Operação da PF revelou a venda indiscriminada de dados sigilosos. Em 2011, o mercado - legal e ilegal - de espionagem movimentou no país 1,7 bilhão de reais
Kamila Hage
Área de direito de família representa 41% do mercado nacional de espionagem
(Thinkstock)
A Operação Durkheim,
deflagrada pela Polícia Federal na última semana, lançou luz mais uma
vez sobre a venda indiscriminada de dados sigilosos no Brasil. A
quadrilha tinha braços em variados setores e faziam parte dela
policiais, funcionários de bancos e empresas telefônicas. As vítimas do
esquema podem chegar a 10 000 pessoas, entre as quais estavam o prefeito
Gilberto Kassab, um senador, um ex-ministro, dois desembargadores, um
banco, uma retransmissora de TV e inúmeros empresários, que tiveram seus
dados violados. Fundamentado na ilegalidade, esse mercado tornou-se
próspero para seus operadores e para interessados em devassar a vida e
os negócios alheios. Estudo da RCI - First Security and Intelligence
Advising, consultoria em inteligência e segurança, estima que o mercado
de espionagem tenha movimentado no Brasil 1,7 bilhão de reais em 2011. A
cifra inclui serviços de empresas e de profissionais, formalizados ou
não, e investimentos em equipamentos e contraespionagem.
Regulamentada desde 1957, mas livre de qualquer fiscalização, a
profissão de detetive particular abarca uma ampla gama de pessoas, nem
sempre éticas ou bem-intencionadas. Os desvios mais comuns são a
instalação de escutas telefônicas ilegais e a quebra de sigilo bancário,
obtidas com o suborno de funcionários de companhias de telefonia e de
instituições financeiras. “O clássico detetive particular vive sempre
numa linha tênue entre a legalidade e a ilegalidade. Se ele quiser
levantar dados de uma pessoa, dentro da legalidade, vai demorar muito
tempo, se é que vai conseguir”, afirma Ricardo Chilelli, especialista em
segurança e presidente da RCI.
Também é comum que ex-policiais e ex-membros de agências
governamentais, em virtude da acessibilidade a dados secretos, componham
o furtivo mercado de detetives particulares. A Operação Monte Carlo,
deflagrada pela Polícia Federal em fevereiro deste ano, revelou que o
bicheiro Carlinhos Cachoeira contava com ajuda de um araponga para
plantar grampos em pessoas do seu interesse. O ex-sargento da
Aeronáutica Idalberto Matias de Araújo, conhecido por Dadá, foi preso na operação, mas, em junho, conseguiu um habeas corpus e está em liberdade desde então.
A RCI existe há 22 anos e assessora 25 companhias brasileiras no setor da contraespionagem, para frear o vazamento de informações, principalmente das áreas de planejamento e marketing. “As empresas perdem com espionagem no Brasil de 1 bilhão de reais a 1,5 bilhão de reais”, diz Chilelli.
Pesquisa feita com 451 detetives particulares do Brasil aponta que a
área de direito de família representa 41% do mercado nacional. Dentro
desse nicho, lideram as demandas por suspeita de adultério. É o caso
clássico do desconfiado que coloca um espião para acompanhar a rotina do
cônjuge, para elucidar suas dúvidas. Mas, segundo Chilelli, os
escritórios de advocacia também vêm recorrendo aos artifícios da
espionagem. Eles têm contratado detetives para reunir dados que podem
ser usados em processos de separação ou de pensão alimentícia. “É uma
forma de descobrir o tipo de vida que o espionado leva e qual seu
verdadeiro potencial econômico”, afirma.
O mundo da espionagem abarca ainda um mercado de dossiês sobre os mais
variados temas e que servem, sobretudo, a empresas. A área está em
franca expansão e já representa 39% do mercado da espionagem. Na esfera
política, esses dossiês as vezes resultam em grandes escândalos, como o
que houve nas eleições presidenciais de 2010, com um documento elaborado
a partir da quebra de sigilo fiscal de Verônica Serra, filha do então
candidato à presidência José Serra (PSDB). Uma investigação da
Corregedoria da Receita Federal descobriu que os dados fiscais de
Verônica foram violados duas vezes – ambas em 2009.
Localização – Outros 10% dos serviços de espionagem
correspondem a pedidos de escritórios de advocacia, para a localização
de pessoas que constam como partes de processos judicias, mas estão
desaparecidas, o que atrasa o andamento da ação.
Apesar de alguns escritórios de advocacia terem como prática recorrer a
espiões, há um limite imposto pela lei. Se o serviço contratado
envolver alguma ação ilegal, como a quebra de sigilo, o advogado será
também responsabilizado pelo crime. O presidente do Tribunal de Ética da
seccional São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Carlos
Eduardo Fornes Mateucci, afirma que advogados que contratam serviços
ilícitos podem ser suspensos por até 120 dias. A punição pode chegar a
uma expulsão da OAB, se houver uma condenação judicial.
No passado, os detetives particulares eram remunerados por hora de
trabalho. Ou seja, quanto mais tempo demorassem em um caso, maior seria o
pagamento. Esse cenário mudou. Hoje, eles recebem por empreitada.
Assim, buscam o maior número possível de clientes e, portanto, a
agilidade se tornou crucial no novo sistema. Abre-se, para os maus
profissionais, uma brecha para a ilegalidade. Na prática, recursos como
as interceptações telefônicas são usados com frequência como atalhos.
A profissão na prática – A
profissão de detetive foi regulamentada em fevereiro de 1957, pela Lei
nº3.099. Contudo, não há órgãos fiscalizadores das atividades de
investigação particular. Os profissionais que escolheram o lado da
legalidade brigam pela aprovação do um projeto de lei no Congresso
Nacional que crie órgãos de controle. Doze documentos com esse propósito
estão em tramitação no Legislativo. A esperança está no PL nº1211, de
2011, que propõe a criação do Conselho Federal de Detetives do Brasil e
institui Conselhos Regionais. O texto aguarda a designação de um relator
na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara
dos Deputados. “Nossa expectativa é de que a proposta seja votada no
próximo ano”, diz Fernando Carvalho, presidente do Sindicato dos
Detetives Particulares do Estado de São Paulo (Sindesp).
Com quarenta anos de experiência na profissão de detetive particular,
Carvalho avalia o peso que uma investigação ilícita pode ter na vida de
uma pessoa. “Que autoridade eu tenho para quebrar o sigilo de quem quer
que seja? Nunca se sabe para que o cliente quer aquele dado, Será que é
para matar, torturar, sequestrar?”, diz. “Detetive tem que ter o pé no
chão. Não pode fazer o que quiser.”
Fabricio Dias, proprietário da agência Líder Detetives, está no mercado
há quatorze anos. “Existem outros caminhos para você conseguir a prova
sem ter que passar para o lado da ilegalidade”, afirma. “Um deles é
seguir a pessoa e fotografá-la.” A agência tem um corpo de quinze
profissionais, que trabalham como freelancers e são pagos por caso. Uma
investigação básica custa em média 4 000 reais. No pacote estão inclusas
imagens da pessoa seguida e escutas autorizadas, instaladas em casas e
automóveis. Os grampos só são considerados autorizados quando o dono da
residência ou do carro permite sua instalação. Assim, o mecanismo é
muito usado para investigar adultérios, já que o contratante mora na
mesma casa do investigado. Apurar uma traição conjugar leva, em média,
de cinco a dez dias.
Atuar dentro da lei, no entanto, custa clientes às agências
especializadas. Fabricio Dias conta ter perdido trabalhos para outras
empresas por não oferecer serviços ilegais. “Se o cliente pede, e o
detetive fala que é crime, a pessoa simplesmente vai procurar alguém que
faça esse trabalho, pois há oferta no mercado.”
Vale lembrar: instalar escuta telefônica não autorizada judicialmente é
crime previsto em legislação ordinária de 1996. A pena para a violação é
de dois a quatro anos de reclusão. Já a quebra do sigilo bancário é
ilegal de acordo com lei complementar de 2001, com pena prevista de um a
quatro anos de reclusão. Se provado qualquer um dos crimes, a vítima
ainda pode processar o culpado por danos morais com pedido de
indenização, pois a inviolabilidade da intimidade é um direito garantido
pela Constituição Federal.
Contraespionagem – Do outro lado do balcão, há a
contraespionagem, a defesa de informações sigilosas. Com medo do impacto
econômico que o vazamento de um dado pode gerar, muitas companhias
contratam consultorias para neutralizar a venda de dados sigilosos.
Essas empresas contam com uma gama abundante de equipamentos que
identificam câmeras de vídeo, microfones e outros artifícios
tecnológicos usados no mercado da espionagem. “A cada dez vezes que me
chamam para verificar se existem grampos em uma empresa, em seis eu
encontro alguma coisa”, afirma Ricardo Chilelli, que atua no setor.
Da cifra de 1,7 bilhão de reais que o mercado da espionagem movimentou
em 2011 no Brasil, pelo menos 543 milhões foram gastos em
contraespionagem. As companhias não economizam na proteção de suas
informações e usam recursos cinematográficos para isso. Um deles é a
“sala antigrampo”. No Brasil há 286 salas desse tipo, que custam de 75
000 a 500 000 dólares. Elas não possuem janelas e são equipadas com
apetrechos capazes de identificar qualquer atividade eletromagnética.
Não é possível usar gravador, celular ou microfone dentro do ambiente.
Esse tipo de cômodo é usado por empresários para reuniões que envolvem
negociações secretas ou, por vezes, escusas.
A maior parte das salas antigrampo está em Brasília. “As empresas
montam o que chamam de “escritório de relações governamentais” na
capital federal, onde são instaladas essas salas. A função é criar
ambientes seguros para fazer o famoso lobby”, afirma Chilelli.
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