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domingo, 17 de março de 2013

Crianças especiais parecem invisíveis nas filas de adoção

Eles chegam nas casas de acolhimento abandonados, e sofrem porque não conseguem ser adotados
O presente tão aguardado de Deus. O que completa a união de um casal. O milagre da vida se tornando realidade. Angústias, medo, sentimento de amor infinito. Estas são as emoções quando se tem a notícia de uma gravidez, pelo menos, para boa parte dos casais. No entanto, quando algo não sai como o planejado, a culpa e a decepção aparecem. A rejeição, muitas vezes, toma o lugar do carinho que deveria ser ainda maior. Em diversos casos, até em razão da situação "miserável" na qual se vive, casais abandonam seus filhos logo ao nascerem. São bebês especiais, que necessitam de atenção e tratamento adequados.

No Abrigo Tia Júlia, todas as crianças que estão aptas para adoção são especiais Fotos: Viviane Pinheiro

O pai e a mãe, por sua vez, não conseguem suportar o problema e, simplesmente, desamparam pequenos seres indefesos que vão ter que viver em casas de acolhimento - locais que protegem crianças em situação de negligência, abandono, maus-tratos, abuso sexual e que podem ser colocadas para adoção.

Além do preconceito por não serem "normais", eles vão ter que conviver com a exclusão também por parte das famílias que procuram adotar crianças. Eles estão no grupo dos que, praticamente, não são escolhidos. Os mais procurados são bebês do sexo feminino e saudáveis. Crianças a partir de 4 anos, meninos e negros fazem parte do grupo menos procurado, porém ainda conseguem novos lares.

Para se ter uma ideia, no Abrigo Tia Júlia, das 85 crianças, 17 são especiais. Apenas 13 estão aptas para adoção, todas especiais. Chegaram lá ainda quando bebês e, hoje, são adolescentes e adultos, com 12, 17, 22, 24 anos, homens e mulheres.

Sorriso
Por mais que estejam em uma situação de exclusão, é possível ver a alegria no rosto deles. Um sorriso faz com que a tristeza de quem observa de fora vá embora. As lágrimas são substituídas por gestos de conforto oferecidos, involuntariamente, por eles. É impossível não se deixar contagiar pela sabedoria da Maria (nome fictício), que sonha em ser fisioterapeuta.

Na cadeira de rodas, deficiente visual, aos 12 anos estuda no Instituto dos Cegos, adora conversar e aprender. Chegou ao abrigo ainda bebê. A coordenadora do local, Luiza Frota, contou que ela é uma criança bem ativa, por mais que enfrente algumas limitações. Perdeu a visão recentemente, mas não se deixou abalar. "Quando eu não estou aqui, ela diz que é a vice-diretora e a responsável pelo lugar", brincou.

Os sonhos, para quem acha impossível, são os mesmos. Júlia (nome fictício) irradia felicidade. O anel, na mão direita, revela o seu estado civil: noiva de Pedro, (nome fictício). E ela acredita sim, que um dia, vai, se casar com seu amor. Ela sofreu paralisia cerebral, e ele se locomove em cadeira de rodas. "Eles recebem aqui todo o carinho que podemos dar", diz a coordenadora.

São bem tratados pelas mães e pais substitutos que trabalham no abrigo. "Digo que eles são verdadeiros anjos da guarda", afirma Luiza. Uma delas é Elinete Lopes, que trabalha neste setor há 17 anos. "Não troco esta ala aqui por nada. Amo essas crianças, aprendemos muito com elas", contou. Cristina Palhano também não se vê trabalhando em outro lugar. "Prefiro aqui, já me identifico com eles e eles com a gente. Conheço todos, sei como lidar com cada um. Eles têm muito amor para dar e para receber".

Na sala de observação, existem três especiais que estão com problemas que precisam de atenção redobrada. Sofreram paralisia cerebral e estão com sistema respiratório comprometido, perdendo a deglutição. Para a enfermeira Tatiana Jucá, "é gratificante trabalhar aqui, enfrentar as dificuldades ao lado deles. Nós não os escolhemos, eles é quem nos escolhem".

A coordenadora contou que um advogado apareceu no Abrigo, dias atrás, à procura de uma das crianças, para saber seu destino e informar ao fórum. "Achava que era a mãe quem estava à procura. Mas, quando o advogado chegou aqui, ficou admirado por a criança estar viva. Tinha sido abandonada pela mãe quando soube do problema do bebê".

O Abrigo Desembargador Olívio Câmara (Adoc) é outro local que abriga pessoas especiais, portadores de deficiência mental. "Chegam pequenos aqui, vão crescendo e nosso papel é cuidar deles com carinho e dedicação".

Estudo
Foi justamente sobre a construção do campo da adoção, como é realizada, quais os grupos preferidos e os excluídos e como os pais adotivos estão agindo para tentar reverter essa situação que tratou a dissertação de mestrado do assistente social Antônio Diogo Calls de Oliveira Filho.

Na obra "Entre a sociedade civil organizada e o Estado: embate, lesões e alianças no processo de construção do campo adotivo nacional", ele mostra as dificuldades e as mudanças. "Fiz pesquisas, entrevistas, e o que se percebe é que existe a vontade destes grupos de mudar essa realidade e incluir os excluídos. Essa questão vem ganhando mais espaço no cotidiano".

Políticas públicas insuficientes dificultam retorno para famílias
O pensamento de boa parte da população é que todas as crianças das casas de acolhimento estão aptas para a adoção. Mas a realidade não é essa. O que está em primeiro lugar é a manutenção do vínculo familiar. O trabalho é feito junto às famílias para que as crianças e os adolescentes voltem para o lar. Porém, são necessárias políticas públicas que deem condições para que isso aconteça, como moradia digna, emprego, saúde.

A ideia é que as crianças voltem para suas residências. Nas casas de acolhimento recebem atenção, mas nada comparado ao amor familiar que podem ter

Na Casa Abrigo, que recebe crianças de 0 a 12 anos, das 95 existentes lá, apenas cinco estão para adoção, destas um já está em processo adotivo e as outras quatro em processo de Destituição do Poder Familiar (DPF). O Abrigo Tia Júlia possui 85 crianças, sendo 13 para adoção e três em processo de destituição.

De acordo com a assistente social do Abrigo Tia Júlia, Valdelice Maciel, "o nosso trabalho é para manter o vínculo e que elas retornem para suas famílias. Tentamos de todas as formas, até que esgotem todas as alternativas". Porém, este trabalho é comprometido, segundo ela, porque faltam equipamentos que ajudem nessa ação. "É muito difícil para a gente, porque não temos políticas públicas suficientes, a habitação deixa a desejar, a saúde deixa a desejar".

Conforme ela e a coordenadora do Abrigo, Luiza Frota, a dependência química, seja lícita (álcool) ou ilícita (drogas), é a maior causa da existência de menores nas casas de acolhimento. "Nesses casos, a gente procura um local para que o pai ou mãe se tratem, mas é complicado achar vaga. Além disso, temos casos de pessoas que estão em tratamento, mas dizem que só querem sair quando puderem mudar de casa, pois não podem voltar para a mesma moradia, por não ser adequada. Mesmo assim, buscamos ajuda".

Longe
Elas contaram que, algumas vezes, é por meio da situação que a família leva "um susto e faz de tudo para não ficar longe dos filhos. O melhor lugar é na família e, esta fase, a primeira infância, é uma das que se precisa mais de amor, de carinho".

"É um trabalho muito lento. A gente depende de uma rede, de políticas públicas, internamento para os usuários de droga, emprego, habitação, mas o acesso a estes itens não é o que deveria ser", afirmou a assistente social da Casa Abrigo, Fátima Monte.

Conforme a supervisora da Casa, Socorro Salgueiro, "nosso trabalho é a busca pela família. Eles são bem tratados aqui, mas vivem na ansiedade de voltar para casa e, infelizmente, isso, muitas vezes, não é um processo rápido, depende de cada caso".

Essa incerteza do tempo acaba trazendo consequências negativas. Para Socorro, o retorno não é imediato e isso coloca em "risco a relação criança e família e o vínculo pode ser perdido".

Segundo a Lei da Adoção, o prazo para ajudar a família a ter a criança de volta é de dois anos. Mas, as responsáveis pela casas comentaram que isso pode variar de acordo com cada caso.

Outro problema é que, esgotadas todas as possibilidades de retorno para os familiares -pais, avós, tios, por exemplo - leva-se outro período para a destituição familiar. Enquanto isso, os anos se passam e, quando estão aptos a serem adotados, isso não acontece porque já se tornam "velhos" para quem deseja ter um filho. "Mas ainda existem casos. No ano passado, dois irmãos foram adotados, tinham 7 e 9 anos", disse Socorro. De janeiro a dezembro de2012, cinco crianças do Abrigo Tia Júlia e 65 da Casa Abrigo retornaram para suas famílias.

Conforme a assessoria de imprensa da Secretaria de Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS), o acompanhamento das famílias é feito de forma intersetorial. As demandas são encaminhadas para o setor responsável. Eles recebem atendimento psicológico, são direcionados para projetos sociais que dão oportunidade de trabalho, atendimento de saúde etc.

Um exemplo são famílias que têm direito de receber o Bolsa Família e não são cadastrados. São orientados para ganhar o benefício. Como prevenção, para que os futuros pais não abandonem os filhos, vários projetos são disponibilizados na STDS, como Projovem Trabalhador, Primeiro Passo, Criando Oportunidade, entre outros.

Casas recebem doação de voluntários
Depois que uma criança chega a uma casa de acolhimento, fica mais difícil deixar o local. Para tê-la de volta ao meio familiar, os parentes têm que mostrar que vão dar a proteção e cumprir com todos os deveres para que o pequeno viva em segurança e seus direitos sejam assegurados. Eles devem mostrar que querem seus filhos de volta. Para isso, precisam visitá-los, provar que estão recuperados - no caso de serem dependentes químicos - que vivem em condições que vão proporcionar um bem-estar.

Enquanto isso não acontece, nas casas de acolhimento, recebem a atenção necessária. São mantidas pelo Estado. Lá, estudam, brincam, têm acompanhamento com profissionais, passeiam. "Conseguimos padrinhos que pagam escola particular para alguns", contaram a coordenadora do Tia Júlia, Luiza Frota, e a supervisora da Casa Abrigo, Socorro Salgueiro.

Dentista, médico, assistente social, pedagogo, psicólogo, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, enfermeiro, nutricionista, fisioterapia são alguns dos profissionais das unidades.

Ensinamento
"Toda ajuda e amor são bem vindos aqui. Eles são quem nos ensinam como superar obstáculos da vida"
Luiza Helena Paiva Frota/Coordenadora do Abrigo Tia Júlia

"Hoje, a possibilidade de construção familiar não é só nos atos genéticos, mas nos laços afetivos que são construídos dia a dia"
Antônio Diogo Calls Filho/Mestre em Sociologia

EVELANE BARROSREPÓRTER

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