A morte do cinegrafista Santiago Andrade, fruto da inaceitável violência dos black blocs, revela o despreparo da polícia para lidar com extremistas e coloca o País diante do desafio de conter o vandalismo sem atentar contra liberdades democráticas
por Sérgio Pardellas (sergiopardellas@istoe.com.br)TRAGÉDIA ANUNCIADA
Na quinta-feira 6, os black blocs Fábio Raposo e Caio Silva acenderam e
dispararam o rojão que atingiu e matou o cinegrafista Santiago Andrade
Um dos principais militantes anarquistas do
século XIX, Sergei Nechaev criou em 1869, em Moscou, o grupo terrorista
Narodnaya Rasprava, que pregava a realização de atos de assassinato de
grandes figuras políticas e práticas de terrorismo contra a burguesia e a
imprensa com o objetivo de estimular insurreições populares. Exatamente
um século depois, em dezembro de 1969, inspirados nas ideias de
Nechaev, grupos terroristas da Itália, com a pretensão de desestabilizar
a ordem política do pós-guerra, promoveram uma ação que ficou conhecida
como o “Atentado à Piazza Fontana”, detonando uma bomba que destruiu o
Banco Nacional de Agricultura, em Milão, matou 16 pessoas inocentes e
deixou outras 88 feridas. Nada disso, afora a inspiração anarquista dos
atos e o clamor popular que se seguiu às mortes na Itália, se assemelha
ao que ocorreu há duas semanas no Rio de Janeiro. Na quinta-feira 6, o
cinegrafista Santiago Ilídio Andrade, da TV Bandeirantes, que registrava
o confronto entre manifestantes e policiais durante protesto contra o
aumento da passagem de ônibus, no centro da cidade, foi atingido na
cabeça por um rojão lançado por dois integrantes do grupo Black Bloc –
linha de frente das manifestações que lançaram o Brasil, desde junho do
ano passado, na maior convulsão social experimentada em décadas.
Em consequência do ataque, Andrade sofreu afundamento do crânio e faleceu na segunda-feira 10.
Em consequência do ataque, Andrade sofreu afundamento do crânio e faleceu na segunda-feira 10.
Convém delimitar bem os dois episódios para
não se cometer equívocos históricos que resultem em diagnósticos
errados e embalem soluções políticas inapropriadas. O que se configurou
na Itália em 1969 foi puro ato de terrorismo, no sentido preciso da
palavra, porque sua intenção era a de provocar terror, morresse quem
morresse, uma criança ou um homem, jornalista ou político. No Rio, a
situação foi outra. Na esteira das manifestações de junho passado,
quando a sociedade tomou as ruas demonstrando um mal-estar difuso,
vândalos e arruaceiros, muitos deles influenciados por ideais punks e
anarquistas, como os black blocs, se apossaram dos movimentos e
promoveram radicalismos inaceitáveis, criminosos, mas que, nem de longe,
podem ser classificados como ações terroristas que ameaçam a ordem
institucional do País. A democracia brasileira segue firme. Na última
semana, porém, muitas vozes se levantaram no esforço de encontrar
paralelo entre atos terroristas do passado e o que aconteceu na
quinta-feira 6, ou seja: um vandalismo que culminou na morte trágica do
cinegrafista. Ato contínuo a essa equivocada percepção, entabularam-se
medidas que, se levadas adiante, nos fariam adentrar no pantanoso
terreno da ameaça às liberdades democráticas. O desafio das autoridades,
agora, é encontrar meios de conter e punir com rigor o vandalismo nas
manifestações. Mas sem atentar contra as preciosas liberdades que o País
tanto lutou para alcançar.
A indignação e a consternação provocadas
pelas circunstâncias da morte de Santiago Andrade se transformaram no
catalisador para aprovar às pressas, por exemplo, uma lei que será
extremamente deletéria se mantido o seu atual texto, a chamada lei
antiterrorismo. No Projeto de Lei 499/2013, em tramitação no Senado, com
o apoio de setores do governo federal, do próprio PT e da oposição, as
definições para o crime de terrorismo são as seguintes: “Provocar ou
infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de
ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação de
liberdade da pessoa” e “Provocar ou infundir terror ou pânico
generalizado mediante dano a bem ou serviço essencial”. Ou seja, não
seria preciso existir uma motivação. Bastaria provocar ou infundir
terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou dano, ou então sua
tentativa. Não seria preciso também utilizar armas ou meios capazes de
infligir dano real, tendo em vista o agravante estabelecido no parágrafo
2º, do artigo 2º, pois bastaria a existência da ofensa. O ato
terrorista, assim, estaria sujeito à livre interpretação, dependendo de
quem analisasse o acontecimento e também de sua repercussão. “Criar um
tipo de terrorismo, tal como se propõe, draconiano e genérico, não vai
impedir que outros crimes sejam praticados. Mas pode servir para que
vários atos políticos sejam suprimidos em nome do medo ou da tutela
exacerbada, com tipos vagos e punições desproporcionais. Uma típica lei
de exceção, enfim”, afirmou Marcelo Semer, juiz de direito e
ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.
O Brasil não precisa de leis de exceção. O próprio Código Penal vigente prevê punições para quem se reúne para cometer crimes, depredar bancos, lojas e o patrimônio público. Quando três ou mais pessoas se juntam para matar alguém, por exemplo, elas incorrem no crime de associação criminosa, cuja pena varia de um a três anos de reclusão. Já a depredação de instituições privadas é tipificada como dano ou como dano qualificado, quando envolve patrimônio público. Nesses casos, a punição prevista é de seis meses a três anos de prisão. Para a advogada criminal Fernanda Tórtima, pelo texto do projeto de lei proposto, até mesmo uma briga de torcidas em estádio de futebol poderia ser considerada terrorismo. “Afinal, há um pânico generalizado e ofensa à integridade física de pessoas”, diz ela. “O mínimo que se pode esperar é que o legislador identifique a motivação do suposto agente terrorista.” A advogada considera ainda que a necessidade da tipificação do terrorismo como crime é questionável. “Criar um tipo penal de terrorismo num país como o Brasil, que não tem nenhuma tradição nesse tipo de crime?”, questiona Fernanda Tórtima. Mesmo que o ataque ao cinegrafista da Bandeirantes fosse um ato terrorista, já haveria uma lei para enquadrá-los, a de Segurança Nacional, contemplada na Constituição de 1988 em seu artigo 20.
O Brasil não precisa de leis de exceção. O próprio Código Penal vigente prevê punições para quem se reúne para cometer crimes, depredar bancos, lojas e o patrimônio público. Quando três ou mais pessoas se juntam para matar alguém, por exemplo, elas incorrem no crime de associação criminosa, cuja pena varia de um a três anos de reclusão. Já a depredação de instituições privadas é tipificada como dano ou como dano qualificado, quando envolve patrimônio público. Nesses casos, a punição prevista é de seis meses a três anos de prisão. Para a advogada criminal Fernanda Tórtima, pelo texto do projeto de lei proposto, até mesmo uma briga de torcidas em estádio de futebol poderia ser considerada terrorismo. “Afinal, há um pânico generalizado e ofensa à integridade física de pessoas”, diz ela. “O mínimo que se pode esperar é que o legislador identifique a motivação do suposto agente terrorista.” A advogada considera ainda que a necessidade da tipificação do terrorismo como crime é questionável. “Criar um tipo penal de terrorismo num país como o Brasil, que não tem nenhuma tradição nesse tipo de crime?”, questiona Fernanda Tórtima. Mesmo que o ataque ao cinegrafista da Bandeirantes fosse um ato terrorista, já haveria uma lei para enquadrá-los, a de Segurança Nacional, contemplada na Constituição de 1988 em seu artigo 20.
Caso o Congresso Nacional queira realmente
tratar a questão com a seriedade devida, ele pode aprovar boas propostas
já em tramitação, que enfrentam o problema sem atacar a ordem
institucional. A principal delas foi encaminhada ao Senado pelo
secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame. Na
proposta estão contidos os elementos essenciais para disciplinar os
protestos e punir com rigor quem deles se aproveita. O projeto de
Beltrame sugere a proibição de porte de armas pelos manifestantes e
objetos capazes de provocar lesões, assim como a utilização de máscaras
ou qualquer forma de dificultar a identificação dos vândalos. Quem
descumprir poderá ser detido enquanto o protesto ocorrer e ser
responsabilizado civil e criminalmente.
De qualquer forma, se a polícia já tivesse
cumprido seu papel, certamente a situação não teria chegado a esse
ponto. Desde a eclosão das manifestações populares, em junho do ano
passado, está claro que faltam preparo e uma política de prevenção e
inteligência para identificar os extremistas. Para piorar, sobraram
excessos e descontrole na hora de lidar com os protestos. Um dado que
ilustra bem esse comportamento revela que, desde o ano passado, 75,5%
das agressões contra jornalistas em manifestações partiram da PM ou da
Força Nacional de Segurança. A Associação Brasileira de Jornalismo
Investigativo (Abraji) contabilizou até o momento 117 casos. Cobranças
pelo recrudescimento da ação policial voltaram perigosamente à pauta
nacional a partir da morte do cinegrafista, mas a história já cansou de
mostrar que não é o melhor caminho a trilhar em situações como a atual.
Episódios como a própria repressão aos primeiros manifestos de junho e
casos como o atropelamento proposital por um policial de uma garota que
participava de um protesto no último dia 25, nas proximidades da rua
Augusta, em São Paulo, revelam que essas ações só contribuem para
estimular novas insurreições, nunca para contê-las. A democracia dá um
passo para trás cada vez que uma manifestação é coberta por violência –
não importa de que lado venha. Um abuso jamais justifica outro, um
retrocesso não apaga o anterior. É preciso levar em conta que, assim
como a polícia vê o manifestante como inimigo, grande parte da
população, especialmente as camadas mais pobres, enxerga o braço
policial do Estado, que está na esquina da sua casa, como grande fonte
de ameaça.
Para saber lidar com os black blocs,
primeiro é preciso decifrá-los. Quando a tática black bloc começou a
ser utilizada nos protestos brasileiros, a polícia tinha pouco ou nenhum
conhecimento sobre ela, mesmo que não se tratasse de um movimento novo.
Grupos vestidos de preto, mascarados, de ideologia anarquista ou
anarco-punk, que veem na violência e na depredação uma “forma legítima”
de protesto, existem desde a década de 1980. Surgiram na Alemanha, no
contexto da Guerra Fria. Mais recentemente, durante as manifestações do
Occupy (EUA), da Primavera Árabe e dos protestos ligados à crise
econômica na Europa (Grécia, Espanha, Reino Unido), os black blocs
ganharam ainda mais visibilidade graças à organização de grupos na
internet. Apesar disso, as autoridades brasileiras foram pegas de
surpresa. Depois, faltou antever o próximo passo. “A reação da polícia é
sempre inesperada, mas os protestos já têm quase um ano e, pelo menos,
algumas coisas têm sido conversadas. Alguns procedimentos são mais
discutidos para lidar com o problema. Eles (a polícia) sabem que estão
sendo vistos, e podem ser muito criticados se agirem com excesso. Eles
apanharam bastante também e já foram bastante criticados”, afirma Bruno
Paes Manso, economista, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da
Violência da USP.
O profundo ressentimento contra as supostas injustiças do “sistema” e um certo senso de oportunidade para uma vendeta contra as forças policiais impulsionaram a radicalização da tática black bloc nas bordas das grandes cidades. A popularização desses grupos pode ser atribuída, ao menos em parte, à grande visibilidade dada pela mídia. “Coletivos” passaram a se organizar via redes sociais e ganharam mais adeptos, notoriamente adolescentes e jovens das periferias que viram no uso da violência uma forma de vingança contra o que eles consideram repressão estatal. Essa repressão inclui especialmente a violência policial. Não são raros os jovens black bloc que tiveram amigos ou conhecidos mortos em ações da polícia. Eles se ressentem das humilhações sofridas em abordagens e veem no protesto contra o “sistema” (governo, polícia, bancos e outras grandes empresas privadas) uma forma de devolver tudo isso. “A polícia precisa aprender a lidar com manifestação, não só black bloc, mas com tudo. Há um sentimento de raiva absoluta contra a PM, um sentimento acumulado. São chamados de fascistas, opressores. Esses meninos (do Black Bloc) tiveram experiências horríveis com a polícia. E, quando a gente tem alguma atuação policial definida como agressiva ou violenta, essa raiva aumenta e leva a mais violência ainda por parte do Black Bloc. É um círculo”, alerta Esther Solano, professora de relações internacionais da Unifesp e pesquisadora do movimento Black Bloc.
O profundo ressentimento contra as supostas injustiças do “sistema” e um certo senso de oportunidade para uma vendeta contra as forças policiais impulsionaram a radicalização da tática black bloc nas bordas das grandes cidades. A popularização desses grupos pode ser atribuída, ao menos em parte, à grande visibilidade dada pela mídia. “Coletivos” passaram a se organizar via redes sociais e ganharam mais adeptos, notoriamente adolescentes e jovens das periferias que viram no uso da violência uma forma de vingança contra o que eles consideram repressão estatal. Essa repressão inclui especialmente a violência policial. Não são raros os jovens black bloc que tiveram amigos ou conhecidos mortos em ações da polícia. Eles se ressentem das humilhações sofridas em abordagens e veem no protesto contra o “sistema” (governo, polícia, bancos e outras grandes empresas privadas) uma forma de devolver tudo isso. “A polícia precisa aprender a lidar com manifestação, não só black bloc, mas com tudo. Há um sentimento de raiva absoluta contra a PM, um sentimento acumulado. São chamados de fascistas, opressores. Esses meninos (do Black Bloc) tiveram experiências horríveis com a polícia. E, quando a gente tem alguma atuação policial definida como agressiva ou violenta, essa raiva aumenta e leva a mais violência ainda por parte do Black Bloc. É um círculo”, alerta Esther Solano, professora de relações internacionais da Unifesp e pesquisadora do movimento Black Bloc.
Nos últimos dias deflagrou-se no País uma
troca de acusações sobre os causadores da morte de Santiago: se a mídia,
as redes sociais ou a polícia. Lamentavelmente, a tragédia não tem mais
como ser reparada. Fica a dor da mulher, Arlita, e da filha Vanessa.
Quais medidas serão tomadas de agora em diante? Para Adilson Paes de
Souza, tenente-coronel da Polícia Militar de São Paulo e mestre em
direitos humanos pela USP, autor do livro “O Guardião da Cidade –
Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares”, a
sociedade e o Estado precisam analisar a questão a fundo e fazer um
mea-culpa. “O fenômeno black bloc tem que ser entendido. Repressão por
repressão, a polícia sabe fazer. Você adequa a conduta ao Código Penal e
pronto. Mas é uma boa oportunidade de o Estado brasileiro como um todo
fazer um mea-culpa. No que eu posso ter contribuído? Será que, ao não
prover os direitos sociais básicos, eu deixei que houvesse uma lacuna?” É
um bom debate. Dessa forma, é possível caminhar mais celeremente para a
solução, evitando que novas mortes como a de Santiago Andrade
aconteçam.
Com reportagem de Lucas Bessel; colaboraram Michel Alecrim e Wilson Aquino
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