O
programador André Horta (à esq.), de Belo Horizonte, pagou a revisão de
seu carro na oficina de Diego Silva em Bitcoins (Foto: Pedro Ângelo/G1)
O programador André Horta, de 30 anos, levou seu Honda Fit a uma oficina de Belo Horizonte
para uma revisão mecânica que custou R$ 430. Para quitar essa fatura,
André não usou cartão de débito ou de crédito, nem cheque ou mesmo
dinheiro vivo. O pagamento nem foi feito exatamente em reais. Diego
Silva, o dono da concessionária, recebeu um total de 0,22 bitcoins, a
moeda virtual mais conhecida da internet e que pode ser um modelo para
uma revolução nos meios de pagamentos e recebimentos.
A transação só foi concretizada após uma conversa demorada, pois houve
desconfiança do estabelecimento. “O que ajudou muito foi que [o dono da
oficina] podia receber na conta bancária dele em dinheiro”, afirma
Horta, o cliente. Mas por que então não fazer uma simples e usual
transferência via um banco qualquer?
(Foto: Editoria de Arte/G1)

Justamente porque, respondem os defensores e entusiastas do bitcoin,
não há bancos como intermediários. A moeda que só existe digitalmente
foi criada há apenas quatro anos e circula através de transações entre
"carteiras" que existem nos computadores dos usuários. Também não há
controle de nenhum banco central do mundo. Para especialistas, o bitcoin
pode não durar, mas o seu modelo vai permanecer
.
Reza a lenda (e tudo realmente indica que seja somente uma lenda) que
tudo começou com um japonês chamado Satoshi Nakamoto, de 37 anos à época
do surgimento do bitcoin. Ninguém nunca o viu pessoalmente. Acredita-se
que ele represente um grupo do setor financeiro europeu. O enigmático
"criador" da moeda é também o maior detentor de bitcoins do mundo: com
mais de 1 milhão de BTCs, a fortuna virtual do "suposto" Nakamoto
poderia valer mais de US$ 1 bilhão (R$ 2,35 bilhões). Curiosidade: o
significado do nome Satoshi, em japonês, é "sábio".
A revista "Bloomberg Businessweek" em janeiro perguntou "por que
investidores estão tão loucos por uma moeda alternativa criada por um
fantasma?". Em um recente relatório para investidores, o tradicional
Bank of America respondeu: "Acreditamos que a moeda possa se transformar
em um grande meio de pagamento para o comércio eletrônico e se tornar
uma séria competidora a instituições de transferências tradicionais".
Ben Bernanke, que acaba de deixar a presidência do poderoso Federal
Reserve, o banco central dos EUA, deu uma bênção cautelosa: "Talvez seja
uma promessa a longo prazo".
Já os governos da China e da Tailândia proibiram o bitcoin. O motivo
oficial é o temor de que a moeda seja usada em lavagem de dinheiro. Sua
ampla utilização na "Silk Road" (Rota da Seda), um "esconderijo" na
internet onde se comercializavam drogas e armas, também deu uma pinta
"marginal" à moeda. O que vem causando problemas para o avanço do
bitcoin. No final de janeiro, o vice-presidente da fundação Bitcoin
deixou o cargo após ser preso acusado de lavagem de dinheiro e de
ligações com a Rota da Seda. A Apple retirou sem explicações um
aplicativo de carteira digital de sua loja virtual.
Café em Vancouver, no Canadá, que aceita Bitcoins
(Foto: Reuters)
O Banco Central brasileiro declarou em nota ao
G1 que o
assunto não tem importância no momento: "A própria lei estabelece que
sejam regulados apenas os arranjos de pagamentos que, segundo avaliação
técnica, possam ter importância sistêmica. O BC analisou o emprego de
bitcoins e, por ora, considera que ele não é de relevância para o
sistema financeiro brasileiro".
Há vantagens e também riscos no bitcoin, e alguns comerciantes
brasileiros estão começando a despertar para o seu uso. A mais visível
delas é conseguir fugir das taxas de bancos e de operadoras de cartão. A
adoção como meio de pagamento já ocorre no Brasil por 27
estabelecimentos comerciais, de acordo com o Coin Map — serviço que
reúne lugares que se dispõem a receber pagamentos dessa forma. No total,
já são mais de 2.600 em todo o mundo. A Campus Party em São Paulo,
evento já tradicional voltado à tecnologia,
teve um caixa eletrônico para troca de reais pela nova moeda.
Sem taxa de serviço
Transferir bitcoins, hoje, não custa nada. Esse cenário torna a moeda
atrativa para quem precisa transferir dinheiro entre países diferentes,
nos quais taxas bancárias e de câmbio inflam o custo do processo. Já
existem brasileiros donos de hostels, lojas de suplementos vitamínicos e
até taxistas, chaveiros e bares que fazem suas transações com a moeda
virtual. Em Santos, SP, um apartamento de 90 m² (três quartos e dois
banheiros) é vendido por US$ 250 mil. O empresário Rodrigo Souza (que
mora em Nova York) aceita apenas Bitcoins como pagamento.
Adepto do bitcoin há cerca de dois meses, o Caracol Hostel de
Florianópolis recebeu pela estadia de um hóspede alemão o valor de R$
240, pouco menos de 0,1 BTC à época. Outros dois turistas, da Polônia,
entraram em contato, fizeram reservas para se hospedar no local e
avisaram que pagarão com bitcoins.
“Por que a gente não deveria aceitar?”, pergunta Enzo Baldessar,
funcionário do hostel responsável pela implantação. “As operadoras de
cartão de crédito cobram 5%. Em uma operação recente, um cara mexeu US$
150 milhões sem pagar nada de tarifa. É muito eficiente. Quanto ele não
pagaria se fizesse uma operação interbancária? Seria dinheiro jogado
fora?”.
Talita Noguchi é uma das proprietárias do Las Magrelas, bar de São Paulo que já aceita Bitcoin (Foto: Guilherme Zauith/G1)
O bar e bicicletaria Las Magrelas, de São Paulo,
entrou para o time pró-Bitcoin relativamente cedo, em maio de 2013, e
já registrou sete transações com a moeda. “Isso vai bombar a qualquer
momento”, diz Talita Noguchi, de 27 anos, uma das proprietárias. “É
absurdamente simples. Quando você vê o negócio acontecendo, percebe o
quão fácil é. É meio sem sentido as pessoas terem medo, porque ainda por
cima é superseguro.”
Com clientes fora do país, o escritório de design Modern Lovers, de São
Paulo, adotou a moeda em outubro, quando recebeu o equivalente a US$ 6
mil em bitcoins para criar a identidade visual de lâmpadas de LED
carregadas com energia solar. O serviço foi encomendado por um
australiano, que chefia a subsidiária na África do Sul de uma firma do
Reino Unido.
“A gente passou a usar bitcoin porque a gente recebia via banco. Além
de demorar dias, recebendo US$ 1.000 ou US$ 100 vão cobrar aquelas taxas
gigantes", afirma Fabrício Bellentani, um dos sócios do escritório.
"Mas ainda são muitos poucos os clientes que usam e que têm essa noção.”
1 bitcoin = R$ 1.900
Moeda 'física' que brinca com Bitcoin (Foto Reuters)

É bom lembrar que as transações via bitcoin, apesar de não terem o
registro de instituições financeiras, constituem comercialização de bens
e sem a declaração à Receita Federal podem representar fraude.
E, sim, há riscos envolvidos: uma das preocupações de economistas é a
volatilidade da moeda. Um bitcoin valia US$ 0,01 em 2011 e sua cotação
já atingiu US$ 880 (R$ 1.900), o que mantém alguns comerciantes com um
pé atrás. "Transformo isso em real quase imediatamente", diz Talita, do
bar Las Magrelas, entusiasta da moeda.
Baldessar, do hostel de Florianópolis, afirma que "por ser uma novidade
ainda, existe uma grande volatilidade nos preços do bitcoin, por isso é
interessante para o lojista e para o cliente fixarem o valor a ser pago
em real e depois fazer a conversão para bitcoin. Acredito que, quando o
mercado estiver mais maduro, esse procedimento não será mais
necessário. Os preços poderão ser fixados em diretamente em bitcoin".
“É uma moeda virtual que, como qualquer moeda atual hoje no mundo, é
baseada na confiança. Ela funciona e é usada enquanto todo mundo que usa
acredita que ela funciona."
Pedro Duarte Garcia, professor da USP
Já o analista de sistemas Felipe Micaroni Lalli pensa de forma bem
diferente sobre manter bitcoins: "Para mim é uma forma de poupança,
armazenamento de valor, assim como o ouro. É uma forma de fugir da
volatilidade, inflação e incerteza estatal. Eu não confio no governo,
então não vou manter meu dinheiro em uma moeda emitida e controlada por
alguém que eu não confio."
O administrador de sistemas Dâniel Fraga resume três usos do Bitcoin:
moeda de troca, meio de pagamento e investimento ou poupança. Mas há
outros usos possíveis, até alguns que não envolvem a moeda em si. Em
maio de 2013, um programador argentino sugeriu que o sistema seja usado
para confirmar a existência e integridade de documentos em um
determinado momento — algo como um "serviço notarial" digital. Algo
assim hoje depende de certificados que custam cerca de R$ 300. "Imagine
as inúmeras possibilidades do Bitcoin que ainda não foram sequer
exploradas", avalia Fraga.
E os gigantes dos atuais meios de transação eletrônica, como veem o
bitcoin? Para Edward McLaughlin, diretor de pagamentos emergentes da
MasterCard, a utilização que é dada para a moeda hoje e seu caráter
anônimo fazem com que a MasterCard, por meio de suas políticas, não a
inclua em seu circuito. “Se e quando, [o bitcoin] se tornar parte do
sistema regulatório aceitável, nós saberemos como tratá-la da mesma que
tratamos as várias moedas com que trabalho hoje”, disse o executivo ao
G1.
Sem mediação de governos
Para o professor Pedro Duarte Garcia, da Faculdade de Economia e
Administração da Universidade de São Paulo (USP), o bitcoin não se
diferencia muito de outras moedas, do ponto de vista monetário: “É uma
moeda virtual que, como qualquer moeda atual hoje no mundo, é baseada na
confiança. Ela funciona e é usada enquanto todo mundo que usa acredita
que ela funciona. Isso é comum a qualquer moeda que a gente carrega no
bolso”.
Além disso, o bitcoin não passa pelo sistema bancário e por isso não é
regulado por nenhuma autoridade, o que gera preocupação de alguns
países. Organizações que podem ter suas economias bloqueadas por pedidos
de governos, como o Wikileaks, empresa que já teve sua conta bancária
bloqueada, se beneficiam das facilidades de transferências de dinheiro
entre países que não passam pelos sistemas convencionais.
“A atividade econômica não vai ser atingida por uma mudança. Mas quem
sofre diretamente o impacto disso é o governo, porque a capacidade de
arrecadação diminui, pois há uma série de impostos que dependem do
sistema bancário ou de um sistema que conte com o CPF da pessoa, o que
deixa de existir. Gera desafios para o governo e o governo pode ter
impacto sobre a economia, porque compra bens na economia, oferece bens,
participa da atividade.”
Na onda do bitcoin, mais de 200 moedas virtuais surgiram, aumentando a
pressão sobre as autoridades financeiras e mesmo sobre empresas que
lidam com dinheiro. “O bitcoin e outras moedas virtuais, se vierem para
ficar, e não é claro que isso vá ocorrer, vão gerar uma série de
desafios que a gente vai ter que enfrentar e com os quais não estamos
acostumados”, diz Duarte Garcia.
A dificuldade de gerar bitcoins
(veja como funciona uma transação)
preocupa alguns entusiastas da moeda, que acreditam que o seu valor,
que já flutua em R$ 2 mil, tende a apenas subir. Por esse motivo, uma
alternativa mais barata foi criada: o Litecoin.
Ao contrário do bitcoin, que usa o ouro como símbolo, o Litecoin usa a
prata. Em vez de cálculos que demoram cerca de 10 minutos para validar
uma transação, o Litecoin almeja dois minutos e meio. O total de
litecoins geradas será de 84 milhões, quatro vezes mais do que bitcoins.
Dessa forma, o Litecoin sempre valerá menos, servindo em especial para
transações menores.
Em meio a incertezas sobre a cotação e sua origem, quem já está nessa
não diminui a empolgação: "O bitcoin é a maior invenção desde a
internet, é uma tecnologia, um protocolo, que já foi inventado e já é
útil. E não tem como desfazer uma invenção genial", afirma Micaroni
Lalli, o analista de sistemas.