Os transtornos recentes justificam essa preocupação, embora o governo nem sequer admita o termo apagão para definir grandes blecautes, por entender que a escassez energética está superada. O fato é que sucessivas falhas na distribuição e, sobretudo, na transmissão estão deixando cada vez mais brasileiros no prejuízo. Este ano, o consumidor deverá ficar 20 horas sem luz, superando a marca de 18,82 horas de 2009 e bem acima da média histórica de 16 horas. "O que mais impressiona é que um único raio ou parafuso defeituoso pode deixar 60 milhões de pessoas no escuro por horas seguidas", diz Célio Bermann, do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da Universidade de São Paulo (USP).
O professor lembra que a "robustez" do Sistema Interligado Nacional (SIN), realçada pelo governo a cada grande corte de eletricidade, também é fonte de sua maior fraqueza, evidenciada no efeito dominó que ocorre a cada problema na rede. Instituído em 1976, o SIN tem por objetivo garantir aproveitamento máximo do potencial elétrico, já que, pelas dimensões continentais do Brasil, as usinas são insuficientes para abastecer cada região de forma completa, barata, segura e independente. Amapá e Amazonas serão os últimos estados a aderir ao Sistema Interligado, em 2012. A vantagem da cobertura nacional esbarra, contudo, em episódios pontuais que ganham proporção gigantesca.
A urgência de investir no reforço da segurança da malha, na troca de materiais e na tecnologia do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), gestor do sistema, é evidente, diz Bermann. Ele vê ainda lentidão e pouca transparência na apuração dos apagões ocorridos, além de esvaziamento político e orçamentário da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). "Ao contrário de 2001, quando o problema era de oferta, hoje falta qualidade na transmissão e distribuição", resume. Procuradas, Aneel, ONS e Associação Brasileira das Empresas de Transmissão (Abrate) preferiram não comentar o tema.
Sucateamento
"O governo Lula encarou o desafio de pôr fim a apagões só no lado da oferta. O resultado disso é que nossa fiscalização e regulação são de terceira categoria", reclama Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infraestrutura (Cbie). Ele reconhece que os investimentos no setor, previstos pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), são expressivos, "mas concentrados em novas linhas". Enquanto isso, os cortes de energia refletem problemas nas redes sucateadas. "Assim, chegaremos ao modelo angolano, no qual quem pode adquire gerador para se preservar", provoca.
Descontados os exageros, a rotina de interrupções nas grandes cidades mostra que essa realidade parece estar próxima. Em Brasília, cerca de 500 geradores a diesel estão em atividade para dar suporte a shoppings, hospitais, hotéis e grandes eventos públicos. Na capital federal, sete grandes empresas oferecem equipamentos desse tipo ao lado de 20 concorrentes menores. "Em regiões como Park Way e Lago Sul, cortes prolongados de luz causados por danos na distribuição são constantes, sobretudo no período de chuvas", conta Felipe Venâncio Soares, empresário de locação de energia auxiliar.
No resto do país, a situação é semelhante. Só em 15 dias de julho, quatro apagões deixaram 700 mil pessoas sem luz na capital paulista. No mês seguinte, 360 mil enfrentaram dificuldade parecida no Rio, com caos no trânsito e outros prejuízos. Também em agosto, a região metropolitana de Maceió sofreu por quase uma hora em razão de um defeito numa subestação. Em Brasília, um blecaute deixou o Congresso e a Esplanada dos Ministérios sem luz. Mas o pior ainda estava por vir: no último 2, um apagão afetou 14 estados, superando fevereiro, quando oito estados nordestinos ficaram no escuro.
Burocracia
Especialistas reconhecem a complexidade do sistema, mas acham que as autoridades poderiam ter um retrato mais claro das dificuldades. O próprio Ministério de Minas e Energia admite a burocracia para apurar e corrigir causas de apagões. Por meio de sua assessoria, o ministro Edison Lobão diz que perturbações no SIN são identificadas apenas conforme um regulamento do ONS. Para a elaboração de um relatório, com indicação de responsáveis, providências e recomendações é preciso, primeiro, verificar se os parâmetros conferem. Só então a falha se torna objeto de "criteriosa análise" e o órgão convoca uma reunião com o ministério, a Aneel e os agentes envolvidos para uma "avaliação conjunta".
Na última terça-feira, em uma dessas reuniões do ONS, Furnas negou responsabilidade sobre o grande apagão deste mês. A explosão do reator de uma das três linhas de transmissão da usina de Itaipu levou o operador a desligar o sistema. A dúvida é saber por que a linha não foi imediatamente desligada após o pedido de Furnas — o que evitaria o acidente. "Isso prova a má gestão do SIN", frisa Bermann.
A piora do cenário também é sustentada pela ligação, a cada ano, de 2 milhões de novos consumidores, e pela piora das condições atmosféricas que atingem a fiação aérea exposta a ventos, chuvas e raios cada vez mais frequentes e intensos. "Não existe mágica. As tarifas não são capazes de cobrir despesas com expansão, outros investimentos e ainda financiar a mudança necessária da rede de distribuição, rumo a um perfil mais seguro", lamenta Nelson Fonseca, presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee).
Enquanto não chega um evento de escala do nível de 2009, que deixou no escuro um terço do país, o maior receio está mesmo na frequência crescente de cortes e na possibilidade de alta no preço da tarifa. Cálculos do Instituto Acende Brasil mostram que o peso dos tributos da União na conta de energia dobrou nos últimos oito anos: em 2002, era 7%; agora, chega a 14%. Somados os encargos setoriais e sociais recolhidos pelo governo federal e o ICMS estadual, a carga tributária chega a 50% da conta de luz.
Desafio para governo e empresas
Especialistas ressaltam que investimentos até reduzem riscos de apagões e permitem restabelecimento mais rápido. Mas lembram que a melhora da confiabilidade do Sistema Interligado Nacional (SIN) requer esforço de todas as concessionárias. A Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee) afirma que o impacto das mudanças climáticas nas próximas décadas sobre as redes de transmissão e distribuição é um desafio a ser compartilhado entre governo e empresas. A entidade propôs à Aneel parceria para desenvolver novo padrão de distribuição. Com a impossibilidade de transformar toda a rede em subterrânea, dez vezes mais cara e recomendada para as áreas urbanas mais populosas, a alternativa seria reforçar a proteção de fios e equipamentos expostos.
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