SELVA

SELVA

PÁTRIA

PÁTRIA

domingo, 27 de junho de 2010

Procurador quer que Comissão de Anistia corte valor de indenizações

Revisão. Por achar que houve exagero na concessão dos benefícios às vítimas da ditadura militar, Marinus Marsico pede revisão de mais de 9.300 processos, que já custaram ao governo, segundo o TCU, cerca de R$ 4 bilhões
Marta Salomon, BRASÍLIA

Pelo menos R$ 4 bilhões de indenizações a perseguidos políticos já pagas ou aprovadas pela Comissão da Anistia poderão ter os valores revistos pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Proposta em análise no tribunal prevê a possibilidade de reduzir os benefícios concedidos aos anistiados.
"A revisão poderá gerar uma economia de milhões de reais aos cofres públicos", defende Marinus Marsico, procurador do Ministério Público junto ao TCU, autor da representação que está para ser votada.
"Não contesto a condição de anistiado político, mas os valores das indenizações concedidas a título de reparação econômica", disse o procurador ao Estado.
São alvo da representação, por ora, 9.371 benefícios já concedidos com base em uma lei de 2002. Ela estabeleceu o pagamento de indenização do Estado a vítimas de perseguição política até 1988, ano em que a Constituição foi aprovada.
A reparação econômica é maior quando a perseguição tiver causado perda do emprego, prevê a lei. Nesse caso, além do pagamento de um valor mensal cuja média atual é de aproximadamente R$ 3.000 , o anistiado tem direito ainda ao pagamento de valores retroativos a 1988.
A regra rendeu indenizações milionárias e pagamentos mensais próximos do teto salarial do funcionalismo público, atualmente em R$ 26,7 mil, o limite para o benefício.
Aposentadoria. A proposta do TCU só deixa de lado as indenizações pagas em parcela única, de R$ 100 mil, no máximo. Elas representam menos de 5% do total de benefícios de prestação mensal já pagos e dos pagamentos retroativos já aprovados. As demais pouco mais de 95% do valor total aprovado deveriam ser tratadas como aposentadoria ou pensão e, como tal, ser submetidas à análise do tribunal, argumenta Marinus Marsico. Ele quer que a revisão comece pelos benefícios de valores mais altos.
O texto da representação do procurador do Tribunal de Contas da União cita três casos de indenizações que deveriam ser reduzidas. O primeiro deles é o benefício pago a Maria Pavan Lamarca, viúva de Carlos Lamarca, que desertou do Exército, virou guerrilheiro e foi morto em 1971.
General. Lamarca foi promovido a coronel, quando a promoção correta seria a capitão, argumenta a representação. Os valores pagos à viúva equivalem ao vencimento de general, completa o texto. "A remuneração mensal de R$ 11.444, bem como o pagamento retroativo de R$ 902 ,7 mil deveriam ser reduzidos", diz.
O documento também menciona os casos dos jornalistas Ziraldo Alves Pinto e Sérgio Jaguaribe, o Jaguar, fundadores do jornal Pasquim. Em 2008, ambos tiveram aprovado o pagamento retroativo de pouco mais de R$ 1 milhão cada um, além de indenização mensal de R$ 4.375.
"Está devidamente comprovada a perseguição política por eles sofrida, mas não há elementos suficientes que indiquem estar correta a indenização", argumenta o procurador. O pagamento de indenizações a anistiados políticos é tema de investigação no TCU desde 2006.
Revisão. A auditoria apontou ainda erros no cálculos de alguns benefícios, como o da ex-ativista Maria Augusta Carneiro Ribeiro. Os valores do pagamento retroativo de R$ 1,5 milhão e de mais R$ 8.200 mensais autorizado pela Comissão da Anistia foram revistos depois disso. É um dos poucos casos de revisão.
O tribunal chegou a suspender, por meio de cautelar, parte dos pagamentos retroativos concedidos, mas uma nova votação liberou os benefícios em dezembro de 2008.
A mudança foi conduzida pelo ministro Benjamin Zymler, o mesmo que pediu vista e conseguiu adiar mais uma vez a decisão do TCU sobre a revisão dos benefícios, no ano passado. Procurado pelo Estado, ele informou, por meio da assessoria, que a proposta será levada a votação nos próximos dias.

Preso na ditadura, Lula recebe R$ 4,2 mil mensais
Marta Salomon

Afastado da presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo em 1979, quando liderou a mais importante greve contra o regime militar, no ABC paulista, o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva ficou preso por 31 dias. Enquadrado na Lei de Segurança Nacional, foi levado a julgamento e condenado em 1981 e absolvido pouco mais de um ano depois. Em 1985, obteve do Ministério do Trabalho uma aposentadoria especial, que em 1996 foi convertida em indenização pela Comissão de Anistia. O benefício rende hoje ao presidente R$ 4,2 mil por mês.

Brasil preferiu privilegiar a reparação econômica
É dever do Estado, de acordo com as convenções internacionais, reparar as vítimas de violações de direitos humanos em massa. Foi o que ocorreu com as vítimas do apartheid na África do Sul, com os perseguidos políticos nos regimes comunistas do Leste Europeu e nas ditaduras militares que aterrorizaram a América Latina entre os anos 60 e 80, para citar alguns casos.
O conceito internacional de reparação é amplo. Implica promover a justiça, com o julgamento e a punição dos culpados pelos crimes; reformar as instituições para garantir o exercício da democracia e o respeito à igualdade de direitos cidadãos; estabelecer a verdade sobre os fatos ocorridos, e reparar as vítimas.
Essa reparação tem um lado simbólico e outro econômico. O simbólico pode ser a construção de um museu ou de um monumento para lembrar o tempo de opressão.
No Brasil, o esforço reparatório privilegiou sobretudo o aspecto econômico, com o pagamento de indenizações às vítimas. A lei que trata desse assunto tem aspectos peculiares e polêmicos, aproximando-se mais das leis que tratam de reparações trabalhistas do que das convenções sobre violações de direitos humanos.
Na Argentina, as pessoas que foram presas e torturadas por causa de suas ideias políticas receberam US$ 75 por dia passado na prisão. Para dez dias, US$ 750. Para 100 dias, US$ 7.500. A quantia valia para todo perseguido, não importando se fosse pedreiro ou magistrado. O pagamento tinha sobretudo valor simbólico, sinalizando que o Estado reconhecia o equívoco e se comprometia a não repeti-lo.
No Brasil, o pagamento único serviu apenas para a reparação das famílias que tiveram parentes mortos pela ditadura. Cada uma delas recebeu, em parcela única, a quantia de R$ 100 mil, estabelecida a partir de padrões internacionais para esses casos.
Para os opositores que sobreviveram, porém, a indenização variou de acordo com profissões e atividades econômicas. Mais do que simbolismo, promoveu-se a indenização completa, no rito da legislação trabalhista. Tome-se como exemplo o caso de um jornalista que, em razão da perseguição política, ficou impedido de exercer a profissão. Na comissão de reparação que tratou de seu caso, fizeram o seguinte exercício: calcularam todas as promoções que ele, supostamente, teria tido se houvesse continuado no jornal e definiram qual cargo estaria ocupando hoje. Depois foram ao mercado, ver quanto ganha o profissional naquele cargo e, a partir daí, estabeleceram o valor da pensão vitalícia a ser paga pelo Estado. Graças a esse exercício, ele recebe em apenas um ano o valor total pago às famílias dos mortos.
Essas e outras diferenças entre os esforços reparatórios do Brasil e de outros lugares foram bem analisadas pela pesquisadora Glenda Mezaroba na tese de doutorado que apresentou no Departamento de Ciência Política da USP, com o título O Preço do Esquecimento: As Reparações Pagas às Vítimas do Regime Militar (Uma Comparação Entre Brasil, Argentina e Chile). O trabalho pode ser encontrado na biblioteca da USP.

'Tenho dúvida quanto à legalidade de uma revisão'
Para presidente da comissão, valores não serão reduzidos porque foram concedidos de acordo com a lei
Marta Salomon, BRASÍLIA

O presidente da Comissão da Anistia, Paulo Abrão, não acredita que os benefícios já aprovados possam ser revistos, embora tenha sido responsável pelo ajuste na regra de cálculo dos pagamentos em 2007.
Desde então, a média dos pagamentos mensais caiu para cerca de R$ 3 mil mensais.
"Tenho dúvida quanto à legalidade de uma revisão, acredito que em nenhum dos casos haverá redução do valor porque eles foram concedidos de acordo com a lei", disse, referindo-se à lei sancionada no último dia de mandato de Fernando Henrique Cardoso, com regras para o cálculo da indenização.
Além dos limites legais, Abrão avalia que a revisão dos benefícios enfrentaria problemas de ordem burocrática. "Levamos nove anos para analisar 60 mil processos. Se o TCU tiver capacidade de fazer isso também, eu diria que, quanto mais controle, melhor."
A proposta em análise no tribunal se refere a mais de 9 mil benefícios aprovados e não trata das indenizações negadas pela Comissão da Anistia.
O presidente da comissão comentou o balanço mais recente do colegiado, que registra a concessão de indenizações mensais R$ 6.184, em média, neste ano, um valor superior ao do início da década.
Incorporação. Abrão atribuiu a média alta à incorporação de aposentadorias especiais a anistiados, aprovadas entre 1988 e 2001 por outros órgãos, aos pagamentos feitos pela comissão.
A Comissão da Anistia, prevê Abrão, deverá levar mais três anos para concluir a análise dos quase 70 mil pedidos já apresentados. Ainda falta analisar cerca de 12 mil pedidos de indenização, além de 4.500 recursos. A lei não define prazo para que vítimas de perseguição política pleiteiem reparação do Estado.

Para Ziraldo, 'se é um direito, então está OK'
Marta Salomon, BRASÍLIA

"Não pedi essa indenização, mas se é um direito meu então está ok", resume o cartunista Ziraldo Alves Pinto, cujo benefício, concedido pela Comissão da Anistia, está na mira do Tribunal de Contas da União (TCU). Ziraldo, 77 anos, conta que partiu do Sindicato dos Jornalistas a iniciativa de pedir indenização por perseguição política em nome de vários de seus colegas, logo após a promulgação da Constituição de 1988.
Na ocasião, a ideia despertou polêmica. O escritor e humorista Millôr Fernandes não a aprovou, retirou seu nome da ação e criticou os pagamentos, com uma frase que se tornou famosa: "Quer dizer que aquilo não era ideologia, era investimento?"
O benefício foi aprovado 19 anos depois. "O relator da Comissão da Anistia só faltou me chamar de herói da pátria, quase um Tiradentes. Eu virei um mártir, fiquei até encabulado", conta Ziraldo, sobre a cerimônia de 2008 na qual foi anunciado o pagamento de R$ 4.375 mensais e um saldo retroativo superior a R$ 1 milhão. Ele questionou o pagamento dos atrasados em parcelas e diz que, até hoje, só recebeu a parte da indenização paga mensalmente.
"O pessoal de jornal que nunca se comprometeu com a luta contra a ditadura fez uma carga terrível contra a gente", conta Ziraldo. "Fecharam todas as publicações que eu fiz, fiquei preso cento e poucos dias, me tiraram dois natais e um carnaval, mas parece que só eu fui indenizado", reclama o cartunista. "A gente achava que estava salvando o País e assumimos todos os riscos".

Nenhum comentário:

Postar um comentário