A história dos rapazes agredidos para confessar a morte de uma adolescente no Paraná não é um caso isolado. Segundo a ONU e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, espancamentos, choques elétricos e pau de arara são corriqueiros nas delegacias do País
Nathalia Ziemkiewicz e Laura DaudénChovia muito no dia em que Adriano, Sérgio, Paulo e Ezequiel foram presos em Colombo, na região metropolitana de Curitiba, Paraná. O clima daquela quarta-feira, 26 de junho, no entanto, seria apenas um detalhe na memória dos rapazes. Isso se policiais civis não tivessem feito com que se ajoelhassem debaixo das goteiras que pendiam do telhado da delegacia. Ali, molhados, eles levaram muitos choques elétricos. “Onde está o corpo?”, perguntavam os policiais. Ninguém sabia. E dá-lhe corrente elétrica. O corpo a que se referiam era o da estudante Tayná Adriane da Silva, de 14 anos, desaparecida no dia anterior. Segundo a mãe da menina, ela foi vista pela última vez nas proximidades do parque de diversões onde trabalhavam os quatro rapazes, com idades entre 22 e 25 anos. Mesmo sem provas ou testemunhas, a polícia prendeu o quarteto e os torturou com diversas técnicas até a confissão. Eles foram espancados, asfixiados com saco plástico, levaram choques elétricos em diversas partes do corpo, tiveram a cabeça colocada dentro de um formigueiro e ainda sofreram abusos sexuais.
Fosse uma história isolada, já seria motivo para indignação. Mas, só este ano, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos recebeu 466 denúncias de tortura contra a população carcerária. “É uma prática institucionalizada que perpassa o sistema em suas diferentes estruturas”, disse a ministra Maria do Rosário à ISTOÉ. “Uma limitação que a nossa democracia ainda possui.” Não é de hoje que a tortura é uma das ferramentas mais usadas por autoridades policias brasileiras, principalmente contra os mais pobres. Durante a ditadura militar as sevícias passaram a ser praticadas contra jovens das classes mais abastadas e universitários. Agentes da repressão estavam interessados em conhecer os nomes daqueles que se opunham ao regime e o paradeiro dos que viviam clandestinamente no País. Com o fim da ditadura, os pobres, negros e trabalhadores informais, segundo o advogado José Filho, da Pastoral Carcerária, voltaram a ser a “população torturável”, vítimas preferidas dos policias em busca de confissões. Técnicas violentas para obter informações tendem a ser usadas especialmente nos casos de grande clamor popular, como estupro e sequestro, quando existe maior pressão por um rápido desfecho.
INOCENTES
Os quatro acusados pela morte de Tayná confessaram o crime
após tomarem choques elétricos e sofrerem sufocamento
Atitudes como a da juíza Isabel Cardoso contribuem de forma significativa para que as torturas continuem a ocorrer no Brasil. E trata-se de uma prática comum. Especialistas ouvidos por ISTOÉ apontam certa banalização dos maus-tratos por parte das autoridades que deveriam coibi-la. Socióloga do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Maria Gorete Marques chegou à mesma conclusão em sua tese de mestrado. Ela acompanhou 181 agentes do Estado que eram réus de processos sobre tortura e 70% deles não receberam punições. “Os policiais desconstroem a acusação, dizem que a vítima já veio com as lesões, transferindo a autoria para terceiros”, afirma. Se eles abusam dessa justificativa é porque sabem que existe um sistema estruturado para blindá-los. Segundo Marcos Fuchs, diretor adjunto do Instituto Conectas, medidas simples de controle não são tomadas (leia os quadros abaixo ). O flagrante, o traslado para a delegacia ou o depoimento não são filmados. Torturados são submetidos a exames muito depois da violência, comprometendo os laudos e as investigações. A coerção não para nem diante do juiz corregedor. “A vítima depõe com um policial militar escoltando e ameaçando”, diz Fuchs. “Então ela nega os abusos.”
DEFENSORES
De Paula (acima à esq.) denunciou caso de tortura policial em 2009.
Enviado da ONU, Tayler (acima) se surpreendeu com o que viu no Brasil
“Parece que há sempre uma desculpa para os hematomas – tem muita gente caindo da escada”, afirma Wilde Tayler, vice-diretor do Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU. Uma comissão especial das Nações Unidas para monitorar a prática da tortura esteve no Brasil em 2001, 2005 e 2011. Os relatórios atestam que, apesar das recomendações, o País em nada avançou. As leis são boas, mas não estão sendo aplicadas. “Todo o sistema propicia a impunidade”, diz o defensor público Patrick Cacicedo, do Núcleo Carcerário de São Paulo. “Não se trata de um policial malvado, de posturas isoladas.” Ele revela os documentos e fotos de visitas-surpresa a presídios. No Centro de Detenção Provisória (CDP) Vila Independência, após flagrar detentos com marcas de tortura e encaminhar um pedido de providências imediatas à juíza corregedora, ele recebeu como retorno que uma ida ao local estava agendada para dali a uma semana. Tempo hábil para que qualquer CDP camufle evidências. “Ministério Público e Poder Judiciário são os grandes responsáveis pela continuação da tortura no País, eles não se aprofundam na investigação das denúncias”, diz Juliano Breda, presidente da OAB-PR. Isso porque boa parte da opinião pública corrobora com a ideia de que bandido, seja ele ainda um suspeito, pode apanhar.
A abordagem positiva do governo federal não conseguirá, no entanto, atenuar o sofrimento dos torturados no caso Tayná, que estão em local sigiloso, sem contato com familiares. Antes de receberem o mandado de soltura, eles disseram a Isabel Kugler Mendes, da Coordenação Internacional de Proteção dos Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB: “Tem que dar no pé ou vamos morrer”. O processo deve ser encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça para que seja julgado na esfera federal e tenha um valor didático sobre o que é aceitável ou não na defesa dos direitos humanos. “Chocou pela natureza das agressões, pelo tempo que duraram, pela participação de inúmeras pessoas e pela indiscutível inocência dos rapazes”, diz Breda, da OAB-PR. Enquanto a tortura for algo tolerável, seja aplicada em inocentes ou culpados, a sociedade não pode se dizer plenamente democrática. Wilde Tayler, da ONU, finaliza: “Algumas coisas que vi no Brasil eu não esperava ver nos países mais severamente subdesenvolvidos.”
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