O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pretende anunciar no dia 9 de dezembro, véspera do aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o novo Plano Nacional de Direitos Humanos, com a definição de políticas federais para essa área nos próximos anos. Ele quer fazer o anúncio com o apoio de todos os ministérios. Mas, faltando pouco mais de 20 dias para o evento, ainda existe uma pedra no meio do caminho: dois ministros de Lula não conseguem chegar a um acordo sobre uma importante e delicada parte do plano, que trata da instalação de uma comissão nacional com amplos poderes para apurar crimes da ditadura militar e responsabilizar culpados. A exemplo de outros países que já apuraram os crimes de regimes de exceção, ela teria o nome de Comissão da Verdade e Justiça.
De um lado da disputa está o ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, defensor da comissão. Do outro aparece seu colega Nelson Jobim, da Defesa, avesso à ideia.
Vannuchi argumenta que a comissão seria uma resposta aos anseios das famílias de pessoas torturadas e mortas nos anos da ditadura. Muitas não conseguiram até hoje localizar os corpos dos parentes. Na visão de Jobim, porém, ela traria o risco de animar espíritos revanchistas e criar atritos desnecessários com as Forças Armadas.
As divergências vão além. Vannuchi acredita que uma comissão com amplos poderes pode recuperar arquivos em poder de militares e elucidar casos de desaparecimentos. Jobim aceita as declarações de chefes militares de que esses arquivos não existem mais. Teriam sido todos destruídos.
Vannuchi acha que os responsáveis pelas torturas, mortes e desaparecimento de corpos ainda podem ser punidos. Argumenta, escorado em declarações e acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, que crimes de violação de direitos humanos, de lesa-humanidade, não prescrevem.
No sentido contrário, Jobim, que é jurista e já presidiu o Supremo Tribunal Federal (STF), advoga que a Lei da Anistia envolveu não só perseguidos políticos, mas também acusados. O objetivo da lei de mão dupla, segundo tal interpretação, teria sido sobretudo o de reconciliar o País.
"Não sou revisionista", já disse o ministro da Defesa. "Não temos legitimidade para rever o acordo político de 1979."
No momento, os dois ministros acompanham os passos do STF, que se prepara para dar uma resposta a essa polêmica sobre a interpretação da lei, assinada pelo general João Baptista Figueiredo, nos estertores da ditadura.
NEGOCIAÇÃO
Espera-se que os dois ministros se reúnam nos próximos dias para tentar um acordo. Vannuchi já deu sinais de que estaria disposto a mudar o nome da comissão, retirando a palavra justiça. Ficaria apenas Comissão da Verdade.
A mudança iria além do nome. Na prática, os integrantes da comissão evitariam adentrar a área judicial, concentrando-se na busca de informações para esclarecer fatos da época.
Vannuchi diz que não se deve esperar que a comissão tenha caráter judicial nem acreditar que possa ser dominada por algum espírito de revanchismo. "Busca-se sobretudo o reconhecimento pleno do que ocorreu", afirma.
A margem de negociação de Jobim é mais estreita. Sabe-se que aceitaria no máximo a criação de uma Comissão de Reconciliação.
PRESSÕES
Diante do impasse, a decisão deve ficar para o presidente Lula. A data prevista para o anúncio do Plano Nacional de Direitos Humanos, o terceiro desde 1991, está cada vez mais próxima e as pressões dos grupos interessados na questão aumentam.
Vannuchi é um petista histórico. Antes da redemocratização militou na esquerda, participou de uma organização que defendia a resistência armada, foi preso e torturado. Um parente dele, Alexandre Vannuchi Leme, morreu nas mãos da polícia política. Não seria exato, porém, afirmar que defende suas posições baseado exclusivamente em convicções pessoais. No caso da comissão, é empurrado também pelo dever de ofício.
A decisão de incluir a comissão no Plano Nacional não partiu de Vannuchi, mas da Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em dezembro do ano passado. Foram seus participantes, investidos de poderes deliberativos, que votaram pela criação da comissão. A propósito, vale recordar que naquele encontro os dois representantes do Ministério da Defesa votaram contra a proposta. Foram 25 votos a favor e dois contra.
Outro fator que empurra Vannuchi vem do exterior. É cada vez maior a pressão internacional para que o Brasil conclua o processo de restauração democrática, com o esclarecimento de fatos do período - para evitar a repetição de ciclos de violência.
À frente da pasta de Direitos Humanos ele vem enfrentando críticas de grupos de familiares de mortos e desaparecidos. Neste ano o motivo foi não ter conseguido frear Jobim no caso da expedição enviada ao Pará, em busca de corpos dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia.
Os familiares queriam que a expedição ficasse sob controle civil, vinculada à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Não achavam correto que os militares, inimigos dos guerrilheiros no passado, comandassem as buscas. Mas foi o que ocorreu, após Jobim vencer uma queda de braço com Vannuchi.
Indignada, a presidente do grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, Cecília Coimbra, chegou a dizer que as buscas não passavam de encenação para a mídia.O temor agora é de que se crie uma comissão sem força, apenas para dar uma resposta às organizações internacionais de direitos humanos.
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