Casos curiosos, choque
cultural e festa — assim foi a passagem de milhares de torcedores
corintianos, de todas as partes do mundo, pelo organizado e discreto
Japão
Fernando Valeika de Barros, de Nagoia
SÃO PAULO É AQUI - Na contramão das orientações da polícia
local, os corintianos pararam o trânsito de Toyota, a caminho da
semifinal contra o Al Ahly, do Egito
(MASTRANGELO REINO / FRAME / FOLHAPRESS)
No dia da chegada do time a Nagoia, os torcedores transformaram o
saguão do hotel Hilton em arquibancada, com batucada, bandeiras e
pessoas pulando e entoando gritos e músicas
Famosa pela relação sempre apaixonada e intensa com seu time do
coração, a torcida corintiana escreveu no Japão uma nova página na
história do futebol. Nunca antes em um Campeonato Mundial de Clubes
tantos torcedores de um mesmo clube se dispuseram a viajar de um
continente a outro só para ver seu time jogar. A comoção começou antes,
no aeroporto de Cumbica, em São Paulo, tomado de assalto pela multidão
embandeirada que foi se despedir dos jogadores — um espetáculo de
euforia contagiante que infelizmente acabou em vandalismo e depredações.
Transportada ela mesma para o Japão, no primeiro jogo do Corinthians,
contra os egípcios do Al Ahly, a Fiel, de novo, fez barulho: era a
imensa maioria no público de 31.000 pessoas, fazendo do estádio de
Toyota uma sucursal do Pacaembu. “O Corinthians tem um poder de
mobilização inexplicável que consegue unir no mesmo amor gente de todas
as raças, religiões e classes sociais”, derrama-se o infectologista
Artur Timerman, que viajou de São Paulo ao Japão para acompanhar a saga
corintiana ao lado da mulher, irmão, filhos e sobrinhos, todos
corintianos roxos. “Assim que ganhamos a Libertadores, prometi que daria
esse presente para a minha família”, explica, como se fosse coisa
explicável.
Mauro Horita/Agif/Folhapress
SE ORIENTEM, RAPAZES - Corintianos a caminho do estádio: o branco, o
preto e o vermelho da bandeira japonesa despontam no céu de inverno
Cada integrante do bando de loucos em terras japonesas tem uma história
para contar. Sidnei Ber, engenheiro civil de 34 anos, é um exemplo do
ponto a que chegaram os corintianos mais corintianos. Ele embarcou para
Tóquio na sexta-feira, 14, às 20h55 — chegou ao aeroporto de Haneda, via
Madri e Pequim, às 13h do dia da final contra o Chelsea. Viu o Timão
vencer, passou algumas horas em um hotel e no dia 17, segunda-feira,
retornaria campeão a São Paulo. Ficou 24 horas no Japão e 56 no ar.
Viajou de econômica. Como tem 1,94 metro de altura, apenas pediu para a
TAM, no primeiro trecho da aventura, um lugar um pouquinho melhor. O que
ele tem a dizer de tudo isso? “Minha mulher é espetacular, ter a
grandeza de me apoiar numa loucura dessas, não é coisa comum, não.”
Outro paulista, Isaach Menache, não só viajou da Cisjordânia, onde mora,
para o Japão como ainda precisou encher a mala de latinhas de atum,
castanhas de caju e barras de cereal, alimentos permitidos pelos
preceitos judaicos. “O Corinthians está tão famoso que, quando visto a
camisa do time por lá, muitos árabes fazem questão de me parar na rua
para cumprimentar”, comenta. Para pagar a passagem, os irmãos Camila e
Tiago Gattermeyer, que vivem na Nova Zelândia, venderam até alguns de
seus aparelhos eletrônicos, sem arrependimento algum. “Moramos longe e
tínhamos muita saudade de ver o Timão”, diz Camila. Com um canguru
amarelo devidamente uniformizado que fez muito sucesso na Toyota, o
eletricista Alexandre Pantigas conta que convenceu o patrão em Sydney,
na Austrália, a liberá-lo do trabalho por uma semana. “Vim ajudar a
escrever mais uma parte da história do Corinthians e homenagear meu pai,
que também é doente por este time”, justifica.
Ricardo Nogueira/Folhapress
ATÉ DEBAIXO DA TERRA - Alegria dos brasileiros e espanto dos japoneses
na farra de quem atravessou o mundo e foi parar no quietíssimo metrô
japonês
Procedentes de toda parte, os torcedores corintianos nem bem
desembarcavam e já tinham feito um milhão de amigos com camisa, casaco
ou bandeira do time. “Quando desci em Narita me senti no aeroporto de
Cumbica, de tantos corintianos que havia por todos os lados”, diz o
estudante Ricardo Noryo, que veio de São Paulo. “Muita gente em Israel
me perguntou se eu não tinha medo de ir sozinho ao Japão. Eu sempre
respondia: vou ter pelo menos 20.000 amigos me esperando lá”, acrescenta
Menache. Eles estavam por toda parte, mesmo: no jogo do inglês Chelsea
com o mexicano Monterrey, quem mais fazia bagunça no estádio eram os
brasileiros.
A maior parte da legião corintiana planejou a viagem passo a passo, com
passagens, diárias de hotel e trechos terrestres pré-reservados. Muitos
se uniram a excursões como a “Vai Corinthians”, operada pela agência de
viagens CVC, que lançou pacotes de nove diárias de hotel e passagem
aérea por doze parcelas de 473 dólares. “Viajar para o Japão não fazia
parte dos meus planos. Mas depois da conquista da Libertadores cresceu a
minha vontade de participar de mais esta aventura. Além disso, agrado
minha mulher, que sempre teve curiosidade de conhecer esta parte da
Ásia”, diz o despachante Arcangelo Sforcin, veterano das invasões
corintianas: esteve no Maracanã em 1976, contra o Fluminense, pela
semifinal do Campeonato Brasileiro, e em 2000, no primeiro Campeonato
Mundial, na final contra o Vasco. Nem todo mundo, porém, planejou tudo
direitinho. Fazendo mais jus ainda à fama de loucos, muita gente chegou
ao Japão com dinheiro contado e dormiu em lan houses, para escapar do
frio intenso de dezembro. Outra dificuldade era entender os mapas,
sempre confusos e com os dizeres em japonês. Seria até mais se Aichi, a
província onde fica o estádio de Toyota, não concentrasse um terço dos
210 mil brasileiros que vivem no Japão. O serralheiro João Paulo Ribeiro
passou 18 horas sem saber onde estava, passando frio em uma estação de
trem próxima ao estádio, até ser resgatado por outro brasileiro radicado
na cidade, que o ajudou a achar o endereço da casa de amigos onde ia se
hospedar.
Lailson Santos
VÍRUS CORINTIANO - O infectologista Artur Timerman (aqui em foto feita
em São Paulo, antes do embarque) foi com o filho, netos, sobrinhos e
mulher para o Japão. “Assim que ganhamos a Libertadores prometi que
daria esse presente para toda a família”, diz
Haveria mais corintianos ainda nos estádios se os brasileiros que moram
no Japão não estivessem entre os mais afetados pela recessão econômica
que atinge o país. Ou não: o desempregado Jefferson Rezende, há sete
anos no Japão, usou parte da indenização que recebeu ao ser dispensado
para alugar uma suíte no mesmo hotel cinco estrelas em que a delegação
corintiana ficou hospedada em Nagoia, para ficar perto de seus ídolos.
Do quarto, Rezende distribuiu dicas para os torcedores brasileiros,
transmitidas via Skype para a emissora de rádio Livre Gaviões. “Achei
importante ajudar as pessoas a entender a cultura japonesa e não
arranjar confusão por aqui”, explica. “Os torcedores corintianos
estabelecidos no Japão funcionaram como um formidável colchão para
evitar atritos e mal-entendidos”, elogia o diplomata Alexandre Alvim
Ribeiro, secretário do consulado-geral do Brasil em Nagoia. “Deixamos
dois celulares de plantão para prestar assistência e não recebemos
nenhuma chamada”.
Ricardo Trida/Estadão Conteúdo
E QUANDO VOLTAREM? - Mais de 10.000 pessoas foram se despedir da
equipe no aeroporto de Cumbica — no início, muita festa. No final,
confusão das boas
Outras orientações podiam ser obtidas no “Guia do Torcedor”, um livreto
com 24 páginas e patrocínio de estatais como Banco do Brasil, Caixa
Econômica Federal e Petrobrás que, entre outras coisas, aconselhava os
brasileiros a “não batucar nos vagões do metrô” – local onde até atender
ao celular é mal visto. O conselho não foi seguido. “Houve muita cara
feia dos japoneses diante dos nossos gritos de guerra”, admite o
consultor de investimentos Ivan Alves, de São Paulo. Nos estádios, os
fiscais faziam de tudo para impedir que torcedores como o médico
Timerman e sua turma trocassem seus assentos por um lugar de pé junto ao
alambrado. “Insistiam para a gente sentar, mas não demos bola”, diz
ele. No dia da chegada do time a Nagoia, os torcedores transformaram o
saguão do hotel Hilton em arquibancada, com batucada, bandeiras e
pessoas pulando e entoando gritos e músicas. A segurança do hotel foi
acionada e, a certa altura, tentou confiscar as bandeiras. Aí, os ânimos
se exaltaram. “Avisamos que nelas ninguém tocaria”, disse Marcos
Fagundes, operário de uma fábrica de pneus na região. Para evitar novas
manifestações, a gerência do hotel colocou uma placa proibindo a entrada
de torcedores do Corinthians. Não foi respeitada, claro. Depois de uma
semana intensa, a torcida voltou para casa, com a alma lavada. Nem ela,
nem o Japão, vão se esquecer desta invasão.
Esta reportagem é parte integrante da edição especial de
VEJA e Placar sobre o título mundial corintiano, que você pode baixar
no IBA ou no tablet a partir da tarde deste domingo.
Nacho Doce/Reuters
TEVE PARA TODO MUNDO - No aeroporto paulistano, o aviso de quem se
preparava para vibrar com o time no Japão. A favela embarcou, mas os
condomínios de luxo também
Legal, Lages! Excelente percepção deste momento histórico para todo o Brasil. Forte e fraterno abraço.
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