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sábado, 18 de junho de 2011

Atentado contra a história

O Brasil está andando na contramão da história. Por sugestão dos senadores José Sarney (PMDB-AP) e Fernando Collor de Mello (PTB-AL), a presidente Dilma Rousseff decidiu rever o projeto de lei de acesso a informações públicas, admitindo a tese obscurantista de que alguns fatos e documentos merecem sigilo eterno. A atitude agride um princípio capaz de qualificar as democracias. A história de um país é de interesse público e deve ser tratada da forma mais transparente possível, pois pertence a todos os cidadãos. É inaceitável que apenas um determinado grupo de plantão no poder tenha acesso às informações sobre o passado de sua nação. Muito menos que esse grupo decida qual documento deve ou não ser divulgado. Em todo o País historiadores se declararam perplexos com a posição do governo. “É um imenso retrocesso”, afirma José Murilo de Carvalho, membro da Academia Brasileira de Letras. A mudança do projeto de lei evoca um tempo de sombras. No mundo atual, é cada vez maior a pressão para trazer a público o que os governantes tentam esconder. Um bom exemplo veio recentemente dos Estados Unidos, que divulgaram 40 volumes de arquivos secretos da guerra do Vietnã. Quatro décadas atrás, o governo americano processava jornais que vazavam esses documentos.

Os ex-presidentes Collor e Sarney argumentam que a divulgação de informações sigilosas teria impacto prejudicial à diplomacia brasileira, aos serviços de inteligência e à segurança nacional. Fatos históricos sobre a Guerra do Paraguai e a tomada do Estado do Acre foram apresentados como justificativa. Na quinta-feira 16, Collor divulgou uma lista com as mudanças que pretende impor ao projeto que chegou da Câmara. O texto original estabelece o prazo de 25 anos para a manutenção do sigilo de informações ultrassecretas, com a possibilidade de apenas uma prorrogação. Assim, após 50 anos, no máximo, todo e qualquer documento público estaria disponível aos interessados. A regra atual, definida no fim do governo Fernando Henrique, estabelece um prazo de 30 anos, renovável indefinidamente, para os documentos ultrassecretos.

A ideia de Collor é semelhante. Estabelece a renovação contínua para o prazo de 25 anos previstos no texto do projeto de lei da Câmara. Essa iniciativa fez com que toda a discussão sobre a abertura de arquivos, inclusive os da ditadura, voltasse à estaca zero. E o pior é que a medida teve o apoio imediato do governo, que até então defendia o contrário. Depois do impacto negativo, a nova ministra das Relações Institucionais, Ideli Salvatti, tentou reparar o erro, afirmando que a lei em discussão no Senado não valeria para os documentos da ditadura. Mas, havendo o sigilo eterno, será difícil convencer o Exército a tornar públicos os crimes cometidos em nome do regime militar.

Questionado por ISTOÉ, o presidente do Senado, José Sarney, alegou que abrir todos os arquivos seria uma espécie de “oficialização do WikiLeaks, em alusão ao vazamento de documentos diplomáticos dos EUA. “Abrir a porta e liberar tudo não pode. Fui presidente (da República) e sei disso”, disse Sarney, que recentemente tentou impedir que o impeachment de Collor figurasse em uma exposição sobre a história do Senado. Para se defender, lembrou que essa era a proposta contida no projeto de lei encaminhado ao Congresso, em 2009, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “O Collor me alertou que o projeto do Lula tinha sido todo alterado na Câmara”, afirmou. Collor, que preside a Comissão de Relações Exteriores do Senado, procurou Sarney em maio com um relatório preparado por sua assessoria. Esse dossiê teria sido entregue também ao então ministro da Casa Civil, Antônio Palocci, e a Luiz Sérgio, que ainda ocupava a Secretaria de Relações Institucionais. Há duas semanas, Collor encaminhou o documento à presidente Dilma. “Ela se mostrou sensibilizada e disposta a encontrar a melhor solução”, disse o ex-presidente.

O projeto da Câmara chegou a ser aprovado em duas comissões técnicas do Senado: Comunicações e Direitos Humanos. Até então, a orientação do Palácio do Planalto era para aprovar o projeto que saiu da Câmara, segundo o líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR). Sem conseguir explicar os motivos, Jucá reconheceu que a postura oficial agora é outra. “Precisamos discutir mais”, alegou. A votação do projeto no Senado, portanto, deve ficar para o segundo semestre. O que não encerra o problema. Caso seja modificado, o texto deve retornar à Câmara, onde poderá ser refeito. O presidente da Casa, deputado Marco Maia (PT-RS), antecipou que está preparado para a briga. “O povo tem de conhecer sua história. Vamos recompor o que for modificado”, disse Maia. Caberá, então, à presidente Dilma vetar as modificações, especialmente o polêmico artigo que prevê o prazo de 25 anos para documentos ultrassecretos, com apenas uma prorrogação. Considerando seu passado de luta pela democracia e o discurso pela instauração da Comissão da Verdade e a abertura dos arquivos da ditadura, Dilma cometerá, no mínimo, uma enorme contradição se adotar a tese do sigilo eterno. “Duvido que a presidente Dilma coloque a digital dela nisso”, aposta o senador Walter Pinheiro (PT-BA), que relatou o projeto na Comissão de Comunicação do Senado.

Em conversas reservadas com senadores, Collor e Sarney insistem em defender a versão de que há documentos comprometedores a respeito da anexação do Acre, antigo território da Bolívia, e sobre a Guerra do Paraguai. A lei atual determina que questões que afetem a soberania, a integridade territorial, além de planos militares, econômicos e projetos de pesquisa científica, devem levar a chancela de ultrassecretos. De acordo com o Decreto 4.553/2002, a classificação desses documentos é de competência do presidente, do vice, dos ministros de Estado e dos comandantes militares, além de chefes de missões diplomáticas. Talvez Collor e Sarney não lembrem, ou não queiram lembrar, que no início da década de 1990 o Itamaraty criou uma seleta comissão de acadêmicos com a missão de analisar seus arquivos históricos, inclusive os da Guerra do Paraguai. Ao término do trabalho, o grupo de especialistas concluiu que não havia, nos milhares de páginas emboloradas, nenhuma informação que pudesse criar suscetibilidades ou reacender disputas bilaterais. Ato contínuo, o chanceler Celso Lafer autorizou a abertura do arquivo para consulta. “Foi um gesto de grandeza compatível com qualquer nação realmente democrática”, afirma o imortal José Murilo de Carvalho. “Examinamos tudo e vimos que não havia qualquer coisa que desaconselhasse a abertura dos documentos”, diz.

Autor de uma competente biografia de dom Pedro II, ele lembra que as questões sobre os limites do País também passaram pelo crivo de um embaixador especializado em negociação de fronteiras. O diplomata também não fez restrições, reiterando que todos os acordos fechados pelo Barão do Rio Branco são atos jurídicos perfeitos e não estão sujeitos a contestações. Francisco Doratioto, que é autor do livro mais consistente sobre a Guerra do Paraguai já publicado, teve acesso aos arquivos revisados por Murilo de Carvalho e acrescenta que boa parte das informações já era de domínio público no fim do século XIX. “De inédito havia umas 20 cartas do Solano López sobre o estado de saúde de suas tropas”, afirma. Doratioto pondera sobre a possibilidade de existirem detalhes não conhecidos sobre a anexação do Acre, mas também acha difícil que novas informações possam comprometer a segurança nacional. “Isso é assunto pacificado. Só serve para atiçar alguns grupos no Paraguai e na Bolívia que usam isso para pressionar o governo brasileiro”, afirma.

O embaixador Celso Lafer concorda e alerta para a postura irresponsável dos ex-presidentes Collor e Sarney. “Esse tipo de argumento só serve para levantar suspeitas sem fundamento e cria preocupações desnecessárias para nossos vizinhos”, disse à ISTOÉ. Lafer, que em sua gestão aprovou duas portarias regulamentando a classificação de documentos, acha que o sigilo eterno é inconstitucional e tende a manchar a imagem do Brasil no cenário internacional. “O que caracteriza uma democracia é o exercício público do poder comum. A nossa Constituição estabelece a publicidade dos atos como regra. O segredo é exceção”, afirma. Em sua gestão à frente do Itamaraty, o embaixador lembra que era responsável por determinar o nível de classificação de sigilo dos ofícios, relatórios e memorandos por ele assinados. Mesmo assim, garante não ter classificado um só documento de ultrassecreto. “Tudo que escrevi em meu trabalho, até as coisas mais sensíveis, poderiam ser divulgadas sem o menor problema dentro de dez ou 15 anos”, afirma. “Nenhum documento, por mais sensível que seja, pode ficar indefinidamente guardado nas arcas do Estado.” É o que se espera.

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