A maior paralisação de servidores federais da história impede que remédios cheguem aos hospitais, afrouxa a segurança nas fronteiras e gera prejuízo de R$ 1 bilhão. Saiba como atuam, quanto ganham e os planos dos líderes do movimento
Claudio Dantas Sequeira e Adriana NicacioUm exemplo dessas perdas está na retenção de mercadorias no Porto de Santos. Os funcionários da Anvisa impediram que milhares de remédios essenciais contra o câncer e reagentes para o diagnóstico da gripe H1N1 chegassem aos hospitais. A escassez de kits sorológicos também obrigou alguns hospitais públicos a descartar milhares de bolsas de sangue que perderam a validade. Em outro efeito colateral do movimento grevista, a suspensão da fiscalização em rodovias e aeroportos serviu como espécie de sinal verde ao crime organizado. Na terça-feira 21, policiais rodoviários afixaram na Ponte da Amizade, em Foz do Iguaçu (PR), uma placa com a frase: “Passagem livre para tráfico de drogas e armas.” Dentro do governo, a ação foi interpretada como um perigoso sinal de radicalização.
O radicalismo como instrumento de negociação se tornou a principal marca do atual movimento grevista, que vem sendo conduzido por uma associação entre antigas lideranças do funcionalismo com uma nova geração de sindicalistas. Várias dessas estrelas emergentes têm pouca ou nenhuma tradição na luta sindical. Raramente saem de seus gabinetes para negociar e, por seus altos salários e perfil empresarial, ganharam da presidenta Dilma Rousseff a alcunha de “grevistas de sangue azul”. Esse grupo é considerado a elite do funcionalismo público, com salários de R$ 10 mil a R$ 25 mil, altamente qualificado, com cursos de pós-graduação, mestrado e até doutorado. Alguns sindicalistas andam de carro importado e usam as redes sociais da internet para definir estratégias de ação. Lideranças tradicionais, insatisfeitas com os controles de gastos e a estabilização no número de servidores do Executivo, aceitaram colocar-se a reboque da turma de “sangue azul”. Dessa maneira, tentam deter avanços que o governo vem implementando na gestão do funcionalismo público. A criação de fundos de pensão que reduzem privilégios de algumas castas de servidores foi tão mal recebida pelos sindicalistas quanto a legislação sobre transparência pública, que expôs os vencimentos de cada um deles.
SEM TRABALHAR
Servidores federais, de diversas áreas do governo, durante protesto
em São Paulo: serviços essenciais à população foram afetados
Outros líderes grevistas de “sangue azul” são Álvaro Sólon de França, que preside a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip), e Wilson Roberto de Sá, do Sindicado Nacional dos Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical). Sólon tem salário bruto de R$ 21,5 mil e, com gratificações, o valor alcança mensalmente R$ 25,2 mil. Roberto de Sá, por sua vez, recebe R$ 18 mil, que sobem para R$ 21,4 mil com os benefícios. Morador de São Gonçalo, no Rio, passa a semana em Brasília, onde aluga uma quitinete e malha numa badalada academia. Também estão nesse grupo os presidentes da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (ADPF), Marcos Leôncio Souza Ribeiro, da Associação Nacional dos Servidores Efetivos das Agências Reguladoras (Aner), Paulo Rodrigues Mendes, e da Federação Nacional dos Policiais Rodoviários, Pedro da Silva Cavalcanti. Ribeiro ganha R$ 17,5 mil e Mendes, R$ 13,2 mil – até 2005, seu salário era de R$ 3,5 mil. Já Cavalcanti retira R$ 13 mil mensalmente, com gratificação inclusa, frequenta uma academia da Asa Sul e mora num bairro nobre do Recife. Para esses servidores, o sindicalismo está longe de ser uma atividade política. Alguns são até filiados a partidos, como o PT e PSB, mas não militam. A ausência de um conteúdo político nas manifestações é outra característica desse novo sindicalismo, que busca, acima de tudo, resultados financeiros.
Todo o planejamento do atual movimento grevista obedeceu a princípios comuns da iniciativa privada. O financiamento das atividades foi pensado com antecedência. Delarue, do Sindifisco, criou duas novas contribuições só para bancar o projeto de greve. Por seis meses, os filiados contribuíram com 0,1% do salário para um fundo de mobilizações e 0,6% para o fundo de greve. Foram recolhidos R$ 17 milhões, que estão sendo usados para pagar os salários de quem teve o ponto cortado pelo Executivo. Os fiscais agropecuários reunidos na Anffa também tiveram de dar uma contribuição a mais. Nos últimos 11 meses, todos os servidores recolhem 10% de seus salários para um fundo de emergência. Em maio e junho, quando o movimento esquentou, esse percentual dobrou. Hoje, a associação tem um caixa de R$ 9 milhões para enfrentar o governo. Em agosto, 11.495 grevistas de todas as categorias sofreram baixas em seu contracheque.
PARADOS
Policiais federais (acima) no anúncio da operação-padrão
AMEAÇA
Em posto da Polícia Rodoviária, faixa diz passagem livre para tráfico de drogas e armas
De parte do governo, a tendência também é o endurecimento. “Quem não aceitar o reajuste de 15,8% não terá nada”, afirma um assessor da Presidência. Para as categorias que aceitarem o acordo, novas negociações só poderão ocorrer em 2016. Pensando nisso, o governo fracionou o reajuste nos próximos três anos. Outra estratégia para enfraquecer os grevistas é levantar as fragilidades de cada categoria, para uma negociação individual posterior. Na busca por informações, o Palácio do Planalto infiltrou agentes da ABIN, da P2 (Polícia Militar) e do Exército nas assembleias e acampamentos. Também determinou o monitoramento das principais lideranças. “Brasília virou uma praça de guerra de arapongagem”, revela um agente. Francisco Sabino, vice-presidente da Fenapef, que reúne os agentes da PF, confirma que descobriu arapongas oficiais infiltrados em reuniões de sua entidade. “Estão nos acompanhando em quase todos os Estados.” Para burlar a espionagem, Sabino diz que seus colegas têm optado por se comunicar por rádio e evitado fazer reservas em hotéis ou comprar passagens com antecedência.
A motivação para manter os servidores mobilizados após o dia 31 tem a ver também com demandas que vão além da questão salarial, como reestruturação de carreira, equiparação salarial, definição de 1º de maio como data-base e uma política de reposição inflacionária, que será embutida na discussão sobre a regulamentação das greves de servidores. “A grande diferença dessa mobilização para as anteriores é que conseguimos unificar uma pauta geral, então o governo não tem como nos dividir e enfraquecer”, afirma Josemilton da Costa, presidente da Confederação dos Trabalhadores do Serviço Público Federal (Condsef). A entidade reúne o maior número de servidores públicos, cerca de 1,2 milhão, chamados de “carreirão”, normalmente com salários mais baixos. O próprio Josemilton, que uniu seu movimento ao dos de sangue azul, ganha pouco mais de R$ 3,2 mil como agente administrativo do Ministério da Fazenda. Tem hábitos franciscanos, mora numa quitinete em Copacabana e despacha de um gabinete sem ar-condicionado.
Diferenças salariais à parte, Josemilton demonstra estar afinado com a estratégia de radicalização dos demais líderes grevistas. “Quem elegeu Dilma foram os mesmos movimentos sociais que elegeram Lula”, diz. “A resistência em negociar pode levá-la ao isolamento. É um preço alto a pagar.” A opinião do sindicalista é compartilhada pela psicóloga Marinalva Barbosa, presidente da Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes), principal entidade dos professores federais – de 59 universidades, 57 paralisaram suas atividades, assim como 33 dos 38 institutos tecnológicos. “O governo não sabe negociar”, diz. Com 47 anos e doutorado na USP, ela recebe R$ 11 mil como professora associada na Universidade Federal do Amapá. Para os sindicalistas, falta jogo de cintura por parte do governo. Estão insatisfeitos com o diálogo com o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência, e o secretário de Relações de Trabalho do Ministério do Planejamento, Sérgio Mendonça. Interlocutor oficial do governo com os representantes dos servidores, a agenda de Mendonça registra 180 reuniões desde março, numa média de duas horas para cada encontro. Para o presidente da CUT, Vagner Freitas, a falta de uma saída é reflexo do esgotamento de um modelo de negociação. “É preciso negociar com antecedência”, afirma. “Não adianta deixar para última hora.” Enquanto o impasse não termina, milhões de brasileiros continuam sofrendo os efeitos perversos do movimento grevista. Reivindicar melhores salários é legítimo, o que não é certo é deixar um País inteiro refém do movimento.
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