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domingo, 20 de junho de 2010

De 'órfãos' da pobreza a filhos adotivos da miséria humana

PORTO PRÍNCIPE. Pelas ruas de Porto Príncipe, a cena é comum: meninas com tranças nos cabelos, meninos com material de baixo do braço, uniformes impecáveis, sapatos limpos, sorriso, algumas delas dentro dos tap-tap — o transporte coletivo utilizado na cidade. São os estudantes, um retrato que, para muitos, é a cara do Haiti, mesmo depois do terremoto de 12 de junho que matou cerca de 250 mil pessoas, segundo números das Nações Unidas, e deixou aproximadamente um milhão de desabrigados.
Mas há outra face do país, que não aparece nas ruas, e é motivo de tabu entre os haitianos. Atende pelo nome de rest avec vous, ou, como dizem por aqui, simplesmente rest’avec — “fique com você”.
São crianças entregues pelos pais biológicos a parentes ou vizinhos porque não conseguiam criá-las. Órfãos com pais e mães vivos, na maioria dos casos acabam se tornando escravos da nova família, e até mesmo objeto sexual.
No Haiti, estima-se que 80% da população estejam abaixo da linha de pobreza.
Apesar disso, é incomum ver homens sem camisa pelas ruas ou crianças sem roupas.
Todos fazem questão de se vestir bem na medida do possível, inclusive com sapatos engraxados ou, quando não é possível, os haitianos costumam lavá-los ao deixarem as ruas de terra por onde andam. Mas para os rest’avec, não há nada disso.
O comum, para esses meninos e meninas, é vê-los sem roupa pelos acampamentos ou, no máximo, com uma camiseta, sem a parte de baixo.
Mesmo os muitos pequenos têm de trabalhar Como são considerados a “sobra” da sociedade, os rest’avec ficam com o que sobra — se isso acontecer. Desta maneira, numa sociedade machista, na qual o espancamento das mulheres é quase uma questão cultural, primeiro alimentam-se os homens, depois os filhos, as mulheres e, se restar alguma comida, os rest’avec.
São eles também que fazem todo o trabalho da casa — levantam mais cedo para buscar água em alguma bica, limpam, cuidam dos outros filhos, ajudam a carregar os alimentos doados. E não importa a idade.
Muitas dessas crianças são dadas a outras famílias com 3, 4 anos — e já têm de trabalhar.
No Haiti, a mortalidade infantil é de 58,7 por mil nascidos vivos — no Brasil, é de 21,86. A taxa de fertilidade é de 3,72 por mulher, enquanto no Brasil é de 2,19. Os homens abandonam as mulheres facilmente e, para elas, muitas vezes não resta saída a não ser doar o filho. A cultura da violência, aliás, chega até mesmo às escolas. Irmã Maria Aparecida Scatolin, uma paranaense há 13 anos no Haiti, conta que é comum professores baterem nos alunos.
Os rest’avec apanham de chicote.
após completarem 8 anos Irmã Aparecida mantém desde 1999, com outras freiras, uma escola destinada só aos rest’avec. Atualmente, atende a 60 crianças. Para convencer os responsáveis a “emprestálas” por um período, as freiras dão alimentos aos pais adotivos. Essas crianças e adolescentes, mesmo que quisessem, não seriam admitidas em outras escolas — depois dos 8 anos, elas não são mais aceitas na rede.
— Temos de trabalhar com as famílias e não apenas com as crianças. E, para isso, o incentivo tem de ser também com alimentos, e não apenas com palavras — descreve a religiosa.
A embaixatriz Roseana Kipman, que está no Haiti desde 2006, afirma que numa sociedade com poucas oportunidades para seus membros, são as famílias que escolhem quem estuda ou não. E os rest’avec, na maioria das vezes, são preteridos.
— As famílias escolhem quem julgam que tem mais possibilidade de ajudá-las mais tarde — disse ela.
A taxa de analfabetismo no Haiti é uma das maiores do mundo. Da população acima dos 15 anos, somente 52,9% são alfabetizados — no Brasil, esse percentual atinge 88,6%. Irmã Aparecida, acostumada a lidar com a tragédia diária do país onde vive, só lastima que depois do terremoto o número de rest’avec vá aumentar — e muito.
— Infelizmente, é o que vai acontecer. Afinal, muitos pais morreram...
O tenente-coronel Adriano de Souza Azevedo, responsável pela ação social desenvolvida pelo Exército brasileiro no Haiti, diz que a falta de carinho com as crianças é uma das coisas que mais chocam os militares.
— Quando chegamos a uma comunidade, sempre aparecem crianças para pegar na nossa mão e perguntar se não queremos ser o pai delas. É de cortar o coração.


Porto Príncipe, a cidade das tendas
Na capital destruída pelo sismo, é difícil a rotina de voluntários e moradores

PORTO PRÍNCIPE. Passados cinco meses do terremoto que matou cerca de 250 mil pessoas, o Haiti equilibra-se de maneira frágil para tentar se reerguer. Na capital, as cenas parecem inalteradas desde aquele dia 12 de janeiro: entulho em todos os cantos, prédios caídos, lixo pelas ruas. O que mudou foram as moradias — Porto Príncipe é hoje um gigantesco camping, com barracas espalhadas em praças, terrenos e, inclusive, locais antes frequentados pelos ricos, como o clube de golfe.
Falta de documentos é obstáculo para as eleições Após o primeiro momento, em que a necessidade mais urgente era distribuir alimentos e água, além das tendas, agora as agências humanitárias e as Forças Armadas tentam devolver um mínimo de normalidade à rotina de haitianos que, mesmo antes do terremoto, já viviam no caos. E entre as necessidades imediatas de hoje está a realização de eleições em novembro — o que não vai ser fácil.
Pela cidade, é comum ver muros pichados com “Fora Préval”, numa alusão ao presidente haitiano, René Préval, e até “Bom retorno Duvalier”, em referência a Jean-Claude Duvalier, o ditador que controlou com mão de ferro o Haiti de 1971 a 1985. Um dos problemas enfrentados pelo governo e pela Organização dos Estados Americanos (OEA) é o fato de a maioria da população ter perdido documentos e títulos de eleitor no terremoto. Para o general Paul Cruz, comandante militar da Minustah, a força de paz da ONU no Haiti, as eleições irão acontecer. Ele minimiza os protestos que, vez ou outra, têm ocorrido na capital.
— Está tudo na mais absoluta normalidade. Um país que vai passar por um processo eleitoral terá manifestações de vários segmentos. É bom que isso ocorra — diz o general, que comanda 8.606 soldados no país.
Para Cruz, aos poucos o Haiti está voltando à rotina. A instalação de tendas — apesar de não ser a solução mais apropriada — é a única maneira encontrada de dar abrigo à população.
Agências humanitárias e ONGs internacionais têm se dedicado a administrar esses acampamentos.
O ator Sean Penn, por exemplo, fundou a ONG J/P HRO (Haitian Relief Organization) e, desde janeiro, mora num centro para desabrigados com mais 50 mil pessoas. Na sexta-feira, sua entidade formou os primeiros 400 voluntários locais em um curso de primeiros socorros e atuação em catástrofes.
— O campo é como uma cidade.
Não queremos que essas pessoas passem o resto da vida aqui — adverte o alemão Daniel Mahrla, um dos administradores da ONG.
Diante da tragédia, há ainda quem lucre com o aluguel das barracas recebidas por agências humanitárias. Joseph Stanley, de 17 anos, mora com a mãe e cinco irmãos em uma tenda pela qual paga mensalmente US$ 30. Falando português, contou que conheceu a atriz Regina Casé, que esteve no Haiti, em 2007. Stanley visitou o Rio durante uma semana daquele ano e pensa em deixar o país.
— Aqui não tem esperança.
Eu preciso estudar e trabalhar para ajudar minha família — diz o jovem. (C.G.)

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