ISTOÉ acompanha o dia a dia de Farah Jorge
Farah e revela como vive atualmente o ex-médico que em 2003 matou,
esquartejou e dissecou a paciente que se tornara sua amante
Por Antonio Carlos Prado
Tem gosto diferente, não ruim, mas
diferente, o café feito no vapor pelo ex-médico Farah Jorge Farah.
Cirurgião bem-sucedido, há dez anos ele ficou conhecido nacionalmente
por assassinar sua paciente e amante Maria do Carmo Alves Pereira e se
tornar o protagonista de um dos mais famosos crimes cometidos no País.
Depois de matar a amante, que não aceitava o fim do relacionamento,
Farah a esquartejou em nove pedaços, a dissecou e ocultou as partes do
corpo em cinco sacos de lixo no porta-malas do carro que tinha na época,
um Daewoo. Detalhista, enquanto prepara o café na cozinha do pequeno
sobrado de sua família, onde mora sozinho desde que deixou a cadeia em
2007, ele explica: “Sempre com duas fervuras da água, sempre com duas
fervuras da água é que se faz o bom cafezinho.” Para quem o toma é
impossível não perguntar, meio encafifado, que sabor forte e levemente
apimentado é aquele. “Te peguei”, diz, exibindo um pequeno sorriso no
rosto que aparenta mais do que os 64 anos de idade. “Eu sabia que ia
estranhar. É khëil. Khëil. Uma sementinha de origem árabe que funciona
otimamente como condimento.” Também é estranho o papel colorido, pedaço
da embalagem de um pacote de salgadinhos, que Farah pendurou ao lado da
lâmpada no teto do hall, com o objetivo de criar dois ambientes
distintos. Um lado fica mais escuro, o outro mais claro. Nesse sobrado
na Vila Mariana, na zona sul de São Paulo, o médico tem passado a maior
parte do tempo, aguardando com ansiedade a realização de um novo
julgamento com a esperança de ver reduzida uma pena de 13 anos de
prisão. Ele deixou a zona norte onde vivia quando cometeu o crime. “Faz
muito tempo que não passo por lá, virou um passado distante no qual fiz
muita gente sofrer com o meu ato, sobretudo a mãe de Maria do Carmo e
meus próprios pais.”
HORIZONTES
Farah no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, com a indispensável
bengala devido à cirurgia do câncer próximo à coluna: aguardando
um segundo júri por ordem do Tribunal de Justiça
Quando sai de casa, Farah costuma andar a pé e de metrô, apesar da
bengala obrigatória devido à cirurgia do câncer próximo à coluna
vertebral e à hérnia que aperta algumas de suas vértebras. O automóvel
Daewoo, onde ficaram os sacos com os pedaços do corpo de Maria do Carmo,
não existe mais. Na garagem de um prédio onde mora sua irmã, Farah
guarda a réplica de um Porsche que diz ter feito com as próprias mãos,
com motor de Brasília sobre o chassi de uma velha Variant. Usa o carro
raramente, apenas nos fins de semana em um ou dois quarteirões nas ruas
vizinhas ao aeroporto de Congonhas. Dez anos o distanciam do crime, mas
muitos ainda o reconhecem nas ruas que costuma usar diariamente para ir à
Faculdade de Saúde Pública, na qual estuda. “Tenho ciência de que fui
cassado pelo Conselho Federal de Medicina e não poderei atuar nessa área
quando me formar, mas tenho paixão pela ciência”, afirma Farah. Ele
caminha sempre cabisbaixo, mas bastam alguns passos a seu lado e é
possível ouvir: “Olha o assassino.” Farah se limita a manter o passo. Se
almoçarmos em sua mesa no restaurante árabe que frequenta perto de sua
casa, perceberemos olhares de quina temperando amargamente a comida na
qual ele capricha na pimenta. Na faculdade, recentemente, Farah
abandonou o bandejão ao ouvir de colegas a frase de péssimo gosto: “Hoje
tem picadinho de carne no cardápio.” Não, não tinha. Era macarrão.
Quando ouve coisas assim, Farah fica casmurro. “Na verdade, há dez anos
estou casmurro. Vez ou outra saio com uma antiga amiga para jantar,
visito minha irmã aos domingos. Quase ninguém me telefona. Vivo isolado,
desde aquela noite em que tudo virou breu.”
Antes do “breu”, ou seja, do crime, o então conceituado doutor Farah
possuía uma clínica na zona norte de São Paulo na qual se submeteu à
lipoaspiração até uma ex-primeira-dama. “Isso é verdade, mas o nome dela
não digo, médicos não pronunciam nomes de pacientes.” Agora, sem o
título de doutor e estigmatizado publicamente, são outros o ânimo e o
humor do clínico geral, endocrinologista, cirurgião plástico e cirurgião
do trauma – após quatro anos de prisão preventiva entre 2003 e 2007 e
aguardando em liberdade um segundo júri popular porque o primeiro que o
condenou a 13 anos de reclusão, em 2008, foi anulado pelo Tribunal de
Justiça. Farah é um homem ansioso à espera desse segundo julgamento
ainda sem data marcada. “A palavra farah significa alegria, mas
atualmente sou Za’al Jorge Za’al.” E o que quer dizer za’al? “Tristeza”.
O autodiagnóstico de seu estado de espírito é ratificado por uma
frequentadora de um salão de beleza que há nas proximidades de sua casa:
“Ele é um poço de delicadeza e educação, sempre prestativo, mas é
também um senhor muito acabrunhado e tristonho.”
Caiu num fim de semana o 25 de janeiro de 2003, data em que se
comemora o aniversário da cidade de São Paulo. Na sexta-feira que o
antecedeu, em sua clínica, Farah e Maria do Carmo brigaram pela enésima
vez – ela não aceitava o fim do relacionamento, chegando a lhe telefonar
752 vezes num único dia (dado confirmado pela polícia e operadora
telefônica). Em cada ligação vinham ameaças de morte a ele e a sua mãe,
“uma santa em minha vida que infelizmente faleceu comigo preso”. Farah
chora. Tantas ameaças à sua família provocaram “uma progressiva
desestruturação de seus valores morais”, segundo laudos elaborados a
pedido da Justiça. Na clínica naquela véspera de feriado, vazia já no
começo da noite, Maria do Carmo estava armada com uma faca, Farah
apoiado em sua bengala. Ela avança, ele dá-lhe a bengalada, ela bate com
a cabeça na parede azulejada. Farah assegura que a partir daí “tudo
ficou escuro”, que não lembra do esquartejamento e da ocultação do
corpo, e só deu por si quando já internado num hospital psiquiátrico
antes de ser preso.
Os quatro laudos psiquiátricos requeridos pela Justiça apontam que
Farah sabia que estava cometendo um crime quando matou, mas não tinha
condições mentais de frear o ato. Os mesmos pareceres asseguram que
estava sem condições psíquicas de compreender o esquartejamento e, por
isso, concluem que ele deve receber tratamento ambulatorial. Aliás,
haverá um novo julgamento porque, segundo o Tribunal de Justiça, no
primeiro os jurados decidiram contrariamente a tais pareceres. “O modo
de vida e a história de Farah mostram que a morte de Maria do Carmo foi
um fato isolado. Basta ver tudo o que ele estuda”, diz o advogado Odel
Antun.
SOLIDÃO
Farah prefere ir a restaurantes quando eles estão
vazios: até hoje as pessoas o reconhecem nas ruas
Além do curso na Faculdade de Saúde Pública, desde que deixou a
cadeia em 2007 especializou-se em geriontologia, estudou filosofia e
direito, hoje com a matrícula trancada. “Faltam recursos financeiros”,
diz ele. Sem emprego, Farah nos últimos anos tem vivido com um auxílio
da família. Há dois meses foi aprovado (nota sete e meio) no concurso
para estagiário da Advocacia-Geral da União, mas para assumir a vaga
terá de reabrir a matrícula no curso de direito.
Quem quiser acompanhar Farah em seu dia a dia há de acordar muito
cedo: “madrugo com as galinhas e durmo com as galinhas” – sete e meia
da noite está na cama, rodando os canais de tevê ou lendo sobre ciência
(acabou de estudar o livro “Quem Está no Comando”, do professor da
Universidade da Califórnia Michael Gazzaniga, que questiona a tese do
livre-arbítrio). Passeios? Isso fica por conta das idas à Igreja
Adventista do Sétimo Dia, “e pouca gente sabe que continuo a ser
evangélico mesmo tendo me convertido ao judaísmo”. E as sinagogas? “Não
vou, embora eu tenha feito a circuncisão, ai que dorzinha...”
Biologicamente, ajuda Farah a organizar a vida um antidepressivo que já o
livrou do pesadelo que lhe era recorrente: “Eu subia uma rua muito
escura e um homem trajado de preto descia em minha direção.” Vez ou
outra, ainda quando sonha esse sonho sem sentido, mas desconfortável,
Farah acorda de madrugada. Precisa relaxar: “Eu assisto aos desenhos
animados da Pantera Cor de Rosa”.
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