Centenas ou milhares de pessoas não existem oficialmente. Não há pesquisas que comprovem quem são eles
Sem
a certidão de nascimento, uma pessoa, oficialmente, não tem nome,
sobrenome e nacionalidade, portanto, não aparece para o Estado. Só com o
documento, pode-se fazer matrícula escolar, realizar casamento civil,
registrar filhos, ter acesso à saúde, participar de programas sociais ou
qualquer outra ação cidadã. No Brasil, não é possível mensurar a
quantidade de pessoas adultas sem a documentação, pois elas são
"invisíveis" aos olhos da cidadania.
Vivendo
às escuras, sem destino, sem futuro, sem garantia nenhuma, muitos
cearenses ficam à margem da sociedade sem certidão de nascimento. A
ausência do documento os torna invisíveis para a cidadania e para a lei
Fotos: Kid júnior
Não se sabe ao certo quem são, onde estão,
nem o que fazem. Até nas pesquisas não aparecem. Isto porque o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentou, no
Censo 2010, estatísticas apenas com crianças de zero a dez anos.
Nelas,
o Ceará ocupa a 6ª colocação no ranking nacional com 9.866 crianças sem
certidão de nascimento. Fortaleza aparece na 2ª posição com 2.603
meninos e meninas que não possuem o documento. Entretanto, basta fazer
uma visita a associação de um bairro da periferia da Capital para lotar
uma sala com pessoas que "não existem". Eles contam histórias e desejam
exercer o seu direito de ser cidadão um dia.
O catador de lixo
Ricardo Teixeira da Silva, 44 anos, morador do bairro Jangurussu, nunca
sentou em um banco de escola, nem foi atendido em um hospital. Viajar?
Somente acompanhado da esposa e com muito sacrifício. Ele nunca votou,
não trabalha de carteira assinada e não tem conta bancária. Uma vida
invisível ao olhos da sociedade, da lei e da cidadania, sem direito de
ser gente, simplesmente, pela ausência de um documento fundamental para a
vida chamado: certidão de nascimento.
Vulnerabilidade
Aos
nove anos de idade, ele perdeu a mãe e foi então que começou o seu
sofrimento. Sem documento, vivia sem destino e ganhando dinheiro por
meio de trabalhos temporários. Conheceu sua companheira e teve sete
filhos, nenhum tem o seu nome na certidão. Hoje, depois de quatro
décadas, tenta adquirir o documento, mas com dificuldade.
Por
determinação da Defensoria Pública do Estado, Ricardo precisou ir a 11
cartórios da Capital em busca do registro de nascimento. Sem dinheiro
para o ônibus, muitas vezes, o trajeto foi feito de bicicleta. Mas, em
dez cartórios recebeu uma certidão negativa informando que seu nome não
constava. Agora, aguarda a resposta do último cartório para saber se ele
de fato existe.
"É muito humilhante viver assim, eu não me sinto
gente, não tenho direito a nada. Meu maior sonho é um dia poder ter um
emprego de carteira assinada".
A Barra do Ceará, bairro onde o
IBGE identificou o maior número de crianças sem certidão de nascimento
no Censo 2010, ao todo 117, reflete um pouco o descaso do governo e a
falta de informação, aliados à vulnerabilidade social.
Sem
poder estudar, trabalhar com carteira assinada, ter acesso a hospitais
ou viajar, Ricardo Teixeira vive há 44 anos como um fantasma. Há cerca
de seis meses, peregrina entre os cartórios e enfrenta dificuldades em
busca de sua cidadania
Segundo Valdecir Paiva, conselheiro
tutelar e presidente da Associação dos Amigos no Combate a Exclusão
Social da Barra do Ceará, a maioria das crianças não possue o registro
de nascimento em consequência da ausência do documento dos pais.
Conforme explica, muitas famílias provêm de pequenos municípios do
Interior do Estado em busca de sobrevivência na Capital, sem nenhum
documento e, grande parte, não têm ideia dos locais onde foram
registrados. "Hoje, o nível de adolescentes sem documento de nascimento é
bastante alto. Muitos deles são filhos de pessoas que não sabem onde e
nem se foram registrados. Sonhando em conquistar uma vida melhor e mais
digna, chegam a Fortaleza e encontram um bairro sem apoio", reflete
Valdecir Paiva.
Desafios
O conselheiro
tutelar afirma que outra problemática é a burocracia exigida pelos
cartórios e a falta de integração entre eles. Ele explica que é preciso
buscar certidões negativas em diversos cartórios, o que gera um custo
alto para aqueles que precisam e não têm como pagar por esses
deslocamentos.
"Há casos onde o cartório do município nem existe
mais e o indivíduo permanece alheio à sua cidadania. Além disso, o custo
financeiro para realizar essa pesquisa é muito alto. Para ajudar, nós,
do Conselho Tutelar, mandamos uma solicitação via Correio para os
cartórios, mas a demora de retorno é enorme".
Outra situação
grave aparece, segundo Valdeci, entre os moradores de rua, os quais em
sua maioria, são usuários de drogas e não identificam onde estão seus
parentes. "Temos um problema enorme com vulnerabilidade social do bairro
em paralelo a isso somos neutralizados pela burocracia e não temos uma
resposta rápida dos cartórios. Deveria existir um banco de dados digital
que integrasse todos os cartórios e um órgão público para administrar
tudo isso", ressalta Valdecir.
Falta política integrada
Para
Fernando Férrer, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem
dos Advogados do Brasil Secção Ceará (OAB-CE), o registro de nascimento é
a coisa mais importante após a vida, pois é o titulo fundamental que
garante a cidadania. Segundo o advogado, a falta de vontade política,
aliada à ausência de informação e educação deixam as pessoas
impossibilitadas de exercerem os seus direitos.
De acordo com
ele, uma solução prática e viável seria o governo federal estabelecer
uma meta para sanar o problema e, depois desse prazo extrapolado, os
órgãos públicos e os cartórios deveriam ser punidos. "Devemos fazer
mutirões com participação da Defensoria Pública e demais órgãos. Além
disso, a disponibilidade e agilidade dos cartórios são fundamentais para
que o processo se concretize. O Estado deveria ter um órgão responsável
para realizar esse serviço, só assim seria possível dar oportunidade à
cidadania".
Desejo"É muito humilhante viver assim. Eu não me sinto gente. Meu maior sonho é ter um emprego com carteira assinada"
Ricardo Teixeira
Catador de lixoDesassistidas2,6
mil crianças, em Fortaleza, foram identificadas no Censo 2010, do IBGE,
sem o registro de nascimento. A Capital é a 2ª do País com pessoas
neste perfil
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Onde está o hiato entre direitos e acessos?Mariana Dionísio
Coordenadora do Curso de Direito da Unifor
A
cidadania constitui força conducente do exercício da liberdade e
manifestação de vontade do indivíduo. Entretanto, essa cidadania, em
termos práticos, tem encontrado barreiras sociais que impedem sua plena
concretização, afetando, diretamente, o exercício dos direitos humanos.
Uma das necessidades básicas do indivíduo, o registro civil de
nascimento, ainda não é uma realidade para muitos, em especial, no
contexto de vulnerabilidade social e analfabetismo observado em áreas
periféricas de Fortaleza.
A quinta capital do País ainda padece
com milhares de indivíduos que se veem alheios às prerrogativas mais
básicas pela ausência de reconhecimento civil, elementar para o acesso a
muitos outros direitos dele decorrentes. Ainda é evidente o alarmante
índice de sub-registros na Capital cearense, muitas crianças não são
registradas até os primeiros 45 dias de vida. Essa grave situação ainda é
justificada em razão de fatores como a filiação ilegítima, a falta de
tempo, desconhecimento sobre a gratuidade na lavratura inicial, pouca
instrução dos pais ou até mesmo a distância do domicílio para o
cartório.
Entretanto, todos os motivos convergem em uma causa
ainda maior: a ignorância sobre a importância do registro civil,
confirmada pela ainda tímida atuação de políticas públicas voltadas para
este fim. Campanhas de mobilização nacional propostas pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com a Corregedoria Nacional de
Justiça, orientadas para a erradicação deste problema no Brasil, ainda
são insuficientes em relação ao grande hiato que persiste entre
efetivação de direitos e acesso das comunidades de baixa renda ao
registro de nascimento.
O êxito de iniciativas como essa depende
de mecanismos eficazes de inclusão social, no sentido de estimular a
participação dos indivíduos na busca pela realização de direitos
mínimos, como o registro civil. O sujeito de direitos, residente em um
pretenso Estado Democrático de Direito, deve deter a exata noção dos
prejuízos advindos da ausência de registro e, principalmente, dos
benefícios sociais que pode passar a ter a partir da própria inclusão
como cidadão.
KARLA CAMILAREPÓRTER
Analfabetismo e falta de informações geram exclusão
Crianças sem registro de nascimento não têm acesso a nenhum benefício do governo federal
Francisco
Natanael, oito anos, Francisco Márcio, seis anos, Francisco Marcelo,
quatro anos, e Francisca Ester, um ano e oito meses, moradores do
Jangurussu, são crianças que não existem, oficialmente, e, portanto, não
têm direito a nenhum benefício social. Filhos da dona de casa Francisca
Roseane da Silva e do catador de lixo Antônio da Silva, sobrevivem no
escuro, impedidos de enxergar um futuro do lado de fora do portão da
casa pela ausência da certidão de nascimento. Os "Franciscos" e a
pequena Francisca são vítimas do analfabetismo dos pais, da falta de
informação e investimentos em políticas que garantam os direitos básicos
da humanidade.
Francisca Roseane, 30 anos, explica que três dos
seus sete filhos, nasceram na cidade de Maceió, Alagoas, e possuem
registros, mas, depois que vieram morar em Fortaleza, tudo ficou mais
difícil. "Dois dos meninos nasceram em casa, os outros dois em hospital,
mas não me deram nenhuma informação de como tirar o registro. Tudo é
complicado, eles não podem ir para escola. O registro é a vida se não
tiver, você não existe".
Situação semelhante é enfrentada por
Sebastião, 13 anos. O adolescente, filho de pais analfabetos e mãe
portadora de deficiência mental, trabalha catando lixo no bairro
Jangurussu. O reciclador Otávio Nascimento, pai de Sebastião, conta que
os avós do menino também eram analfabetos e, que, por isso, ele só foi
registrado na idade adulta, em uma campanha política. Sebastião conta
que nunca foi a um posto de saúde, não lembra de ter se vacinado e nunca
conseguiu ser matriculado na escola. "Gostaria muito de poder estudar.
Aprendi a fazer conta com a ajuda de calculadora que meu pai me deu. Meu
maior sonho é ser professor de matemática".
Entretanto, o que
ainda o consola é poder estar acompanhando a sua irmã mais velha, mesmo
sem matrícula, nas aulas de alfabetização na Educação de Jovens e
Adultos. "Já consigo escrever o meu primeiro nome, mas queria era
aprender a ler", diz.
Educação para a vida
O
professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará
(UFC), Luiz Távora, explica que o analfabetismo e a falta de informação
levam parte da população a não conhecer e ainda temer o mundo letrado.
Segundo
ele, muitos evitam até sair de casa com medo de pegar o ônibus errado.
Estes, comenta, terão, certamente, muita dificuldade para solicitar o
registro de nascimento. "Para sanar o problema, é precioso reforçar a
escolarização e simplificar a burocracia da vida, diminuindo o número de
documentos. A obrigação de fornecer as certidões de nascimento é dos
cartórios. Para agilizar essa ação, eles precisariam de um sistema
interligado e também informatizado", conclui o especialista.
A
respeito dessa interligação, Clarisse Botelho, oficial do Registro Civil
de Cartório, explica que os cartórios de Fortaleza, em sua totalidade,
são informatizados. Eles podem e devem fazer essa interligação, conforme
o modelo dos cartórios de São Paulo. Mas, informa, é necessário que a
Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE)determina
que todos os cartórios devem agir assim. Um segundo passo, seria a
interligação com a Defensoria Pública, o que facilitaria muito a vida
daquelas pessoas de baixa renda que necessitam da primeira via da
certidão de nascimento.
Clarisse
explica ainda que a burocracia atual faz parte de um sistema de
segurança. "O cartório, geralmente, tem muito medo de que a pessoa se
registre com outro nome para fugir de uma dívida ou de um crime. Por
isso, além da certidão negativa dos dez cartórios da Capital e do
Arquivo Público, o registrador pode pedir o documento que achar
necessário para que se sinta seguro", ressalta.
Em defesa da sociedade
Na
tentativa de facilitar a vida daqueles que estão à margem da sociedade e
acabam se tornando invisíveis para o Estado, existe o serviço da
Defensoria Pública. Isabelle Menezes, assessora do departamento de
Desenvolvimento Projetos da Defensoria Pública do Estado do Ceará,
afirma compreender que o sub-registro é um grave problema para o
exercício pleno da cidadania. Por isso, o órgão tem compromisso com
ações para erradicar o sub-registro no Estado.
O
adolescente Sebastião, 13 anos, trabalha catando lixo no Jangurussu.
Porém, o menino não existe, oficialmente, para o Estado, já que não
possui registro de nascimento. O fato impossibilita, por exemplo, o
acesso ao estudo e à saúde
Conforme explica, a pessoa que
não possuir registro deve procurar o órgão em seus diversos núcleos de
atendimento. Em seguida, a Defensoria Pública do Estado faz uma busca
nos dez cartórios de Fortaleza, além do arquivo público, isso se o
assistido tiver nascido na Capital. Mas, se o mesmo for de alguma cidade
do Interior cearense, deve ser feita a procura também no cartório
respectivo.
"Os pedidos de certidões negativas são feitos na
Defensoria, com o pedido de gratuidade na expedição das certidões. Este
procedimento é necessário para a instrução do pedido judicial, e estas
formalidades evitam fraudes na expedição do registro".
Ainda
segundo Isabelle Menezes, a Defensoria do Estado tem um projeto de
erradicação do sub-registro que visa proporcionar assistência jurídica à
população cearense por meio de mutirões e ações contínuas da
instituição. "O projeto será iniciado em breve com os primeiros
atendimentos nas Regiões de Fortaleza e Caucaia, disponibilizando, por
meio das Unidades Móveis da Defensoria Pública, atendimento nos
bairros", diz.
Leila Cidade, titular da Coordenadoria para a
Promoção de Direitos Humanos da Secretaria Municipal de Direitos Humanos
(SDH) de Fortaleza, afirma que, na tentativa de solucionar o
sub-registro na Capital, neste ano, foram promovidas duas ações: uma no
Conjunto Esperança e bairros adjacentes, onde foram nove solicitações de
primeira via e 125 de segunda via, e na Barra do Ceará, onde
contabilizou-se dez solicitações de primeiras vias e 85 de segundas
vias.
Entretanto, ela confessa que há uma dificuldade em realizar
os mutirões, pois, para que eles existam é necessária uma integração
com dezenas de órgãos, ação que demanda tempo.
FIQUE POR DENTRO
O que é preciso para ter certidão de nascimento?O
Registro Civil de Nascimento não custa nada, e ninguém pode cobrar por
isso. No ato do registro em seu nome, a mãe não é obrigada a declarar o
nome do pai da criança. Na hipótese de, com o apoio da lei, se a mãe não
identificar o suposto pai, faz-se necessária expressar a sua negativa
por escrito ao registrador, que a encaminhará ao juízo competente de sua
comarca. Se, porém, a qualquer tempo depois dessa negativa a mãe
declarante mudar de ideia e preferir por ajuizar a investigação, poderá
denunciar à justiça o fato e o processo terá curso normalmente, sem
qualquer prejuízo para ela.
O documento pode ser solicitado em
qualquer idade e usualmente o registro tardio ou extemporâneo o registro
feito fora do prazo legal deve ser requerido no cartório da
circunscrição de residência do interessado. No registro tardio, é
importante apresentar os documentos que possam atestar o nascimento
(batistério, caderneta de vacinação e outros) para facilitar a
comprovação de que a pessoa tem o nome, a idade e a filiação que está
sendo declarada perante o oficial registrador.
Nos casos de
registro tardio em que não se obtém os dados essenciais ao registro é
importante que a pessoa esgote as possibilidades de localizar parentes
que tenham e possam fornecer a informação necessária e servir de
testemunhas perante o registro civil. Caso não consiga, é preciso
constituir um advogado ou buscar o apoio da Defensoria Pública para
ajuizar uma ação de requerimento do documento.
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