A maior paralisação de servidores federais da
história impede que remédios cheguem aos hospitais, afrouxa a segurança
nas fronteiras e gera prejuízo de R$ 1 bilhão. Saiba como atuam, quanto
ganham e os planos dos líderes do movimento
Claudio Dantas Sequeira e Adriana Nicacio

Nos últimos três meses, o País vem enfrentando uma onda de greves que
paralisa boa parte dos serviços públicos federais. Na contabilidade dos
grevistas, 350 mil trabalhadores já cruzaram os braços – na sexta-feira
24, estimava-se que 200 mil permaneciam sem dar expediente – para
reivindicar principalmente aumento salarial, no que já é considerada a
maior greve da história do serviço público brasileiro. Nem as
paralisações na gestão Fernando Henrique Cardoso, as mobilizações no
início do primeiro mandato de Lula e protestos setorizados, como os de
controladores de voo em 2006, se comparam ao movimente atual, seja em
duração, grau de planejamento e senso de oportunidade – ou oportunismo.
A greve que começou pequena em maio, com professores universitários,
logo absorveu os servidores administrativos das universidades e, em
poucas semanas, abarcou dezenas de categorias. No fim de junho, quando
aderiram à onda os funcionários das agências reguladoras, da Polícia
Federal e da Polícia Rodoviária Federal, além dos auditores fiscais, o
governo se deparou com uma situação dramática. A greve atingiu serviços
fundamentais e estratégicos, como a aduana, a vigilância sanitária e a
segurança de fronteiras. O prejuízo até agora ultrapassa R$ 1 bilhão,
mas os danos sociais são incalculáveis.
Um exemplo dessas perdas está na retenção de mercadorias no Porto de
Santos. Os funcionários da Anvisa impediram que milhares de remédios
essenciais contra o câncer e reagentes para o diagnóstico da gripe H1N1
chegassem aos hospitais. A escassez de kits sorológicos também obrigou
alguns hospitais públicos a descartar milhares de bolsas de sangue que
perderam a validade. Em outro efeito colateral do movimento grevista, a
suspensão da fiscalização em rodovias e aeroportos serviu como espécie
de sinal verde ao crime organizado. Na terça-feira 21, policiais
rodoviários afixaram na Ponte da Amizade, em Foz do Iguaçu (PR), uma
placa com a frase: “Passagem livre para tráfico de drogas e armas.”
Dentro do governo, a ação foi interpretada como um perigoso sinal de
radicalização.
O radicalismo como instrumento de negociação se tornou a principal
marca do atual movimento grevista, que vem sendo conduzido por uma
associação entre antigas lideranças do funcionalismo com uma nova
geração de sindicalistas. Várias dessas estrelas emergentes têm pouca ou
nenhuma tradição na luta sindical. Raramente saem de seus gabinetes
para negociar e, por seus altos salários e perfil empresarial, ganharam
da presidenta Dilma Rousseff a alcunha de “grevistas de sangue azul”.
Esse grupo é considerado a elite do funcionalismo público, com salários
de R$ 10 mil a R$ 25 mil, altamente qualificado, com cursos de
pós-graduação, mestrado e até doutorado. Alguns sindicalistas andam de
carro importado e usam as redes sociais da internet para definir
estratégias de ação. Lideranças tradicionais, insatisfeitas com os
controles de gastos e a estabilização no número de servidores do
Executivo, aceitaram colocar-se a reboque da turma de “sangue azul”.
Dessa maneira, tentam deter avanços que o governo vem implementando na
gestão do funcionalismo público. A criação de fundos de pensão que
reduzem privilégios de algumas castas de servidores foi tão mal recebida
pelos sindicalistas quanto a legislação sobre transparência pública,
que expôs os vencimentos de cada um deles.
SEM TRABALHAR
Servidores federais, de diversas áreas do governo, durante protesto
em São Paulo: serviços essenciais à população foram afetados
Um dos principais líderes do grupo dos novos nobres grevistas
chama-se Pedro Delarue Tolentino Filho, presidente do Sindifisco e
representante da chamada União das Carreiras de Estado, que reúne as 22
categorias mais bem remuneradas do Executivo, entre elas Banco Central,
gestores públicos, CVM e Itamaraty. Com 54 anos, o auditor fiscal é
formado em economia e ganha R$ 19,4 mil por mês. Em junho, embolsou R$
23 mil, em virtude de gratificações. Mora na elegante Barra da Tijuca,
no Rio Janeiro, sua mulher trabalha na iniciativa privada e a filha
estuda em colégio particular. Delarue entrou para o sindicalismo na
década de 1990 e rapidamente alcançou postos de comando no Sindifisco,
cuja presidência ele assumiu em 2007. O sindicalista não se preocupa com
o rótulo de sangue azul, diz que os auditores “não são apenas a elite
do serviço público, mas do País”, e revela detalhes do planejamento da
greve. “Decidimos no ano passado que não aceitaríamos mais enrolação do
governo.”
Outros líderes grevistas de “sangue azul” são Álvaro Sólon de França,
que preside a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita
Federal (Anfip), e Wilson Roberto de Sá, do Sindicado Nacional dos
Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical). Sólon tem salário bruto
de R$ 21,5 mil e, com gratificações, o valor alcança mensalmente R$
25,2 mil. Roberto de Sá, por sua vez, recebe R$ 18 mil, que sobem para
R$ 21,4 mil com os benefícios. Morador de São Gonçalo, no Rio, passa a
semana em Brasília, onde aluga uma quitinete e malha numa badalada
academia. Também estão nesse grupo os presidentes da Associação Nacional
dos Delegados da Polícia Federal (ADPF), Marcos Leôncio Souza Ribeiro,
da Associação Nacional dos Servidores Efetivos das Agências Reguladoras
(Aner), Paulo Rodrigues Mendes, e da Federação Nacional dos Policiais
Rodoviários, Pedro da Silva Cavalcanti. Ribeiro ganha R$ 17,5 mil e
Mendes, R$ 13,2 mil – até 2005, seu salário era de R$ 3,5 mil. Já
Cavalcanti retira R$ 13 mil mensalmente, com gratificação inclusa,
frequenta uma academia da Asa Sul e mora num bairro nobre do Recife.
Para esses servidores, o sindicalismo está longe de ser uma atividade
política. Alguns são até filiados a partidos, como o PT e PSB, mas não
militam. A ausência de um conteúdo político nas manifestações é outra
característica desse novo sindicalismo, que busca, acima de tudo,
resultados financeiros.
Todo o planejamento do atual movimento grevista obedeceu a princípios
comuns da iniciativa privada. O financiamento das atividades foi
pensado com antecedência. Delarue, do Sindifisco, criou duas novas
contribuições só para bancar o projeto de greve. Por seis meses, os
filiados contribuíram com 0,1% do salário para um fundo de mobilizações e
0,6% para o fundo de greve. Foram recolhidos R$ 17 milhões, que estão
sendo usados para pagar os salários de quem teve o ponto cortado pelo
Executivo. Os fiscais agropecuários reunidos na Anffa também tiveram de
dar uma contribuição a mais. Nos últimos 11 meses, todos os servidores
recolhem 10% de seus salários para um fundo de emergência. Em maio e
junho, quando o movimento esquentou, esse percentual dobrou. Hoje, a
associação tem um caixa de R$ 9 milhões para enfrentar o governo. Em
agosto, 11.495 grevistas de todas as categorias sofreram baixas em seu
contracheque.
PARADOS
Policiais federais (acima) no anúncio da operação-padrão
AMEAÇA
Em posto da Polícia Rodoviária, faixa diz passagem livre para tráfico de drogas e armas
Com esse dinheiro, as lideranças sindicais esperam manter os
protestos mesmo depois de 31 de agosto, prazo limite para o Ministério
do Planejamento fechar o orçamento de 2013. Lideranças ouvidas por ISTOÉ
estimam entre R$ 100 mil e R$ 450 mil o custo mensal para manter a
mobilização, com gastos de pessoal, material de panfletagem,
acampamentos e publicidade em rádios e tevês. Uma assembleia nos dias 1o
e 2 de setembro definirá os rumos da greve, mas já há previsão de
paralisação para 11, 12 e 13 do mesmo mês. Segundo os dirigentes
sindicais, mesmo sem perspectivas de reajuste imediato, a pressão vai
continuar, e a segurança dos grandes eventos virou elemento de barganha
nesse processo. “Até agora foram feitas paralisações pontuais”, diz o
delegado Marcos Leôncio Ribeiro, da ADPF. “Mas teremos a Copa das
Confederações, a Copa do Mundo e a Olimpíada.” Delarue reforça o poder
dos grevistas. “Não temos dificuldade em organizar novas
operações-padrão e paralisações.”
De parte do governo, a tendência também é o endurecimento. “Quem não
aceitar o reajuste de 15,8% não terá nada”, afirma um assessor da
Presidência. Para as categorias que aceitarem o acordo, novas
negociações só poderão ocorrer em 2016. Pensando nisso, o governo
fracionou o reajuste nos próximos três anos. Outra estratégia para
enfraquecer os grevistas é levantar as fragilidades de cada categoria,
para uma negociação individual posterior. Na busca por informações, o
Palácio do Planalto infiltrou agentes da ABIN, da P2 (Polícia Militar) e
do Exército nas assembleias e acampamentos. Também determinou o
monitoramento das principais lideranças. “Brasília virou uma praça de
guerra de arapongagem”, revela um agente. Francisco Sabino,
vice-presidente da Fenapef, que reúne os agentes da PF, confirma que
descobriu arapongas oficiais infiltrados em reuniões de sua entidade.
“Estão nos acompanhando em quase todos os Estados.” Para burlar a
espionagem, Sabino diz que seus colegas têm optado por se comunicar por
rádio e evitado fazer reservas em hotéis ou comprar passagens com
antecedência.
A motivação para manter os servidores mobilizados após o dia 31 tem a
ver também com demandas que vão além da questão salarial, como
reestruturação de carreira, equiparação salarial, definição de 1º de
maio como data-base e uma política de reposição inflacionária, que será
embutida na discussão sobre a regulamentação das greves de servidores.
“A grande diferença dessa mobilização para as anteriores é que
conseguimos unificar uma pauta geral, então o governo não tem como nos
dividir e enfraquecer”, afirma Josemilton da Costa, presidente da
Confederação dos Trabalhadores do Serviço Público Federal (Condsef). A
entidade reúne o maior número de servidores públicos, cerca de 1,2
milhão, chamados de “carreirão”, normalmente com salários mais baixos. O
próprio Josemilton, que uniu seu movimento ao dos de sangue azul, ganha
pouco mais de R$ 3,2 mil como agente administrativo do Ministério da
Fazenda. Tem hábitos franciscanos, mora numa quitinete em Copacabana e
despacha de um gabinete sem ar-condicionado.
Diferenças salariais à parte, Josemilton demonstra estar afinado com a
estratégia de radicalização dos demais líderes grevistas. “Quem elegeu
Dilma foram os mesmos movimentos sociais que elegeram Lula”, diz. “A
resistência em negociar pode levá-la ao isolamento. É um preço alto a
pagar.” A opinião do sindicalista é compartilhada pela psicóloga
Marinalva Barbosa, presidente da Associação Nacional dos Docentes do
Ensino Superior (Andes), principal entidade dos professores federais –
de 59 universidades, 57 paralisaram suas atividades, assim como 33 dos
38 institutos tecnológicos. “O governo não sabe negociar”, diz. Com 47
anos e doutorado na USP, ela recebe R$ 11 mil como professora associada
na Universidade Federal do Amapá. Para os sindicalistas, falta jogo de
cintura por parte do governo. Estão insatisfeitos com o diálogo com o
ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência, e o
secretário de Relações de Trabalho do Ministério do Planejamento, Sérgio
Mendonça. Interlocutor oficial do governo com os representantes dos
servidores, a agenda de Mendonça registra 180 reuniões desde março,
numa média de duas horas para cada encontro. Para o presidente da CUT,
Vagner Freitas, a falta de uma saída é reflexo do esgotamento de um
modelo de negociação. “É preciso negociar com antecedência”, afirma.
“Não adianta deixar para última hora.” Enquanto o impasse não termina,
milhões de brasileiros continuam sofrendo os efeitos perversos do
movimento grevista. Reivindicar melhores salários é legítimo, o que não é
certo é deixar um País inteiro refém do movimento.


Com reportagem Alan Rodrigues e Pedro Marcondes de Moura