Petistas tentam creditar
condenações à teoria alemã do domínio do fato. Mas não é a doutrina que
levará Dirceu e companhia à cadeia. É a fartura de provas, a convicção
da maioria do Supremo – e o rigor do Código Penal
Daniel Jelin
Domínio do fato: teoria já é aplicada faz tempo nos tribunais, incluindo a mais alta corte
(Pedro Ladeira/AFP)
O ex-ministro José Dirceu terá de se conformar mais cedo ou mais tarde: não deve sua condenação à doutrina jurídica que
Ricardo Lewandowski tomou por 'controvertida' e 'antiga', e
petistas,
por 'superada', 'nascida na Alemanha nazista' e 'atualizada na Guerra
Fria'. O que levará o chefe do mensalão à cadeia não são teorias, mas
provas. A tese do domínio do fato, fixação jurídica de petistas, não tem nada com isso.
Considere o exemplo hipotético: o poderoso A manda B autorizar C a
pagar D e E, por intermédio de F e G, com o dinheiro que H desviou dos
cofres públicos para a conta de C e seu sócio I, sob a proteção de J e
K, que têm interesse em agradar A, B e C em troca de favores que possa
obter de L, que não sabia de nada... Afinal, quem é a figura central da
trama? Quem é coautor? Quem é mero partícipe? É disto que tratam
diversas teorias à disposição das cortes na hora de pesar a
responsabilidade de cada réu.
Domínio do fato é uma dessas teses. Por ela, dá-se o status de autor ao
sujeito que tem o controle da empreitada criminosa, ainda que outras
pessoas sujem as mãos em seu lugar. Parece banal, mas não é este o
resultado a que chegam outras teorias, como a que toma por autor apenas o
sujeito do 'verbo núcleo' do tipo penal (o que 'mata', 'ofende',
'falsifica' etc.) ou a que considera partícipe quem demonstra 'vontade
de partícipe', independente da gravidade de sua conduta. Ao invocar esta
ou aquela doutrina, o que se pretende é evitar aberrações como a
condenação de um laranja a uma pena mais dura que a do mentor do crime
ou o abrandamento da punição de um assassino que alega apenas cumprir
uma ordem superior.
É vasta e complexa a literatura sobre o conceito de autor. De toda
maneira, qualquer que seja a doutrina abraçada pela corte, só se pesa a
responsabilidade de um criminoso após a comprovação de que o sujeito
tomou mesmo parte do crime. "Somente a invocação da teoria não tem o
condão de dar fundamento a um juízo de condenação", explicou o decano do
STF, Celso de Mello.
Por isso, tanto nos argumentos da Procuradoria-Geral da República como
no voto do ministro Joaquim Barbosa, o domínio do fato é uma rápida
passagem da fundamentação teórica, sem jamais fazer as vezes de
elemento-chave de convicção. Ao pedir a condenação dos réus, o
Ministério Público se apoia é no Código Penal, em particular seu artigo
29: "Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a
este cominadas, na medida de sua culpabilidade". E Barbosa, ao dosar a
pena dos chefes do esquema, ampara-se no artigo 62, que agrava a punição
para quem "promove, ou organiza a cooperação no crime ou dirige a
atividade dos demais agentes". Em qualquer caso, condenação exige
provas. Acusar a mais alta corte de dispensá-las no caso do mensalão é
só desatenção. Ou má-fé.
A confusão começou com o voto de Lewandowski sobre a acusação de
corrupção ativa contra Dirceu. O revisor do processo guardou suas
considerações sobre domínio do fato para encerrar seu longuíssimo voto.
Nele, acusou o Ministério Público de usar a doutrina como uma muleta
retórica para compensar o que chamou de 'absoluta e total carência de
provas' contra o ex-ministro. Em amarga intervenção, ao final da qual
absolveria o chefe da quadrilha, Lewandowski disse que o domínio do fato
dá margem a especulações, temeu pelo mau uso da doutrina em outras
cortes e citou seu professor do ginásio para lamentar a importação de
'movimentos intelectuais' com 50 anos de atraso.
O revisor foi logo refutado por outros ministros, em particular Ayres
Britto, Luiz Fux e, de forma esmagadora, Celso de Mello. Em
detalhada fundamentação,
o decano traçou as origens da teoria desde a Alemanha de 1915, passou
por seu marco fundador, em 1939, e ocupou-se longamente da abordagem
seminal do alemão Claus Roxin, em 1963. São essas datas que levaram o PT
a falar em doutrina 'nascida na Alemanha nazista' e 'atualizada em
plena Guerra Fria'. O que o partido omite é que a teoria é justamente o
arcabouço que autoriza a condenação exemplar de um carrasco nazista. Ou
seja, omite o principal.
"Teoria não facilita o trabalho do Ministério Público"
Kai Ambos
Penalista alemão, professor da Universidade de Göttingen
O que é a teoria do domínio do fato?
A teoria do domínio do fato foi desenvolvida pelo professor Claus
Roxin nos anos 1960 para distinguir melhor as formas de autoria e
participação secundária (instigação, cumplicidade). Para os casos de
macrocriminalidade, como o nazismo, Roxin propôs uma modalidade
particular do domínio do fato: o domínio por meio de um aparato
organizado de poder, também chamado “domínio por meio de uma
organização."
Para desenvolver a teoria do domínio do fato, Roxin inspirou-se no caso
de Adolf Eichmann, oficial nazista encarregado da logística do
Holocausto – o mesmo carrasco que levou Hannah Arendt (1906-1975) a
cunhar a expressão 'banalização do mal'. O interesse de Roxin estava
justamente em fundamentar uma doutrina que alcançasse o criminoso que
não suja as mãos, para tratá-lo como autor, não cúmplice. Capturado na
Argentina e julgado em Israel, Eichmann foi executado, na forca, em
1962. A obra
Autoria e domínio do fato saiu logo no ano seguinte.
Segundo a formulação de Roxin, autor é quem tem o domínio do fato, e
este pode ser exercido tanto pelo domínio da própria ação, que é o caso
mais comum (quando o assassino decide apertar o gatilho, por exemplo)
como pelo chamado 'domínio da vontade' (por coação, por exemplo). Ao
desenvolver esta segunda modalidade de domínio do fato, Roxin chegou a
um caso particular e bastante original: o ‘domínio por meio de um
aparato organizado de poder'. Esta vertente fez fama em diversas cortes,
desde a alemã, para julgar os crimes ocorridos na Alemanha Oriental,
até a argentina, no caso do ditador Jorge Rafael Videla, e a peruana, no
processo contra o ex-presidente Alberto Fujimori. (Supõe-se que a
militância de esquerda não veja absurdo nessas condenações).
E aqui a doutrina se cruza com o caso do mensalão. Esses "aparatos de
poder" são descritos como estruturas hierárquicas à margem da lei, com
poucos dirigentes e muitos subordinados. Nestes casos, os executores,
que estão na ponta final da linha de comando, são facilmente
substituíveis ("fungíveis") e nem é necessário que todos se conheçam. Ao
longo dessa estrutura verticalizada, quanto mais nos afastamos da cena
do crime, tanto maior – e não menor – é a responsabilidade do agente. E é
bem disso que trata o processo do mensalão: 'uma grande organização que
se constituiu à sombra do poder, formulando e implementando medidas
ilícitas que tinham por finalidade a realização de um projeto de poder',
conforme a síntese de Celso de Mello. 'Estamos a tratar de uma hipótese
de macrodelinquência, e em situações assim é plenamente aplicável a
teoria (do domínio do fato)."
No mesmo voto, Mello afastou as insinuações de que o STF estivesse
inovando ao acolher esta doutrina. Lembrou que a tese é absolutamente
compatível com as leis brasileiras e já vem sendo aplicada - e bem
aplicada - tanto em instâncias inferiores como no próprio Supremo.
A teoria do domínio do fato volta a cruzar o caminho do mensalão em
outra modalidade descrita por Roxin, a do 'domínio funcional do fato'.
Aqui, trata-se por coautores aqueles que, em ação orquestrada, realizam
cada qual uma certa tarefa imprescindível para o êxito de determinada
empreitada. Esta vertente foi lembrada nos votos de Joaquim Barbosa e de
Luiz Fux. Também por esta teoria, o que se pretendeu foi negar o status
de mero partícipe a Dirceu e Valério, entre outros réus. “Valério e
seus sócios foram a 'longa manu’ daqueles que idealizaram politicamente a
patrimonialização do estado”, disse Fux.
Até o início do julgamento, Roxin e sua doutrina passaram longe das
preocupações dos mensaleiros. Nas alegações finais, são raras e breves
as referências à teoria. As poucas citações tentam levar os ministros do
STF a crer que os réus não tinham domínio qualquer dos fatos. É o caso
de Simone Vasconcelos, que tentou passar por mera "executora das
determinações" de Valério e dos sócios Cristiano Paz e Ramon Hollerbach.
"Se alguém há de ser reputado como detentor do domínio sobre os fatos,
seriam os sócios". A defesa de Geiza Dias alegou algo próximo: não tinha
nem o domínio, nem o conhecimento “das intenções e dos atos praticados
pelos diretores da empresa SMP&B”.
Simone foi condenada a mais de 12 anos.
Geiza foi inocentada. O que determinou a sorte de cada uma não estava no âmbito da doutrina, mas nas provas: Geiza, a
“funcionária mequetrefe”
com “salário de doméstica”, preenchia cheques e passava e-mails,
enquanto Simone, diretora da agência, cuidava pessoalmente para que o
dinheiro chegasse aos mensaleiros, valendo-se até de carro-forte.
Os mensaleiros podem até consultar Roxin em pessoa,
como foi noticiado e depois desmentido,
para saber se suas teses foram bem ou mal esgrimidas em plenário.
Poderão de quebra conhecer outra tese famosa desenvolvida por Roxin, o
princípio da insignificância, bastante aplicado em tribunais brasileiros
para os chamados crimes de bagatela – ao que consta, nenhum mensaleiro
chegou ao ponto de invocá-lo. Só não poderão contornar a fartura de
provas que convenceram a maioria do Supremo a culpar
25 réus do processo.