As bombas rudimentares, de fabricação caseira, e os extremistas aparentemente integrados ao cotidiano dos EUA, sem conexão com redes internacionais, alertam para a disseminação de um terrorismo difuso que assusta o mundo
Mariana Queiroz Barboza
Aos 78 anos, com 45 corridas de longa
distância no currículo, três delas em Boston, o americano Bill Iffrig é
um maratonista experimentado. Nunca, no entanto, suas pernas haviam
fraquejado tão próximo da linha de chegada como na segunda-feira 15, Dia
do Patriota nos Estados Unidos. Faltavam menos de cinco metros da
Boylston Street para o fim da prova e Iffrig estava orgulhoso de seu
tempo. Foi quando ele sentiu o corpo tremer, atingido pelas ondas de
choque da explosão de uma bomba. Iffrig viu as pernas sem controle e
precisou se apoiar no chão, enquanto uma nuvem de fumaça envolvia tudo
ao seu redor. A imagem do veterano atleta abatido, com sua camiseta
laranja e short preto, socorrido por policiais que pareciam bailar a sua
frente, se tornaria um emblema do primeiro atentado terrorista ocorrido
nos EUA desde o fatídico 11 de setembro de 2001. Sem ferimentos, Iffrig
é um homem de sorte. Perto do local de sua queda, estavam mortos Martin
Richard, um menino de 8 anos, Krystle Campbell, 29 anos, gerente de um
restaurante, e a estudante chinesa Lu Lingzi, 23 anos. Outras 179
pessoas sofriam e sangravam em meio à destruição provocada pelas duas
bombas que explodiram quase simultaneamente na Boylston Street.
EXTREMISTAS
Os irmãos Tamerlan e Dzhokhar Tsarnaev foram identificados
como responsáveis pelo atentado na Maratona de Boston
Foi um novo tipo de terror que abalou os
Estados Unidos. Um terror ao mesmo tempo vulgar e alarmante. Seus
autores não precisaram de grandes ferramentas, tecnologias sofisticadas,
componentes de difícil acesso ou explosivos contrabandeados para
preparar seus artefatos mortais. Os terroristas apenas foram às compras.
Como qualquer cidadão, sem chamar a atenção de ninguém. Utilizaram
panelas de pressão, pregos, roldanas e todo lixo metálico que pudesse
ferir, como estilhaços de granada. O detonador rudimentar, montado em
latas de energéticos e acionado por telefone celular, e um explosivo,
que tem fabricação detalhada pela internet, completavam a engenhoca.
Bomba simplória, para ser usada por qualquer mente doentia. O horror
banalizado, de varejo, e por isso mesmo ainda mais difícil de controlar,
desafia os avanços da última década, que permitiram o monitoramento de
redes do terror internacional e da compra de explosivos e materiais
suspeitos. “Não é mais necessário sair do país para se radicalizar”, diz
Steve Emerson, diretor-executivo do Investigative Project on Terrorism,
um dos maiores bancos de dados sobre grupos terroristas do mundo. Ele
lembra que há três anos circula na internet um artigo em inglês da
revista “Inspire” (ligada à Al-Qaeda), intitulado “Faça uma bomba na
cozinha de sua mãe”. A construção de um artefato explosivo caseiro é
mostrada passo a passo. Esse tipo de bomba já vinha sendo usado para
atacar soldados americanos no Afeganistão, mas num ambiente civil, onde
não há uniformes de proteção, seu poder é ainda mais letal.
Na quinta-feira 18 o mundo começou a
conhecer os rostos dos homens que carregaram a bomba de panela de
pressão em Boston. O FBI divulgou as imagens de dois rapazes comuns,
vestindo jaquetas de moletom escuras, bonés de beisebol e mochilas nas
costas. “Alguém aí fora conhece esses indivíduos”, afirmou o agente
especial responsável pelo escritório da polícia federal em Boston,
Richard DesLauriers. Eram os irmãos Tsarnaev, russos nascidos na região
da Chechênia. Tamerlan, 26 anos, e Dzhokhar, 19, se mudaram com os pais
para Cambridge, nos Estados Unidos, há cerca de uma década. Tamerlan
estudava engenharia no Bunker Hill Community College e praticava boxe.
Dzhokhar estava registrado na Universidade de Massachusets – Dartmouth
(UMD) e foi um atleta popular durante o ensino médio. “Um anjo”, segundo
definiu o pai, Anzor. À imprensa americana, os vizinhos de Dzhokhar
repetiram versões de que nada em seu caráter ou conduta poderia sugerir
um comportamento terrorista. Descrito como bom funcionário, que sempre
aparecia no horário, Dzhokhar trabalhou como salva-vidas na piscina da
Universidade Harvard, segundo a rede CNN. Ele morava num dos dormitórios
da UMD e era ativo nas redes sociais. Em seu perfil numa rede russa,
Dzhokhar classifica sua “visão de mundo” como islâmica, sua “prioridade
pessoal” como “carreira e dinheiro” e admitiu que apoia a causa da
libertação da Chechênia. Na conta do Twitter atribuída a ele, publicou
na terça-feira 16, às 10h43 da noite: “Eu sou o tipo de cara livre de
estresse.”
VETERANO
Bill Iffrig, maratonista de 78 anos, se apoiou no chão da Boylston Street
quando o impacto das bombas fez suas pernas tremerem
Ao canal de tevê CBS, um tio dos irmãos
Tsarnaev disse que a ação de seus sobrinhos causara vergonha à sua
família e a toda a comunidade chechena. Outro tio contou que Tamerlan
havia ligado para ele após o atentado pedindo perdão. A tia Maret
Tsarnaev questionou, em entrevista ao jornal “Toronto Sun”: “Por que
raios eles fariam isso?” A resposta completa ainda está longe de ser
esclarecida, mas já tem uma forte pista: “Seria surpreendente se não
houvesse um elemento islâmico nesta história”, disse à ISTOÉ Anatol
Lieven, pesquisador da New America Foundation, em Washington. Lieven,
que é autor de vários livros sobre a antiga União Soviética, lembra que o
Taleban está na Chechênia desde os anos 90, embora sua influência na
região hoje não seja muito ampla. “Há, contudo, muitos relatos de
chechenos que viajaram ao Afeganistão e participaram de ataques a alvos
americanos”, afirma. A Chechênia é atualmente uma das repúblicas da
Federação da Rússia e fez parte da União Soviética até seu
desmantelamento. Desde então, luta por sua independência por meio de
conflitos armados. Ao menos três grupos chechenos estão incluídos na
lista terrorista dos EUA.
Logo que começaram as investigações sobre o
atentado, a polícia pediu aos milhares de pessoas que estiveram no
local da maratona que contribuíssem com pistas, fotos e vídeos
registrados em seus smartphones. Na era das redes sociais, em poucas
horas, mais de duas mil pistas já tinham sido entregues às autoridades.
Quando o FBI divulgou a imagem dos suspeitos, também colocou no ar o
site bostonmarathontips.com, com um formulário simples por onde deveriam
ser enviadas as informações sobre os suspeitos e uma linha de telefone
foi disponibilizada. Durante a noite, a polícia foi chamada pelo roubo a
uma loja de conveniência próxima ao Massachusetts Institute of
Technology. Surpreendentemente, os ladrões eram os irmãos Tsarnaev, que
fugiram em direção à universidade, trocando tiros com seguranças. Na
fuga, Tamerlan e Dzhokhar roubaram um SUV Mercedes-Benz que acabou sendo
localizado pela polícia. Começou, então, uma perseguição
cinematográfica. No subúrbio de Boston, em Watertown, os irmãos jogaram
explosivos e atiraram contra os policiais, matando um deles e ferindo
outros. No tiroteio, Tamerlan morreu. Junto a seu corpo, foram
encontrados mais artefatos explosivos. Dzhokhar fugiu e, até o
fechamento desta edição, ainda não havia sido capturado. “Acho que é
justo dizer que, durante toda esta semana, estivemos num confronto
direto com o mal”, disse o secretário de Estado, John Kerry.
O medo difuso do mal a que se refere Kerry
assustou os Estados Unidos desde o início da semana. No fim da tarde da
segunda-feira 15, a região da Times Square, a mais turística de Nova
York, já se mostrava mais frenética do que de costume. A sensação era de
que todos queriam voltar para casa o quanto antes. Qualquer transeunte
usando capuz e mochila atraía os olhares. Tudo piorou nos dias
seguintes, quando se soube que, em Washington, duas cartas envenenadas
foram enviadas à Casa Branca e ao senador Roger Wicker. O suspeito de
ter encaminhado os envelopes, Paul Kevin Curtis, 45 anos, foi preso em
sua casa no Mississippi na quarta-feira 18, e qualquer relação dele com o
atentado foi descartada. Curtis, que tem histórico de problemas
mentais, acreditava ter descoberto uma conspiração sobre a venda de
partes humanas no mercado negro.
BOSTON
Sitiada Policiais isolam áreana caçada aos suspeitos.
Moradores foram orientados a não sair de casa
Em Boston, onde logo depois do atentado 12
quarteirões foram isolados pela perícia, turistas e moradores tiveram
que deixar seus hotéis e casas – alguns nem mesmo puderam recolher seus
documentos. Com o avanço das investigações, a volta para casa foi
autorizada aos poucos, mediante a revista de bolsas e mochilas. Ao mesmo
tempo, as feridas da cidade atingida foram sendo cicatrizadas por
demonstrações públicas de solidariedade. Crianças entregaram flores
brancas para maratonistas pedindo que voltassem à corrida do ano que vem
e uma loja do Starbucks distribuiu cafés e donuts gratuitamente. Um
fundo criado para ajudar as vítimas da tragédia levantou mais de US$ 7
milhões em apenas 24 horas. Na quinta-feira 18, durante ato ecumênico em
memória das vítimas na Catedral de Santa Cruz de Boston, o presidente
dos EUA, Barack Obama, afirmou: “Nós vamos terminar a corrida. Não
podemos deixar algo como isso nos parar.” Na sexta-feira 19, enquanto
Dzhokhar ainda era perseguido, a polícia de Boston pedia para ninguém
sair de casa e paralisou todo o sistema de transporte público. Era como
se Boston estivesse sitiada.
Num país rescaldado pelos atentados de 11
de Setembro, Boston mostrou que estava preparada para atender as vítimas
e que pode ser um exemplo para o mundo. Quatro dias após o ocorrido, a
expectativa realista era de que todos os feridos resgatados com vida
sobreviveriam, embora alguns ainda permanecessem internados em estado
grave. Quando as bombas explodiram, os seguranças do evento esportivo
evacuaram o local com rapidez, desviando o caminho dos corredores para a
Commonwealth Avenue e abrindo espaço para o atendimento às vítimas.
Numa tenda médica montada para eventuais emergências da maratona
(basicamente, atletas com mal-estar e desidratação), pessoas feridas
foram classificadas conforme seu estado de saúde e encaminhadas a oito
hospitais da região em questão de minutos. Segundo o relato do cirurgião
Atul Gawande, do Brigham and Women’s Hospital de Boston, à revista “New
Yorker”, a mobilização começou logo que apareceram as primeiras
notícias na tevê e foram espalhadas entre os médicos e enfermeiros por
mensagens de texto, Twitter e aplicativos para smartphones. As equipes
de atendimento dobraram, enquanto leitos eram esvaziados. Praticamente
todos os hospitais têm profissionais com experiência em campos de
batalha, no Iraque ou no Afeganistão, e em desastres traumáticos, como o
terremoto no Haiti.
Juliette Kayyem, ex-assessora de Obama no
Departamento de Segurança Nacional e colunista do jornal “Boston Globe”,
disse que a mesma estratégia de pedir ajuda ao público foi usada para
identificar os autores dos atentados ao metrô de Londres em 2005. “A
tecnologia faz parte inevitável das perseguições”, escreveu no Twitter.
“A internet oferece uma quantidade absurda de informações, mas também
facilita o trabalho de rastrear essas atividades e encontrar suspeitos”,
disse à ISTOÉ Brooke Rogers, professora de risco e terror do
departamento de estudos de guerra do King’s College, de Londres. As duas
especialistas concordam que o terrorismo internacional está hoje menos
organizado do que costumava ser. “As redes como a Al-Qaeda tiveram que
mudar sua estrutura drasticamente não só pela morte de seus principais
líderes, mas para evitar novas prisões”, afirmou Rogers. “O que também
mudou no mundo pós-11 de Setembro é que as pessoas estão conscientes de
que o terrorismo é uma ameaça real e há muito pouco a fazer para
evitá-lo.”
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