Escalada de assassinatos em São Paulo
escancara erros da política de segurança pública estadual e mostra que é
preciso mudar a abordagem para enfrentar o crime organizado
Flávio Costa e Natália Martino
Clima de Pânico
Conflitos de PMs com o crime organizado espalham terror pelas
ruas da principal cidade do País: 72 mortes em uma semana
São Paulo vive há meses uma guerra silenciosa que denota a falência
da política de segurança pública estadual. Policiais Militares são
alvejados na porta de casa, chacinas se sucedem, criminosos incendeiam
ônibus e comerciantes e escolas fecham as portas ao menor ruído sob
“toque de recolher”, numa onda de medo que tomou conta da região
metropolitana da cidade. Na última semana, a escalada de violência
atingiu o auge. Em apenas uma semana, entre 25 de outubro e 1º de
novembro, 72 pessoas foram assassinadas na Grande São Paulo. É um número
superior ao da média mensal de homicídios que ocorreram entre janeiro e
setembro, em Ciudad Juarez, no México, município dominado pelo
narcotráfico e conhecido como a cidade mais violenta do mundo.
Os assassinatos das últimas semanas seguiram um mórbido padrão: um
policial é executado e, em seguida, vários civis são mortos na mesma
região por homens mascarados. No pico de violência iniciado na
quinta-feira 25, o 86 º PM assassinado neste ano foi alvejado por dois
indivíduos de moto, na porta de casa, na Vila Nova Curuçá, zona leste da
capital. Na sequência, na mesma região, duas pessoas também foram
mortas a tiros por homens encapuzados. “Considerando-se a dinâmica dos
crimes, me parece muito plausível a hipótese de se tratar de
assassinatos de policiais cometidos pela facção criminosa Primeiro
Comando da Capital (PCC) e subsequente retaliação praticada por milícias
policiais”, avalia a socióloga Camila Dias, pesquisadora associada do
Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP).
MOTIVO
O aumento dos confrontos e da letalidade da polícia pode
ter detonado o atual ciclo de retaliações entre PMs e criminosos
Especialistas ouvidos por ISTOÉ elencam diversos erros cometidos pela
atual administração no combate ao crime organizado: a falta de
reconhecimento público da dimensão e da força do PCC, o investimento na
militarização das ações de segurança, o esvaziamento das funções da
Polícia Civil e o excessivo encarceramento em um sistema prisional
dominado pelos criminosos.
Embora continue a minimizar a força do crime organizado, o governo
estadual esboçou uma reação tardia ao ocupar Paraisópolis, a maior
favela da capital, com 600 homens da PM na semana passada. Em um prédio
da comunidade funcionava uma espécie de quartel do PCC, onde foram
encontrados documentos que provam a relação do maior grupo criminoso do
País com as recentes mortes de PMs. As execuções foram ordenadas,
segundo o secretário de Segurança Antonio Ferreira Pinto, por Francisco
Antonio Cesário da Silva, o Piauí, integrante da facção, acusado de
chefiar o crime na favela. Os papéis encontrados pela PM durante a
ocupação pertencem a membros da quadrilha comandada por Piauí. Condenado
por crimes como roubo, sequestro, homicídio, receptação e falsidade
ideológica, ele está preso desde agosto em Avaré, a 272 quilômetros da
capital paulista.
Entre os documentos revelados pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, havia
cadernos com nomes, endereços, descrições físicas e detalhamento da
rotina de mais de 40 policiais militares ao lado de uma carta com ordens
para matar dois policiais para cada “execução covarde” de um membro do
PCC. “Esclarecemos que não foi (sic) nós que buscamos esse caminho, ao
contrário, estamos sendo executados na maior covardia na mão da Polícia
Militar, da Rota”, diz um trecho da carta, fazendo referência direta ao
batalhão de elite da PM, Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar. Detalhes de
como funcionava o chamado tribunal da facção eram relatados em páginas
que incluíam os nomes dos responsáveis por conduzir os julgamentos, as
testemunhas e até as sentenças aplicadas a cada delito.
Diante de tantas mortes e das novas revelações, não é de surpreender
que os próprios PMs estejam assustados. Os ataques em série fizeram com
que parte dos policiais buscasse socorro na religião. A associação PMs
de Cristo lançou a campanha “Ore por um PM”, que consiste em um ciclo de
orações, até o dia 15 de dezembro, contra a morte de colegas. “Neste
momento em que estamos enfrentando esses sobressaltos é preciso reforçar
a nossa fé em Deus e a união da corporação”, diz o capitão Joel Rocha,
presidente da entidade.
O aumento dos confrontos e da letalidade da polícia pode ter detonado
esse ciclo de retaliações entre PMs e criminosos. O atual secretário
Antonio Ferreira Pinto priorizou as ações de enfrentamento e de
policiamento ostensivo da Polícia Militar em detrimento do trabalho
investigativo da Polícia Civil. “Ocupações como a de Paraisópolis
amenizam a situação, mas, depois que a PM sai, o crime volta a imperar. É
preciso um trabalho de investigação profundo por parte da Polícia Civil
para identificar os chefes e sufocar a rede de financiamento do crime
organizado”, afirma o delegado George Melão, presidente do sindicato
paulista da categoria.
Outra falha remonta ao início dos anos 2000. À medida que aumentava o
encarceramento, o PCC arregimentava novos membros no sistema prisional.
Líderes foram espalhados pelas prisões do Estado, mas não foram
mantidos em isolamento. A partir dos ataques de 2006, a facção, que já
era poderosa nos presídios, passou a controlar as atividades ilegais do
lado de fora, como tráfico de drogas, assaltos e sequestros. “O governo
cedeu espaço ao PCC no sistema penitenciário. Há uma espécie de acordo
tácito: prendemos os bandidos, mas eles fazem o que querem na cadeia”,
afirma o ex-subsecretário nacional de Segurança Pública Guaracy Mingard,
para quem é fundamental isolar as lideranças da facção , restringir, de
verdade, o uso de celulares e retomar o controle das penitenciárias
pelo Estado.
SOCORRO
Alvos, policiais recorreram à religião. A associação PMs de Cristo lançou
a campanha “Ore por um PM”, um ciclo de orações até o dia 15 de dezembro
É preciso mudar a abordagem para vencer o crime organizado em São
Paulo. O Rio de Janeiro, cidade que durante décadas viveu à mercê de
facções criminosas, só conseguiu recuperar territórios dominados pelos
bandidos e reduzir os índices de violência quando assumiu que a postura
até então estava equivocada. As autoridades paulistas deveriam aprender
com o exemplo carioca e abandonar a tática do enfrentamento. “É
necessário fortalecer a Polícia Civil e investir em inteligência
policial para deixar claro aos criminosos que todos os crimes serão
punidos”, diz a socióloga Camila, da USP. Outra medida eficiente é secar
os lucros na origem e atacar os negócios que permitem a lavagem de
dinheiro e, consequentemente, o funcionamento da máquina do crime. “A
fonte de arrecadação do PCC tem que ser cortada”, defende Mingard. “No
caso do tráfico de drogas, deve-se impedir o funcionamento das bocas e
prender os chefes dos locais.”
Diante de um inimigo comum, em vez de trabalharem em conjunto,
autoridades federais e estaduais passaram a semana trocando farpas. O
ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, afirmava que tem oferecido
ajuda à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e vagas em
presídios federais para isolar os líderes do PCC desde junho. E o
secretário Ferreira Pinto e o governador Alckmin diziam que apresentaram
um plano de ações e não obtiveram respostas. No final da semana, eles
ensaiaram um entendimento, mas a única ação concreta foi a ocupação de
Paraisópolis. A polícia deteve suspeitos, apreendeu armas de fogo,
munição e drogas. Especialistas temem, entretanto, que sejam presos
apenas peixes pequenos. “Se não investirmos em investigação, vamos ter
que esperar para ver qual grupo se cansa primeiro de matar e interrompe o
ciclo de ‘mata-mata’”, diz Luciana Guimarães, diretora da ONG Sou da
Paz.
Fotos: Adriano Machado; Apu Gomes/Folhapress; JOSÉ PATRÍCIO/ESTADÃO
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