,50 e a mais nova, R$ 0,50 (gastos em
balas). Amanda economizou meses para comprar um skate e a mãe a ajudou
na pesquisa de preços. ?Isso fará diferença no futuro, elas saberão o
valor do dinheiro e como administrá-lo?, afirma Mônica.
SEMANADA
As filhas de Mônica e Carlos, Letícia e Amanda,
ganharam cofrinho e educação financeira dos pais
Com tantas preocupações com os filhos, as desavenças entre o casal se
tornam praticamente inevitáveis. O próprio Feiler conta que ele e a
esposa tinham um horário crítico diariamente, no começo da noite, quando
decidiam quem iria lavar a louça ou botar as roupas na máquina. Estudos
indicam que o período mais estressante para as famílias é entre 18h e
20h, com os pais cansados do trabalho e diante das tarefas domésticas. O
casal adiou as conversas chatas para depois do jantar e de um banho
relaxante. Feiler consultou diplomatas de Harvard para saber como brigar
com inteligência (leia mais na pág. 65) e descobriu que longas
discussões são as menos eficazes. Os verdadeiros argumentos são ditos
nos três primeiros minutos ? depois, a tendência é a repetição e
ofensas. ?Se a briga fica feia, prefiro dar um gelo do que me desgastar
na discussão?, diz a fotógrafa Tatiana Cristov Furlan, casada há cinco
anos. Ela trabalha e cuida da filha Sofia, 2 anos, além de ser
responsável pelas tarefas da casa. Quando o marido volta do escritório,
já está pronta para dormir. ?Ele reclama que não tenho tempo para ele?,
diz. Reservar um dia na semana para namorar é uma das dicas de uma
terapeuta sexual com quem Feiler conversou.
Não existem fórmulas prontas nem um perfil científico das famílias
felizes. O que o autor americano aponta são pistas de como se aproximar
daquela tão sonhada harmonia, sem recorrer a cartilhas clichês de
best-sellers sobre as mães-tigre, chinesas ou francesas. Talvez alguns
indicadores ajud em a avaliar se você está seguindo nesse caminho. Ser
assertivo, por exemplo, é uma das qualidades essenciais dentro de casa.
?Não reprimir emoções nem colocar a culpa em ninguém, mas abrir para o
diálogo?, afirma Ana Maria Rossi, do Isma-BR. Em segundo lugar,
priorizar a qualidade em vez de quantidade de tempo. De nada adianta
passar horas com os filhos se vocês vivem se acusando e se ressentindo.
Após três anos de pesquisa, o autor concorda. Para ele, as famílias
felizes têm três coisas em comum: elas são adaptáveis, conversam muito e
se divertem junto. ?E o mais importante: todos decidem continuar a
trabalhar para aprimorar a família.? Essa pode ser a lição mais
duradoura de todas.
Fotos: Pedro Dias/Ag. Istoé; Kelsen Fernandes; Masao Goto Filho/Ag. Istoé
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