SELVA

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PÁTRIA

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sexta-feira, 15 de março de 2013

A era franciscana

Será o jesuíta Francisco capaz de reunificar as forças na Cúria Romana, enfrentar os escândalos financeiros e sexuais do Vaticano e provocar a tão esperada reforma, conduzindo os católicos para uma nova era?

por Debora Crivellaro, enviada especial ao Vaticano
 Dentre suas paredes milenares, a Igreja abalada por uma crise sem precedentes...
esperava a escolha de seu líder. Na praça, o rebanho orava com fé e esperança.
Estava prestes a surgir um papa novo para um novo mundo.
E ele veio, humilde, e pediu a bênção dos fiéis.
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POMPA E CIRCUNSPECÇÃO
Sob as faustosas abóbadas da Basílica de São Pedro, os 115 cardeais pedem a intervenção
do Espírito Santo na missa que antecedeu a abertura do conclave. Era preciso superar
divergências e encontrar entre eles alguém capaz de mudar a Igreja sem promover uma ruptura
com os valores conservadores e sem desapontar a expectativa de 1,2 bilhão de católicos
"Papa, papa, papa, c’é il papa, abbiamo il papa, viva il papa!” Sob um frio de nove graus, a multidão em delírio aquecia a Praça São Pedro saudando a boa-nova que acabava de ser revelada por um antigo sinal. Diante das imensas colunas de mármore do Vaticano, o pouco espaço que restava só não era ocupado porque o mundo inteiro não esperava que, da chaminé do telhado da Capela Sistina, a fumaça branca surgisse ainda naquela quarta-feira 13 de março – os mais otimistas acreditavam que o símbolo de que os 115 cardeais haviam conseguido definir quem seria o novo líder de 1,2 bilhão de católicos só seria visto na quinta-feira 14. Mas aquela era apenas a primeira, e mais insignificante, das surpresas que estavam por vir. Às 20h05 no horário local (16h05 em Brasília), muito emocionado e com voz trêmula, o protodiácono cardeal Jean Louis Tauran anunciou o nome do novo pontífice: era Jorge Mario Bergoglio, 76 anos. Desenrola-se, então, um rosário de ineditismos. Eis o primeiro papa latino-americano da história, o primeiro não europeu em quase 1.300. Eis o primeiro jesuíta a sentar-se no trono de Pedro. Eis o primeiro a adotar, para comandar a Igreja Católica, o nome Francisco. Eis o início de uma era, a era franciscana.
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VIGÍLIA
Freiras rezam na Praça São Pedro após a chaminé da Capela Sistina expelir fumaça escura,
na primeira votação da quarta-feira 13. Nem mesmo a expectativa de um processo lento de
escolha do novo pontífice ou o frio e a chuva de Roma demoviam os religiosos
de participar de um momento histórico para a Igreja Católica
A comoção toma a praça. “Francesco!, “Francesco!, Francesco!”, bradavam os presentes, enlevados com a lembrança do amado patrono italiano, um dos santos mais populares do mundo. Às 20h10 o papa Francisco surge por entre a imponente cortina vermelha e branca do balcão do Palácio Apostólico. Há muitos aplausos, seguidos de longo silêncio. Por cerca de dois minutos parece ser possível ouvir a respiração profunda do arcebispo de Buenos Aires, como se ele estivesse reconhecendo seu novo papel na imensidão de fiéis. Enfim, o pontífice solta a voz e a chama da mudança, tão necessária para a alquebrada Igreja Católica, acende com suas palavras, espantando a garoa fina que cai sobre o Vaticano. “Fratelli e sorelli, buona sera.” Um pastor que diz boa noite a seu rebanho é um papa “do fim do mundo”, como ele próprio se definiu – com o arremate de um sorriso afetuoso, que definitivamente conquistou os cristãos presentes à praça.“É um homem santo”, ouvia-se. Se ainda havia tensão, pela espera da fumaça branca; espanto, pela rapidez da escolha, em 26 horas e cinco escrutínios, e pelo anúncio do nome improvável; e, para muitos, decepção, por não ser um italiano depois de 35 anos, tudo havia se dissipado naquele momento.
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ANGÚSTIA
Padres assistem à missa pela eleição do novo papa na Basílica
de São Pedro na terça-feira 12. As incertezas que cercaram a surpreendente renúncia
de Bento XVI criaram uma atmosfera pesada sobre a Santa Sé, que marca os espíritos
e se materializa nas expressões tensas das faces dos servidores do Vaticano
A singeleza e o simbolismo da apresentação papal continuaram quando Bergoglio pediu para que se rezasse pelo “bispo emérito” Bento XVI. E aí se seguiu uma fórmula trina de oração, familiar até aos não crentes – Pai-Nosso, Ave-Maria e Glória ao Pai –, que uniu definitivamente o coro da imensa Praça São Pedro. Lá no alto estava a nova face da Igreja, revelada nos gestos, nas palavras e até mesmo no traje do pontífice. O manto vermelho, símbolo do poder do antecessor, foi abandonado, assim como o crucifixo de ouro – o despojado religioso argentino adotou outro, simples e sóbrio. Francisco se autodenominou “bispo de Roma”, não papa. E chamou os cardeais de irmãos, não de senhores. “É a ascensão de um cristianismo simples”, afirmou o vaticanista Alberto Melloni, do influente jornal italiano “Corriere della Sera”. Simples, jamais simplório, algo incompatível para um jesuíta, cuja Ordem é conhecida pelo rigor intelectual e o apreço pela cultura. Ao se despedir com um “buona notte e buon riposo”, Francisco reconciliou a plateia com a figura do papa paternal e acolhedor, tão hesitante no antecessor Bento XVI. Foi o sinal para que tremulassem, euforicamente, as bandeiras dos países latino-americanos, principalmente dos felizardos argentinos que presenciaram o momento histórico para seu país.
A RESSURREIÇÃO DE BERGOGLIO
A escolha do latino-americano Bergoglio é recheada de significados. O primeiro é que, com ela, cai o milenar eurocentrismo católico e a igreja muda de eixo. Assim, chega ao poder um representante da região onde estão 42% dos fiéis no mundo e onde a denominação ainda pulsa com o vigor que não se observa mais no Velho Mundo. Segundo, ficou evidente que os cardeais presentes ao conclave ansiavam por mudanças e preferiram um representante “anticurial” e não italiano para limpar a Santa Sé. Terceiro, como foi muito lembrado depois de sua nomeação, a eleição marcou a ressurreição do argentino, que ficou em segundo lugar quando Joseph Ratzinger se tornou Bento XVI na votação de 2005 – uma eleição em que a comoção pelo luto por João Paulo II ainda estava presente e o continuísmo, representado pela escolha do mais fiel escudeiro do pontífice polonês, parecia ser a decisão mais acertada. Na ocasião, Bergoglio, com 40 votos no terceiro e penúltimo escrutínio, teria declinado em favor do alemão. Agora, em 2013, não havia mais esse impedimento e ele pôde sair vencedor. A Igreja vivia então outro fato inédito em sua história recente, o vice vencer a eleição seguinte.
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BOAS-NOVAS
Lágrimas escorrem no rosto de peregrinas logo após a fumaça branca
indicar que, ao final do quinto escrutínio, a escolha foi feita.
A surpresa ainda estava por vir, mas já havia uma certeza para celebrar
Apesar do protagonismo no conclave anterior, até aquela quarta-feira Bergoglio não era lembrado em nenhuma das incontáveis listas de potenciais candidatos. Apenas um jornal italiano o citou como papabile – e no dia em que foi escolhido. O argentino de origem piemontesa, como faz questão de lembrar a imprensa da Itália, só era especulado como provável “fazedor de rei”, como são chamados os cardeais que, por sua experiência e autoridade, influenciam os outros durante um conclave difícil. Como se atestou, a barca de Pedro está atualmente em águas tão tormentosas que os príncipes do Vaticano preferiram entregar sua direção para uma figura que lhes dê total segurança. E o fazedor de rei virou rei.
Apenas na última hora é que o nome do arcebispo de Buenos Aires começou a circular, surgindo como uma alternativa aos inicialmente favoritos, os arcebispos de Milão, Angelo Scola, e de São Paulo, Odilo Scherer. O silêncio em torno de seu nome pode ter sido decisivo. Sua candidatura não ficou exposta como na eleição anterior, quando surgiram acusações de sua relação com a ditadura militar argentina (leia na pág. 66). Assim, não teve de provar novamente um amargo, e sábio, ditado que costuma ecoar pelas amplas naves da Basílica de São Pedro: “No conclave, quem entra papa sai cardeal.” Foi o caso de Scola, que, como bem disse o vaticanista Giacomo Galeazzi, do jornal “La Stampa”, se mostrou um “gigante com pés de barro”. Com estatura excepcional como bispo e intelectual, mas incapaz até mesmo de unir os 28 cardeais italianos. Durante todo o período de preparação e até o fim das votações eles se mantiveram divididos em facções, corroídos de ciúme pelo sucesso do primaz de Milão. Contra ele teriam atuado principalmente dois dos mais poderosos nomes da Igreja, o decano dos cardeais Angelo Sodano e o carmelengo Tarcisio Bertone. Além disso, havia a ligação de Scola, candidato de Bento XVI, com o movimento leigo Comunhão e Libertação, com tentáculos políticos e financeiros indigestos demais para boa parte dos cardeais.
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FOCO NA REFORMA
Na tela de tablets e smartphones, a nova imagem da Igreja: da varanda principal da
basílica, Jorge Mario Bergoglio surge e é imediatamente digitalizado. Ali fora, o mundo já mudou
OS VENTOS DA PATAGÔNIA
Outra vítima do favoritismo precoce foi o brasileiro Odilo Scherer. Nas vésperas do conclave, passou a ter seu nome associado ao de Bertone, o secretário de Estado de Bento XVI que personificou todos os demônios do último pontificado. Preocupados com a possibilidade de o candidato muito identificado com a Cúria – Scherer chegou a ser chamado de cópia de Bento XVI – vencer, parte dos europeus, além de africanos, asiáticos, americanos e latino-americanos, teria migrado para o argentino Bergoglio. A candidatura do religioso brasileiro já havia perdido força nos últimos dias, em detrimento de outras apostas, como o canadense Marc Oullet e o húngaro Peter Erdo.“O que tende a acontecer em um conclave é que a eleição de alguém começa a parecer inevitável e outros começam a se juntar ao movimento, a fim de oferecer um show unificado de apoio”, diz o americano John Allen Jr., um dos mais incensados vaticanistas da atualidade.
Pouco afeito à discrição, o cardeal americano Timothy Dolan, arcebispo de Nova York, tido como a nova força da Igreja Católica mundial depois deste conclave, afirmou logo após o anúncio do novo papa: “Quando Bergoglio chegou ao 77º voto, começamos a aplaudir. Estamos muito felizes com o resultado, é uma emoção muito grande”, disse, numa clara demonstração de que, conforme previsões, os 11 americanos, liderados por Dolan, foram decisivos nesta eleição. “As cotações prévias foram todas para o espaço e os ventos da renovação dessa vez sopraram da Patagônia”, disse um bem-humorado dom Odilo Scherer, no dia seguinte à eleição. “Há de se aprender que a Igreja não é feita só de cálculos humanos.”
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PRIMEIRA PALAVRA
Francisco devia abençoar. Mas em sua aparição, ainda perplexo por ter sido o eleito.
fez longo silêncio, interrompido por um singelo “boa noite”. Então, colocou-se a
serviço do seu rebanho e pediu que orassem por ele. Ali o mundo começava
a conhecer sua história e a se comover com a sua simplicidade
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Os ventos da renovação, utilizando a alegoria do arcebispo de São Paulo, precisarão soprar com muita força na Cúria Romana para espantar os escândalos que vieram à tona com o caso Vatileaks, como ficou conhecido o vazamento de documentos oficiais do Vaticano que envolveu diretamente o mordomo do papa e resultou num dossiê, feito por cardeais, de dois volumes e 300 páginas, a pedido do próprio Bento XVI. O aterrador conteúdo revelou, por enquanto, uma rede de corrupção nos muros da Santa Sé e um grupo de religiosos homossexuais que praticava lobby, era chantageado e promovia encontros sexuais até dentro do Vaticano. Para remover esse lamaçal de pecados capitais, será necessária uma profunda reforma na Cúria, que dizem estar abandonada – leia-se segundo e terceiro escalões – desde o pontificado de João Paulo II, e dominada por uma guerra fratricida. Esse será um dos primeiros desafios do novo papa. Em uma entrevista, em fevereiro de 2012, para Andrea Tornieli, do “La Stampa”, Bergoglio, declaradamente avesso a viagens a Roma, afirmou que “o mal da Igreja se chamava vaidade e carreirismo”.
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OLHARES ATENTOS
Cardeais assistem ao primeiro discurso do papa:
uma rara cena de união na cúpula do Vaticano
Com a saída de Bento XVI e a assunção de Francisco, o Vaticano troca um intelectual por um homem das ruas, um pastor. A teoria e a doutrina cedem espaço à prática evangelizadora. A dúvida é como esse pontífice que prefere o contato com os pobres e os doentes aos debates e conchavos intramuros conseguirá enfrentar os poderes que enfraqueceram seu antecessor. Bergoglio tem pouco contato com a burocracia da Cúria (leia reportagem à pág. 80) e terá de aprender a se mover nesse terreno minado. Segundo o vaticanista Massimo Franco, do “Corriere della Sera”, uma das possibilidades para que inicie uma reforma no comando da Igreja seria a criação de uma espécie de “conselho de homens sábios” para proteger o apartamento pontifício dos subterrâneos da corrupção e da maledicência. Além disso, Franco diz haver uma movimentação para tornar o derrotado Scola secretário de Estado, dando a ele a responsabilidade de limpar a Cúria. Isso, bem ao estilo franciscano, pode significar simplificá-la, diminuindo sua burocracia.
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Caberá também a este pontificado encarar a teia de corrupção engendrada no Banco do Vaticano, conhecido como a verdadeira coroa de espinhos de Bento XVI. E, sobretudo, encarar abertamente a chaga dos abusos sexuais envolvendo religiosos católicos, uma sucessão de escândalos pavorosos e nada cristãos que macularam em definitivo a imagem da Igreja. À frente desses desafios, um homem que foge dos padrões de papa-gerente preconizado pelos vaticanistas ao longo das últimas semanas. Bergoglio é, acima de tudo, um pastor amado por seus fiéis, como disse o jornal “L’Osservatore Romano” em sua edição extra. Um jesuíta de grande espiritualidade e espírito ascético, sem ambições pessoais, alérgico a autorreferências e adepto da colaboração e da colegialidade. Segundo Sergio Rubin, do argentino “Clarin” e grande conhecedor do arcebispo de Buenos Aires, o novo papa, bastante inflexível no que diz respeito às questões de moral e doutrina, não tem perfil de grande reformista. “Mas ele tem uma visão muito moderna da Igreja e dos problemas do mundo”, afirma. Para Rubin, Bergoglio se assemelha a João XXIII, “um papa bom, mas muito determinado”. Vale lembrar que foi João XXIII quem convocou, em 1962, o Concílio Vaticano II, o grande movimento de renovação dos últimos séculos na Igreja Católica.
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Aparentemente alheio à agenda espinhosa que o aguarda, o papa Francisco cumpriu uma série de compromissos em Roma no dia seguinte à sua nomeação – com direito a suvenires comemorativos espalhados pelos arredores do Vaticano. O novo sucessor de Pedro dispensou o carro papal, usou um automóvel simples com placa do Vaticano e foi rezar na Basílica de Santa Maria Maggiore, acompanhado do cardeal-vigário de Roma, Agostino Vallini, e de Georg Ganswein, prefeito da Casa Pontifícia e secretário particular de Bento XVI. Foram 30 minutos de uma visita privada, grande parte diante do altar de Nossa Senhora, como ele havia anunciado no dia anterior. À tarde, o pontífice latino celebrou sua primeira missa, na Capela Sistina, para os cardeais, e se recusou a sentar no trono papal. Na homilia, dispensou o tradicional latim e, em italiano, disse que “sem a confissão e a cruz, nos tornamos apenas uma ONG piedosa” e que “caminhar, edificar e confessar são as linhas da Igreja”. Nos dias seguintes, seguiria uma extensa agenda, com direito ao Angelus no domingo, até a missa solene de abertura do pontificado, na terça-feira 19, dia de São José, na Praça São Pedro, com presença de chefes de Estado, incluindo as presidentas da Argentina, Cristina Kirchner, e do Brasil, Dilma Rousseff.
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TURISMO PAPAL
Na quinta-feira 14, devotos posam para fotos com jornais
que trazem na capa a notícia do primeiro papa latino-americano
PAPA NO ÔNIBUS
No dia seguinte ao conclave, os cardeais brasileiros reuniram-se no Colégio Pio Brasileiro, em Roma, e contaram que o papa Francisco disse aos colegas que precisaria ir à Casa Internacional do Clero, onde estava hospedado, para pagar a conta e pegar seus objetos pessoais – o que realmente fez. Bergoglio também participou de uma confraternização na Casa de Santa Marta na quarta-feira à noite. Recusou – se a seguir na limusine papal e foi de ônibus com os companheiros. De diferente no cardápio comemorativo, só champanhe. Durante o brinde, teria dito, em tom de brincadeira, segundo o porta-voz Frederico Lombardi: “Que Deus os perdoe pelo que fizeram.” Por enquanto, o rebanho parece ter ficado bastante satisfeito com a escolha.
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