Conteúdo gerado na internet por pessoas que já morreram vira caso de Justiça nos Estados Unidos e começa a ser discutido por usuários brasileiros
Larissa Veloso
VIDA APÓS A MORTE
A professora Karen Willians (abaixo) e a fotógrafa Thays Bittar tentam manter a memória de seus entes queridos
Gastamos boa parte de nossa vida digital produzindo, juntando e publicando vídeos, textos ou perfis espalhados pela internet, preferencialmente bem guardados por senhas. Os anos passam, os arquivos crescem e um dia a gente morre. E quem é o dono dessa herança e dessa memória digital que deixamos?
Nos EUA a discussão ganhou força depois que a professora Karen Willians abriu um processo contra o site de relacionamentos Facebook para poder manter o perfil de seu filho, Loren, no ar. O rapaz morreu em 2005, aos 22 anos, em um acidente de moto. Como forma de relembrar o passado, ela conseguiu a senha e passou a acessar a conta do rapaz, lendo depoimentos de amigos e parentes. Mas, quando Karen mandou uma mensagem para a companhia pedindo instruções sobre como proceder para que o perfil não fosse exterminado, o site fechou o acesso para ela. A professora venceu a batalha judicial e, após dois anos, teve o acesso liberado, mas por apenas dez meses.
O caso abriu um precedente judicial, e o assunto começou a chamar a atenção dos legisladores americanos. Em 2010, o Estado de Oklahoma aprovou uma lei estabelecendo que o executor de um testamento também tem o direito de administrar as contas de redes sociais e outros serviços virtuais que a pessoa usava antes de morrer. Agora o Estado de Nebraska discute uma lei semelhante. Por meio dela, amigos e parentes ganhariam o poder de gerir o legado digital daqueles que já se foram.
O Brasil ainda está longe de transformar essa discussão em lei. Enquanto não há como decidir quem é responsável pelo que foi deixado na internet por alguém que morreu, familiares tratam de arrumar maneiras de manter viva a memória de seus entes queridos. É o caso da fotógrafa Thays Bittar, que cuida do legado digital de seu pai, o também fotógrafo João Bittar, morto em dezembro de 2011. João não deixou senhas ou orientações, mas a vontade da filha é manter seu perfil no Facebook da maneira como está. “O mais importante são as fotos, os comentários carinhosos que as pessoas deixaram e o diálogo que ele mantinha com aqueles de quem gostava”, diz. Ela mantém o perfil do pai ativo, postando mensagens e incentivando comentários. A página está lotada de homenagens e referências ao trabalho do profissional, mas ela não sabe quanto tempo permanecerá assim. “Mandei um recado para administração do site para saber como proceder, mas não obtive resposta”, conta.
Consultado pela reportagem, o Facebook afirmou por meio de sua assessoria que desde 2007 tem a política de apresentar duas opções para a família que tem de lidar com um perfil inativo. A primeira delas é transformar a página em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal. A segunda opção é apagar todos os dados do usuário. Outras redes sociais, como o Orkut, também têm opções para que parentes removam a conta do antigo usuário. Já no caso dos outros serviços do Google, como o YouTube ou o Gmail, a empresa afirma que em situações extremas pode conceder acesso às informações, mas os pedidos serão analisados caso a caso.
Segundo o presidente do Conselho de Tecnologia da Informação da Federação de Comércio de São Paulo, Renato Opice Blum, os parentes têm direito às informações e arquivos postados por quem já morreu, mas não há nada que possa ser feito quanto ao destino da conta. “O usuário concordou com essa política no momento em que fez a inscrição no site. Então, a empresa não está errada em seguir o que foi previamente determinado”, explica. Para ele, ler antes de assinar – ou, nesse caso, clicar – é uma das principais precauções que o usuário deve tomar se quiser que seu perfil acabe se tornando um legado (leia quadro).
A questão é complexa, principalmente porque não há precedentes na lei que possam servir de orientação sobre o que fazer com uma herança digital, mas não há como fugir do assunto. “A cada dia que passa, o legado que deixamos na internet fica maior. E, considerando que alguma parte desse conteúdo pode ter valor comercial, vai chegar um momento em que ficará difícil diferenciar a herança real da digital”, analisa Blum. Como na vida fora da internet, a melhor estratégia é pensar desde já sobre o que fazer com os nossos bens digitais quando partirmos. No mínimo, é um assunto a menos para os herdeiros discutirem.
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