A reportagem do site de VEJA visita cidades palestinas e israelenses para mostrar como é a vida cotidiana num momento em que o aparato de segurança e vigilância de Israel define a vida dos dois povos
Cecília Araújo, de Jerusalém
Cidade Velha, ponto turístico e religioso de Jerusalém, vista de cima (Cecília Araújo / VEJA)
O caminho de Jerusalém a Ramallah é em parte ladeado por um muro de mais de oito metros de altura, que termina num emaranhado de arame farpado. Suas dimensões ficam mais claras quando mulheres, apequenadas, passam a pé ao seu lado. A estrutura é um fragmento da barreira que separa Israel da Cisjordânia – território palestino que abriga, no entanto, diversas colônias judaicas. Segundo os dados mais recentes do Ministério da Defesa de Israel, a barreira tem hoje 515 quilômetros de extensão. Quando estiver terminada, terá 790 quilômetros – 93% de arame, 7% de concreto. Sua construção teve início há dez anos, em meados de 2002, no auge do levante palestino conhecido como Segunda Intifada. Na época, atentados praticados por homens-bomba haviam se tornado um flagelo permanente nas cidades israelenses. Erguidos para impedir a movimentação dos terroristas, muros e cercas cumpriram sua função: em 2002, atentados mataram 450 judeus, contra 25 em 2011. Hoje, a maior parte dos ataques ao território israelense se deve aos morteiros Qassam lançados pelo Hamas, grupo fundamentalista islâmico que controla Gaza, o outro enclave dos palestinos, na fronteira com o Egito e às margens do Mediterrâneo. Arame e concreto são, no entanto, apenas a parte visível do sistema de controle que Israel consolidou na última década - e que hoje define o conflito entre judeus e palestinos.
Antes da Segunda Intifada, que teve início em 2000, o tema das fronteiras entre Israel e uma futura nação palestina era o que mobilizava as lideranças dos dois lados. Em 1993, um acordo foi firmado em Oslo, na Noruega, visando à criação de dois estados e indicando quais seriam os limites territoriais de cada um. As negociações, no entanto, logo emperraram. Nos anos seguintes, assentamentos judeus proliferaram na Cisjordânia. Em paralelo, radicais palestinos lançavam mão do terror, até que a escalada de atentados nas maiores cidades de Israel provocou a construção da barreira de segurança e marcou o fim desse momento no confronto entre os dois povos.
Como têm observado diversos analistas, o fracasso do processo político que pretendia culminar na criação de dois estados teve duas consequências. A primeira foi reforçar, na prática, o controle de Israel sobre toda a terra que se estende da margem ocidental do rio Jordão às praias do Mediterrâneo. Mesmo sem governar formalmente os territórios palestinos de Gaza e da Cisjordânia, é Israel quem define, com uma miríade de passes, autorizações e registros, quem pode entrar ou sair dessas áreas, quem nelas pode fixar residência ou exercer atividades econômicas, quais os bens que nelas podem circular.
Na viagem de Jerusalém a Ramallah, por exemplo, é necessário passar por um checkpoint, onde militares israelenses armados com fuzis fazem a fiscalização das pessoas que transitam por ali. Para quem sai de Israel e entra na Cisjordânia, o controle é um pouco menor, especialmente se os passageiros dos veículos não usam os trajes árabes. Na volta, a fila pode durar horas. "Nas passagens feitas para os colonos judeus, os carros raramente são parados", explica um taxista de origem árabe, mas portador do documento de identidade azul, que lhe dá acesso mais fácil a Jerusalém e outras áreas israelenses. A identidade verde, da maioria dos palestinos que vivem na Cisjordânia, exige de seu portador permissões específicas para cada deslocamento: por motivo religioso, de saúde, de trabalho etc.
O controle militar e burocrático, é óbvio, também se reflete na economia dos territórios palestinos. Em 2011, registrou-se um aumento de 7% no comércio entre Israel e Cisjordânia. Foi significativo o crescimento da compra de produtos palestinos pelos israelenses, segundo dados fornecidos pelo Ministério de Relações Exteriores de Israel. "Temos trabalhado intensamente nos últimos anos com os palestinos e a comunidade internacional para garantir o desenvolvimento econômico da Palestina e diminuir os obstáculos para seu progresso", diz a diretora do escritório de assuntos econômicos do Ministério de Relações Exteriores israelense, Yael Ravia-Zadok. Mas, segundo Filippo Grandi, maior autoridade da ONU em assuntos humanitários no Oriente Médio, essa evolução econômica é "artificial e inconstante". Diz ele: “O comércio depende de muitas aprovações e restrições.”
A segunda consequência do colapso dos acordos de Oslo foi trazer de volta para a dianteira o elemento étnico e cultural que sempre esteve no cerne do embate entre judeus e palestinos, mas que parecia ter ficado em segundo plano nos anos em que as negociações versavam sobre terra e fronteiras. Isso, obviamente, é uma péssima notícia. Em lutas desse tipo, há muito pouco espaço para compromissos.
Um sinal do novo peso do elemento étnico no conflito é emitido pelos árabes que vivem em Israel propriamente dito – uma minoria de cerca de 1,4 milhão de pessoas, contra 7 milhões de judeus. Legalmente, eles desfrutam de cidadania – mas reclamam continuamente de discriminação política e de receberem fatias significativamente menores do dinheiro do estado para financiar, por exemplo, educação ou moradia. Segundo um artigo recente da revista britânica The Economist, isse se traduz em descrença nas instituições de Israel e em crescente identificação com os palestinos dos territórios ocupados. Diz a reportagem: “Muitos que costumavam se identificar como árabes israelenses hoje se apresentam como ‘palestinos com cidadania de Israel’.” Conselheiro do gabinete de Ehud Barak, primeiro-ministro de Israel entre 1999 e 2001, o cientista político Menachem Klein, da universidade de Bar Illan, é um dos mais destacados defensores da tese de que segurança e etnia são hoje as questões-chave não somente para grupos minoritários, mas para a maioria da população judaica, num processo que enfraquece as bases da democracia israelense. “Ao contrário do que acontecia na década de 1990, quanto a sociedade israelense se mostrava mais aberta que nunca aos valores liberais, hoje os judeus de Israel se sentem menos inclinados a incluir os palestinos em sua esfera política”, diz ele no livro The Shift: Israel-Palestine from Border Struggle to Ethnic Conflict.
Desde sua fundação, em 1948, Israel foi alvo do ódio irracional da vizinhança muçulmana. Do Hamas na Faixa de Gaza ao regime iraniano dos aiatolás e de Mahmoud Ahmadinejad, o estado judeu permanece na mira de grupos que não aceitam que sua existência é legítima e que declaradamente buscam a sua destruição. Nessas circunstâncias, um sistema poderoso de segurança e vigilância é um imperativo. Mas, a longo prazo, manter sistemas desse tipo representa um ônus para sociedades democráticas - o que Israel sempre foi e continua sendo. É contra esse pano de fundo que o site de VEJA publica a partir deste sábado uma série de reportagens especiais, mostrando a textura da vida cotidiana para judeus e palestinos no momento atual. Em uma cidade israelense, por exemplo, brinquedos de crianças são também abrigos contra ataques com foguetes, e as mulheres não usam saltos nas ruas porque precisam estar prontas para correr a um sinal de perigo. Enquanto em um campo de refugiados palestinos, os moradores precisam de acompanhamento médico e psicológico para superar os traumas de terem suas casas invadidas e parentes presos no meio da noite.
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