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PÁTRIA

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domingo, 24 de março de 2013

Cristina quer fazer o primeiro milagre do Papa

O governo Kirchner tenta separar o cardeal Bergoglio, que tratava como inimigo, do popular Francisco, que encanta os argentinos

por Delmo Moreira, enviado especial a Buenos Aires
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ROMA AZUL E BRANCA
Argentinos mostram veneração pelo papa na Praça São Pedro
Com poucos dias de papado Jorge Mario Bergoglio já se tornou peça-chave de um ensaio de milagre: o da transmutação. Ele não é autor, mas objeto do almejado prodígio. A aspirante a milagreira é Cristina Kirchner, empenhada em provar que o cardeal Bergoglio e o papa Francisco não são a mesma pessoa. A presidente argentina joga seu futuro político na tentativa de transfigurar um arcebispo oposicionista a caminho da aposentadoria num popularíssimo papa peronista alinhado com seu governo. Quem conseguir se apropriar do novo papa, acreditam os estrategistas do kirchnerismo, triunfará nos próximos e decisivos embates eleitorais que o país tem pela frente.
Quando o Vaticano anunciou a escolha de Bergoglio, o governo arreganhou os dentes. Não era novidade para nenhum argentino a péssima relação de Cristina e de seu falecido marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, com o arcebispo de Buenos Aires. “O diabo também chega a quem veste batina”, tripudiou Néstor certa vez. Cristina negou-lhe nada menos que 14 pedidos de audiência e o considerava acabado. Bergoglio já tinha escolhido até um modesto apartamento no seminário do bairro de Flores, onde iniciou a vida religiosa, para viver o resto de seus dias como um pensionista suburbano. Os sinais de contrariedade com o renascimento do velho adversário foram explícitos. Dispararam-se agravos da Casa Rosada, de ministros e congressistas, dos sindicatos amigos e das publicações oficialistas, dos peronistas apaixonados e dos propagandistas comissionados. Acabaram reavivadas as denúncias de colaboração de Bergoglio com os militares, já desmentidas pelo Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel. Também remoeu-se o passado conservador da Igreja Católica local, historicamente domesticada nos salões de estilo inglês da poderosa aristocracia rural argentina.
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PERDÃO?
Cristina Kirchner é recebida por Francisco e tenta apagar as velhas richas
Mas isso tudo não surtiu nenhum efeito, pois Francisco encantou o mundo inteiro e o governo de Cristina Kirchner balança. A crise econômica se exibe em dados e fatos que os argentinos reconhecem de longa data: inflação maquiada, controle de preços, fuga de empresas e mercado negro de dólar com cotação que bate nos 70% acima do oficial. Uma desvalorização cambial, vista com bons olhos pelo governo brasileiro, parece iminente. Além disso, desde novembro ressurgiram os panelaços de protestos pelas ruas, mostrando a desilusão da classe média portenha, e a Confederação Geral do Trabalho (CGT) começa a preparar uma greve geral para abril. As suspeitas de corrupção envenenam o ambiente ainda mais. Elas estão na boca do povo, nas páginas de uma imprensa cada vez mais antagonista e pipocam mesmo nas vozes insuspeitas de antigos aliados. O ator Ricardo Darín, por exemplo, disse meses atrás que gostaria de entender como ocorreu a multiplicação patrimonial dos Kirchner, o que provocou a ira de Cristina. No sábado 17, a oposição se animou num protesto batizado de “o passeio da corrupção K” (a letra com que os argentinos identificam tudo que tem a ver com o kirchnerismo). Os manifestantes exibiam os endereços dos investimentos imobiliários de governistas proeminentes, moradores recentes da cara vizinhança do Puerto Madero.
Com um quadro assim, o pragmatismo político falou mais alto e deu-se a largada para a curiosa experiência da transfiguração papal. A operação se iniciou com a tentativa de desqualificação dos mensageiros. O chefe de gabinete de Cristina, Juan Manuel Abal Medina, atirou no inimigo de sempre: o jornal “El Clarín” que, segundo ele, inventou todas as desavenças governamentais com Bergoglio. Então, começaram a aparecer por Buenos Aires cartazes impressos em preto e branco e papel barato com a foto do papa sob o título “Argentino e Peronista”. Gente que havia criticado Bergoglio passou a elogiar seus pronunciamentos a favor dos pobres. Logo, a aguerrida e anticlerical La Cámpora, a organização que desde o governo de Néstor Kirchner substitui a Juventude Peronista, encomendaria missas por Francisco em todo os cantos do país, num dos indícios mais eloquentes da mudança dos ventos. A facção La Cámpora, fundada por Máximo Kirchner, o filho mais velho de Cristina e Néstor, é o xodó do governo. Seus militantes controlam o serviço de notícias do Canal 7, estatal, têm cargos em vários ministérios e ganharam a direção de algumas das empresas estatizadas. Eles defendem o projeto “nacional e popular” de Cristina – ou “Nac&Pop”, como preferem grafar em suas propagandas.
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AGITAÇÃO
O filho de Cristina, Máximo, organizou La Cámpora, o grupo
peronista que faz barulho e ganha poder no governo 
A composição da nova atmosfera de paz acelerou-se de vez após o encontro de Cristina com o papa Francisco na segunda-feira 18. A presidenta, que não encontrava Bergoglio havia três anos, embora menos de dez metros separem a Casa Rosada da catedral, saiu de Buenos Aires no sábado a bordo do Tango-1 rumo a Marrocos. Prudentemente, o avião presidencial permaneceu estacionado em Rabat, sob a custódia do rei Mohamed VI, para evitar que acabasse arrestado por credores internacionais da Argentina, como já havia acontecido com a Fragata Libertad, retida em Gana meses atrás. Cristina esteve com Francisco por 20 minutos. De luto (há dois anos só veste preto), ela chorou e se mostrou humilde como poucas vezes foi vista. Depois, contou ter pedido para que o papa ajudasse na retomada das negociações internacionais em torno das Malvinas. E voltou a empinar o nariz. Disse que ela e Francisco trocaram agradecimentos “mútuos” pelo encontro, que a aproximação havia sido “proveitosa para os dois” e salientou a preocupação “recíproca” com a construção de um clima de moderação. Na quarta-feira 20, Cristina foi convidada para almoçar com o papa, como “um gesto de cortesia e afeto”, segundo o Vaticano. A nova recepção durou cerca de duas horas e fez Cristina notar outros supostos “avanços” do papa. Ele teria se referido até mesmo à “pátria grande”, como os libertadores Simon Bolívar e San Martin gostavam de chamar a América Latina. Este é um termo também caro aos Kirchner, sempre utilizado quando eles precisavam explicar sua proximidade com o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez. “Francisco não é Bergoglio”, dispararam os tuiteiros governistas pelas redes sociais. Os aliados de Cristina reforçaram o experimento da transfiguração em cada pronunciamento. Destacaram que a “mudança de cenário” (ou seja, a eleição do papa) requer “uma atitude nova dos atores”, que Francisco “está imerso em maiores preocupações e responsabilidades” que Bergoglio, que a “Igreja não tem uma natureza política, apenas espiritual”, que “é preciso olhar para frente”.
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OPOSIÇÃO
O panelaço em frente ao obelisco da capital mostra o desespero das ruas e Macri,
o inimigo de Cristina, também consegue ser recebido pelo papa
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Mas, pela frente, o que o governo Kirchner vê mesmo são as importantes eleições legislativas de outubro. Elas serão o termômetro para a eleição presidencial que ocorrerá daqui a dois anos, quando acaba o mandato de Cristina. O raciocínio compartilhado por governo e oposição é simples: não haverá vitória em 2015 sem vitória em outubro. E ninguém acha que é possível sonhar com sucesso se carregar o peso da desaprovação do papa argentino. “Cristina sabe que a direita não pode nos tirar esse papa”, disse o filósofo José Pablo Feinmann, uma das mais respeitadas vozes do kirchnerismo, relembrando a comemoração que os militares condenados por crimes contra a humanidade fizeram no dia da eleição de Bergoglio (embora o papa Francisco já tenha defendido a condenação dos criminosos). “O que estamos jogando é a apropriação de Francisco”, arrematou Feinmann sem meias palavras.
Querer ser dono de um papa é um jogo, no mínimo, arriscado. Cristina já teve prova disso na quarta-feira 20, quando os chefes de Estado foram recebidos na Basílica de São Pedro. O papa soube que o prefeito de Buenos Aires, Maurício Macri, adversário ferrenho de Cristina, estava presenta, mas que havia sido excluído da comitiva oficial pela presidente argentina. Francisco mandou, então, buscá-lo já na Praça São Pedro e o recebeu com manifestação de afeto.
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Além do liberal Macri, o estilo corrosivo de Cristina fazer política atrai inimigos ferozes mesmo dentro do peronismo. Mas ela não refuga nenhum deles – ao contrário, parece até cultivá-los. Seus principais desafetos no próprio partido, além do presidente da CGT, Hugo Moyano, amigo de Bergoglio, são os governadores da província de Buenos Aires, Daniel Scioli, e de Córdoba, Juan Manuel de la Sota, ambos com pretensão de chegar à Presidência da República e com enorme apetite para as eleições de outubro.
O sonho que os partidários de Cristina Kirchner já não escondem é o de obterem uma vasta vitória legislativa que lhes possibilite alterar o artigo 39 da Constituição, permitindo assim que a presidenta concorra a um terceiro mandato. Se isto não for possível, eles já desenharam outra alternativa para seu acesso de chavismo explícito: o plebiscito. A ideia da consulta popular direta foi lançada no sábado 17, num encontro partidário que reuniu governadores na cidade de Paraná. A frase de lançamento, lapidar como amostra da confusão de interesses do governo de Cristina, foi cunhada pelo governador de Chaco, Jorge Capitanich: “O país precisa reafirmar a confiança em nossa liderança, pelo muito que fizemos e pelo muito que ainda nos falta fazer.”
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Fotos: Domenico Stinellis/ AP Photo; Osservatore Romano/ Reuters; ALEJANDRO PAGNI / AP Photo; Gobierno

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