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sábado, 15 de fevereiro de 2014

O risco do radicalismo

A morte do cinegrafista Santiago Andrade, fruto da inaceitável violência dos black blocs, revela o despreparo da polícia para lidar com extremistas e coloca o País diante do desafio de conter o vandalismo sem atentar contra liberdades democráticas

por Sérgio Pardellas (sergiopardellas@istoe.com.br)
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TRAGÉDIA ANUNCIADA
Na quinta-feira 6, os black blocs Fábio Raposo e Caio Silva acenderam e
dispararam o rojão que atingiu e matou o cinegrafista Santiago Andrade
Um dos principais militantes anarquistas do século XIX, Sergei Nechaev criou em 1869, em Moscou, o grupo terrorista Narodnaya Rasprava, que pregava a realização de atos de assassinato de grandes figuras políticas e práticas de terrorismo contra a burguesia e a imprensa com o objetivo de estimular insurreições populares. Exatamente um século depois, em dezembro de 1969, inspirados nas ideias de Nechaev, grupos terroristas da Itália, com a pretensão de desestabilizar a ordem política do pós-guerra, promoveram uma ação que ficou conhecida como o “Atentado à Piazza Fontana”, detonando uma bomba que destruiu o Banco Nacional de Agricultura, em Milão, matou 16 pessoas inocentes e deixou outras 88 feridas. Nada disso, afora a inspiração anarquista dos atos e o clamor popular que se seguiu às mortes na Itália, se assemelha ao que ocorreu há duas semanas no Rio de Janeiro. Na quinta-feira 6, o cinegrafista Santiago Ilídio Andrade, da TV Bandeirantes, que registrava o confronto entre manifestantes e policiais durante protesto contra o aumento da passagem de ônibus, no centro da cidade, foi atingido na cabeça por um rojão lançado por dois integrantes do grupo Black Bloc – linha de frente das manifestações que lançaram o Brasil, desde junho do ano passado, na maior convulsão social experimentada em décadas.
Em consequência do ataque, Andrade sofreu afundamento do crânio e faleceu na segunda-feira 10.
Convém delimitar bem os dois episódios para não se cometer equívocos históricos que resultem em diagnósticos errados e embalem soluções políticas inapropriadas. O que se configurou na Itália em 1969 foi puro ato de terrorismo, no sentido preciso da palavra, porque sua intenção era a de provocar terror, morresse quem morresse, uma criança ou um homem, jornalista ou político. No Rio, a situação foi outra. Na esteira das manifestações de junho passado, quando a sociedade tomou as ruas demonstrando um mal-estar difuso, vândalos e arruaceiros, muitos deles influenciados por ideais punks e anarquistas, como os black blocs, se apossaram dos movimentos e promoveram radicalismos inaceitáveis, criminosos, mas que, nem de longe, podem ser classificados como ações terroristas que ameaçam a ordem institucional do País. A democracia brasileira segue firme. Na última semana, porém, muitas vozes se levantaram no esforço de encontrar paralelo entre atos terroristas do passado e o que aconteceu na quinta-feira 6, ou seja: um vandalismo que culminou na morte trágica do cinegrafista. Ato contínuo a essa equivocada percepção, entabularam-se medidas que, se levadas adiante, nos fariam adentrar no pantanoso terreno da ameaça às liberdades democráticas. O desafio das autoridades, agora, é encontrar meios de conter e punir com rigor o vandalismo nas manifestações. Mas sem atentar contra as preciosas liberdades que o País tanto lutou para alcançar.
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A indignação e a consternação provocadas pelas circunstâncias da morte de Santiago Andrade se transformaram no catalisador para aprovar às pressas, por exemplo, uma lei que será extremamente deletéria se mantido o seu atual texto, a chamada lei antiterrorismo. No Projeto de Lei 499/2013, em tramitação no Senado, com o apoio de setores do governo federal, do próprio PT e da oposição, as definições para o crime de terrorismo são as seguintes: “Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação de liberdade da pessoa” e “Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante dano a bem ou serviço essencial”. Ou seja, não seria preciso existir uma motivação. Bastaria provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou dano, ou então sua tentativa. Não seria preciso também utilizar armas ou meios capazes de infligir dano real, tendo em vista o agravante estabelecido no parágrafo 2º, do artigo 2º, pois bastaria a existência da ofensa. O ato terrorista, assim, estaria sujeito à livre interpretação, dependendo de quem analisasse o acontecimento e também de sua repercussão. “Criar um tipo de terrorismo, tal como se propõe, draconiano e genérico, não vai impedir que outros crimes sejam praticados. Mas pode servir para que vários atos políticos sejam suprimidos em nome do medo ou da tutela exacerbada, com tipos vagos e punições desproporcionais. Uma típica lei de exceção, enfim”, afirmou Marcelo Semer, juiz de direito e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.

O Brasil não precisa de leis de exceção. O próprio Código Penal vigente prevê punições para quem se reúne para cometer crimes, depredar bancos, lojas e o patrimônio público. Quando três ou mais pessoas se juntam para matar alguém, por exemplo, elas incorrem no crime de associação criminosa, cuja pena varia de um a três anos de reclusão. Já a depredação de instituições privadas é tipificada como dano ou como dano qualificado, quando envolve patrimônio público. Nesses casos, a punição prevista é de seis meses a três anos de prisão. Para a advogada criminal Fernanda Tórtima, pelo texto do projeto de lei proposto, até mesmo uma briga de torcidas em estádio de futebol poderia ser considerada terrorismo. “Afinal, há um pânico generalizado e ofensa à integridade física de pessoas”, diz ela. “O mínimo que se pode esperar é que o legislador identifique a motivação do suposto agente terrorista.” A advogada considera ainda que a necessidade da tipificação do terrorismo como crime é questionável. “Criar um tipo penal de terrorismo num país como o Brasil, que não tem nenhuma tradição nesse tipo de crime?”, questiona Fernanda Tórtima. Mesmo que o ataque ao cinegrafista da Bandeirantes fosse um ato terrorista, já haveria uma lei para enquadrá-los, a de Segurança Nacional, contemplada na Constituição de 1988 em seu artigo 20.
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Caso o Congresso Nacional queira realmente tratar a questão com a seriedade devida, ele pode aprovar boas propostas já em tramitação, que enfrentam o problema sem atacar a ordem institucional. A principal delas foi encaminhada ao Senado pelo secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame. Na proposta estão contidos os elementos essenciais para disciplinar os protestos e punir com rigor quem deles se aproveita. O projeto de Beltrame sugere a proibição de porte de armas pelos manifestantes e objetos capazes de provocar lesões, assim como a utilização de máscaras ou qualquer forma de dificultar a identificação dos vândalos. Quem descumprir poderá ser detido enquanto o protesto ocorrer e ser responsabilizado civil e criminalmente.
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De qualquer forma, se a polícia já tivesse cumprido seu papel, certamente a situação não teria chegado a esse ponto. Desde a eclosão das manifestações populares, em junho do ano passado, está claro que faltam preparo e uma política de prevenção e inteligência para identificar os extremistas. Para piorar, sobraram excessos e descontrole na hora de lidar com os protestos. Um dado que ilustra bem esse comportamento revela que, desde o ano passado, 75,5% das agressões contra jornalistas em manifestações partiram da PM ou da Força Nacional de Segurança. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) contabilizou até o momento 117 casos. Cobranças pelo recrudescimento da ação policial voltaram perigosamente à pauta nacional a partir da morte do cinegrafista, mas a história já cansou de mostrar que não é o melhor caminho a trilhar em situações como a atual. Episódios como a própria repressão aos primeiros manifestos de junho e casos como o atropelamento proposital por um policial de uma garota que participava de um protesto no último dia 25, nas proximidades da rua Augusta, em São Paulo, revelam que essas ações só contribuem para estimular novas insurreições, nunca para contê-las. A democracia dá um passo para trás cada vez que uma manifestação é coberta por violência – não importa de que lado venha. Um abuso jamais justifica outro, um retrocesso não apaga o anterior. É preciso levar em conta que, assim como a polícia vê o manifestante como inimigo, grande parte da população, especialmente as camadas mais pobres, enxerga o braço policial do Estado, que está na esquina da sua casa, como grande fonte de ameaça.
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Para saber lidar com os black blocs, primeiro é preciso decifrá-los. Quando a tática black bloc começou a ser utilizada nos protestos brasileiros, a polícia tinha pouco ou nenhum conhecimento sobre ela, mesmo que não se tratasse de um movimento novo. Grupos vestidos de preto, mascarados, de ideologia anarquista ou anarco-punk, que veem na violência e na depredação uma “forma legítima” de protesto, existem desde a década de 1980. Surgiram na Alemanha, no contexto da Guerra Fria. Mais recentemente, durante as manifestações do Occupy (EUA), da Primavera Árabe e dos protestos ligados à crise econômica na Europa (Grécia, Espanha, Reino Unido), os black blocs ganharam ainda mais visibilidade graças à organização de grupos na internet. Apesar disso, as autoridades brasileiras foram pegas de surpresa. Depois, faltou antever o próximo passo. “A reação da polícia é sempre inesperada, mas os protestos já têm quase um ano e, pelo menos, algumas coisas têm sido conversadas. Alguns procedimentos são mais discutidos para lidar com o problema. Eles (a polícia) sabem que estão sendo vistos, e podem ser muito criticados se agirem com excesso. Eles apanharam bastante também e já foram bastante criticados”, afirma Bruno Paes Manso, economista, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

O profundo ressentimento contra as supostas injustiças do “sistema” e um certo senso de oportunidade para uma vendeta contra as forças policiais impulsionaram a radicalização da tática black bloc nas bordas das grandes cidades. A popularização desses grupos pode ser atribuída, ao menos em parte, à grande visibilidade dada pela mídia. “Coletivos” passaram a se organizar via redes sociais e ganharam mais adeptos, notoriamente adolescentes e jovens das periferias que viram no uso da violência uma forma de vingança contra o que eles consideram repressão estatal. Essa repressão inclui especialmente a violência policial. Não são raros os jovens black bloc que tiveram amigos ou conhecidos mortos em ações da polícia. Eles se ressentem das humilhações sofridas em abordagens e veem no protesto contra o “sistema” (governo, polícia, bancos e outras grandes empresas privadas) uma forma de devolver tudo isso. “A polícia precisa aprender a lidar com manifestação, não só black bloc, mas com tudo. Há um sentimento de raiva absoluta contra a PM, um sentimento acumulado. São chamados de fascistas, opressores. Esses meninos (do Black Bloc) tiveram experiências horríveis com a polícia. E, quando a gente tem alguma atuação policial definida como agressiva ou violenta, essa raiva aumenta e leva a mais violência ainda por parte do Black Bloc. É um círculo”, alerta Esther Solano, professora de relações internacionais da Unifesp e pesquisadora do movimento Black Bloc.
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Nos últimos dias deflagrou-se no País uma troca de acusações sobre os causadores da morte de Santiago: se a mídia, as redes sociais ou a polícia. Lamentavelmente, a tragédia não tem mais como ser reparada. Fica a dor da mulher, Arlita, e da filha Vanessa. Quais medidas serão tomadas de agora em diante? Para Adilson Paes de Souza, tenente-coronel da Polícia Militar de São Paulo e mestre em direitos humanos pela USP, autor do livro “O Guardião da Cidade – Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares”, a sociedade e o Estado precisam analisar a questão a fundo e fazer um mea-culpa. “O fenômeno black bloc tem que ser entendido. Repressão por repressão, a polícia sabe fazer. Você adequa a conduta ao Código Penal e pronto. Mas é uma boa oportunidade de o Estado brasileiro como um todo fazer um mea-culpa. No que eu posso ter contribuído? Será que, ao não prover os direitos sociais básicos, eu deixei que houvesse uma lacuna?” É um bom debate. Dessa forma, é possível caminhar mais celeremente para a solução, evitando que novas mortes como a de Santiago Andrade aconteçam.
Com reportagem de Lucas Bessel; colaboraram Michel Alecrim e Wilson Aquino

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