O governo Kirchner tenta separar o cardeal Bergoglio, que tratava como inimigo, do popular Francisco, que encanta os argentinos
por Delmo Moreira, enviado especial a Buenos Aires
ROMA AZUL E BRANCA
Argentinos mostram veneração pelo papa na Praça São Pedro
Com poucos dias de papado Jorge Mario Bergoglio já se tornou
peça-chave de um ensaio de milagre: o da transmutação. Ele não é autor,
mas objeto do almejado prodígio. A aspirante a milagreira é Cristina
Kirchner, empenhada em provar que o cardeal Bergoglio e o papa Francisco
não são a mesma pessoa. A presidente argentina joga seu futuro político
na tentativa de transfigurar um arcebispo oposicionista a caminho da
aposentadoria num popularíssimo papa peronista alinhado com seu governo.
Quem conseguir se apropriar do novo papa, acreditam os estrategistas do
kirchnerismo, triunfará nos próximos e decisivos embates eleitorais que
o país tem pela frente.
Quando o Vaticano anunciou a escolha de Bergoglio, o governo
arreganhou os dentes. Não era novidade para nenhum argentino a péssima
relação de Cristina e de seu falecido marido, o ex-presidente Néstor
Kirchner, com o arcebispo de Buenos Aires. “O diabo também chega a quem
veste batina”, tripudiou Néstor certa vez. Cristina negou-lhe nada menos
que 14 pedidos de audiência e o considerava acabado. Bergoglio já tinha
escolhido até um modesto apartamento no seminário do bairro de Flores,
onde iniciou a vida religiosa, para viver o resto de seus dias como um
pensionista suburbano. Os sinais de contrariedade com o renascimento do
velho adversário foram explícitos. Dispararam-se agravos da Casa Rosada,
de ministros e congressistas, dos sindicatos amigos e das publicações
oficialistas, dos peronistas apaixonados e dos propagandistas
comissionados. Acabaram reavivadas as denúncias de colaboração de
Bergoglio com os militares, já desmentidas pelo Prêmio Nobel da Paz,
Adolfo Pérez Esquivel. Também remoeu-se o passado conservador da Igreja
Católica local, historicamente domesticada nos salões de estilo inglês
da poderosa aristocracia rural argentina.
PERDÃO?
Cristina Kirchner é recebida por Francisco e tenta apagar as velhas richas
Mas isso tudo não surtiu nenhum efeito, pois Francisco encantou o
mundo inteiro e o governo de Cristina Kirchner balança. A crise
econômica se exibe em dados e fatos que os argentinos reconhecem de
longa data: inflação maquiada, controle de preços, fuga de empresas e
mercado negro de dólar com cotação que bate nos 70% acima do
oficial. Uma desvalorização cambial, vista com bons olhos pelo governo
brasileiro, parece iminente. Além disso, desde novembro ressurgiram os
panelaços de protestos pelas ruas, mostrando a desilusão da classe
média portenha, e a Confederação Geral do Trabalho (CGT) começa a
preparar uma greve geral para abril. As suspeitas de corrupção envenenam
o ambiente ainda mais. Elas estão na boca do povo, nas páginas de uma
imprensa cada vez mais antagonista e pipocam mesmo nas vozes insuspeitas
de antigos aliados. O ator Ricardo Darín, por exemplo, disse meses
atrás que gostaria de entender como ocorreu a multiplicação patrimonial
dos Kirchner, o que provocou a ira de Cristina. No sábado 17, a oposição
se animou num protesto batizado de “o passeio da corrupção K” (a letra
com que os argentinos identificam tudo que tem a ver com o
kirchnerismo). Os manifestantes exibiam os endereços dos investimentos
imobiliários de governistas proeminentes, moradores recentes da cara
vizinhança do Puerto Madero.
Com um quadro assim, o pragmatismo político falou mais alto e deu-se a
largada para a curiosa experiência da transfiguração papal. A operação
se iniciou com a tentativa de desqualificação dos mensageiros. O chefe
de gabinete de Cristina, Juan Manuel Abal Medina, atirou no inimigo de
sempre: o jornal “El Clarín” que, segundo ele, inventou todas as
desavenças governamentais com Bergoglio. Então, começaram a aparecer por
Buenos Aires cartazes impressos em preto e branco e papel barato com a
foto do papa sob o título “Argentino e Peronista”. Gente que havia
criticado Bergoglio passou a elogiar seus pronunciamentos a favor dos
pobres. Logo, a aguerrida e anticlerical La Cámpora, a organização que
desde o governo de Néstor Kirchner substitui a Juventude Peronista,
encomendaria missas por Francisco em todo os cantos do país, num dos
indícios mais eloquentes da mudança dos ventos. A facção La Cámpora,
fundada por Máximo Kirchner, o filho mais velho de Cristina e Néstor, é o
xodó do governo. Seus militantes controlam o serviço de notícias do
Canal 7, estatal, têm cargos em vários ministérios e ganharam a direção
de algumas das empresas estatizadas. Eles defendem o projeto “nacional e
popular” de Cristina – ou “Nac&Pop”, como preferem grafar em suas
propagandas.
AGITAÇÃO
O filho de Cristina, Máximo, organizou La Cámpora, o grupo
peronista que faz barulho e ganha poder no governo
A composição da nova atmosfera de paz acelerou-se de vez após o
encontro de Cristina com o papa Francisco na segunda-feira 18. A
presidenta, que não encontrava Bergoglio havia três anos, embora menos
de dez metros separem a Casa Rosada da catedral, saiu de Buenos Aires no
sábado a bordo do Tango-1 rumo a Marrocos. Prudentemente, o avião
presidencial permaneceu estacionado em Rabat, sob a custódia do rei
Mohamed VI, para evitar que acabasse arrestado por credores
internacionais da Argentina, como já havia acontecido com a Fragata
Libertad, retida em Gana meses atrás. Cristina esteve com Francisco por
20 minutos. De luto (há dois anos só veste preto), ela chorou e se
mostrou humilde como poucas vezes foi vista. Depois, contou ter pedido
para que o papa ajudasse na retomada das negociações internacionais em
torno das Malvinas. E voltou a empinar o nariz. Disse que ela e
Francisco trocaram agradecimentos “mútuos” pelo encontro, que a
aproximação havia sido “proveitosa para os dois” e salientou a
preocupação “recíproca” com a construção de um clima de moderação. Na
quarta-feira 20, Cristina foi convidada para almoçar com o papa, como
“um gesto de cortesia e afeto”, segundo o Vaticano. A nova recepção
durou cerca de duas horas e fez Cristina notar outros supostos “avanços”
do papa. Ele teria se referido até mesmo à “pátria grande”, como os
libertadores Simon Bolívar e San Martin gostavam de chamar a América
Latina. Este é um termo também caro aos Kirchner, sempre utilizado
quando eles precisavam explicar sua proximidade com o ex-presidente
venezuelano Hugo Chávez. “Francisco não é Bergoglio”, dispararam os
tuiteiros governistas pelas redes sociais. Os aliados de Cristina
reforçaram o experimento da transfiguração em cada pronunciamento.
Destacaram que a “mudança de cenário” (ou seja, a eleição do papa)
requer “uma atitude nova dos atores”, que Francisco “está imerso em
maiores preocupações e responsabilidades” que Bergoglio, que a “Igreja
não tem uma natureza política, apenas espiritual”, que “é preciso olhar
para frente”.
OPOSIÇÃO
O panelaço em frente ao obelisco da capital mostra o desespero das ruas e Macri,
o inimigo de Cristina, também consegue ser recebido pelo papa
Mas, pela frente, o que o governo Kirchner vê mesmo são as
importantes eleições legislativas de outubro. Elas serão o termômetro
para a eleição presidencial que ocorrerá daqui a dois anos, quando acaba
o mandato de Cristina. O raciocínio compartilhado por governo e
oposição é simples: não haverá vitória em 2015 sem vitória em outubro. E
ninguém acha que é possível sonhar com sucesso se carregar o peso da
desaprovação do papa argentino. “Cristina sabe que a direita não pode
nos tirar esse papa”, disse o filósofo José Pablo Feinmann, uma das mais
respeitadas vozes do kirchnerismo, relembrando a comemoração que os
militares condenados por crimes contra a humanidade fizeram no dia da
eleição de Bergoglio (embora o papa Francisco já tenha defendido a
condenação dos criminosos). “O que estamos jogando é a apropriação de
Francisco”, arrematou Feinmann sem meias palavras.
Querer ser dono de um papa é um jogo, no mínimo, arriscado. Cristina
já teve prova disso na quarta-feira 20, quando os chefes de Estado foram
recebidos na Basílica de São Pedro. O papa soube que o prefeito de
Buenos Aires, Maurício Macri, adversário ferrenho de Cristina, estava
presenta, mas que havia sido excluído da comitiva oficial pela
presidente argentina. Francisco mandou, então, buscá-lo já na Praça São
Pedro e o recebeu com manifestação de afeto.
Além do liberal Macri, o estilo corrosivo de Cristina fazer política
atrai inimigos ferozes mesmo dentro do peronismo. Mas ela não refuga
nenhum deles – ao contrário, parece até cultivá-los. Seus principais
desafetos no próprio partido, além do presidente da CGT, Hugo Moyano,
amigo de Bergoglio, são os governadores da província de Buenos Aires,
Daniel Scioli, e de Córdoba, Juan Manuel de la Sota, ambos com pretensão
de chegar à Presidência da República e com enorme apetite para as
eleições de outubro.
O sonho que os partidários de Cristina Kirchner já não escondem é o
de obterem uma vasta vitória legislativa que lhes possibilite alterar o
artigo 39 da Constituição, permitindo assim que a presidenta concorra a
um terceiro mandato. Se isto não for possível, eles já desenharam outra
alternativa para seu acesso de chavismo explícito: o plebiscito. A ideia
da consulta popular direta foi lançada no sábado 17, num encontro
partidário que reuniu governadores na cidade de Paraná. A frase de
lançamento, lapidar como amostra da confusão de interesses do governo de
Cristina, foi cunhada pelo governador de Chaco, Jorge Capitanich: “O
país precisa reafirmar a confiança em nossa liderança, pelo muito que
fizemos e pelo muito que ainda nos falta fazer.”
Fotos: Domenico Stinellis/ AP Photo; Osservatore Romano/ Reuters; ALEJANDRO PAGNI / AP Photo; Gobierno
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