As mulheres ganham espaço nos altares
evangélicos do Brasil, conquistando cada vez mais fiéis para essas
denominações. Em algumas igrejas, quase metade do corpo pastoral é
feminino
por Rodrigo Cardoso
O papa Francisco voltou a surpreender o
mundo na quinta-feira 19, quando, durante longa entrevista, de 29
páginas, publicada no jornal jesuíta italiano “La Civiltà Cattolica”,
não se furtou a falar sobre assuntos indigestos para a Igreja Católica,
como aborto, gays e o papel das mulheres. “É necessário ampliar os
espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja. O gênio
feminino é necessário nos locais onde se tomam decisões importantes”,
afirmou, num discurso que, à primeira vista, pode soar progressista, mas
continua tão engessado quanto as colunas da Praça de São Pedro. Em seu
comentário, o pontífice enaltece o gênero, mas o coloca como apêndice
dos homens na estrutura da Santa Madre Igreja. Ou seja, nada mudou desde
sua visita ao Rio de Janeiro, para a Jornada Mundial da Juventude, há
dois meses, quando, na volta para o Vaticano, foi questionado por um
jornalista durante o voo, sobre o direito das religiosas. Francisco,
assim como fizeram seus antecessores, deixou claro que as mulheres são
semelhantes aos homens – mas não iguais; são importantes para o
crescimento do catolicismo – mas jamais irão atingir o status de
sacerdotes. “Sobre a ordenação das mulheres, a Igreja falou e disse:
não! Esta porta está fechada”, sentenciou. Enquanto a Igreja Católica
segue acorrentada a essa tradição milenar, o grupo dos evangélicos,
aquele que mais cresce e faz frente aos católicos no País, anda em
sintonia com as mudanças em relação ao lugar das mulheres na sociedade.
Transformações essas que vêm fazendo com que elas ocupem cada vez mais
postos de liderança e atraiam milhares de fiéis para os templos
cristãos.
O mais novo e fulgurante exemplo de liderança feminina religiosa é
Cristiane Cardoso, filha de Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de
Deus. A jovem acaba de superar a marca de um milhão de cópias vendidas
de seu livro “Casamento Blindado” e faz sucesso na tevê à frente do
programa “Escola do Amor”, na Record, que apresenta junto com o marido,
Renato. “Entendemos que a liderança da mulher é uma necessidade da
igreja e vai muito além do título ou cargo que ela exerce”, afirma
Cristiane. “Temos pastoras consagradas no Brasil e ao redor do mundo.”
Quem abriu caminho para Cristiane e tantas outras foi Sônia Hernandes,
da Igreja Renascer em Cristo. Apesar de Estevam Hernandes, seu marido,
ter o título de apóstolo, é atribuído à bispa Sônia o papel de
protagonista. É ela quem arrebata multidões na Marcha para Jesus e reúne
milhares de evangélicos nas ruas de São Paulo todos os anos. “Sem o
viés feminino que Sônia trouxe à igreja, por certo a denominação não
teria tido tanto avanço como houve no Brasil, sobretudo em São Paulo”,
afirma Rogério Rodrigues da Silva, pesquisador da Universidade de
Brasília.
LIDERANÇA
Apresentadora da Rede Record, Cristiane Cardoso, filha de Edir Macedo,
da Universal do Reino de Deus, vendeu mais de um milhão de exemplares de seu último livro
Para a professora Sandra Duarte de Souza, de ciências sociais e
religião da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), em muitas
instituições religiosas as mulheres conseguem criar uma empatia muito
mais sólida com a comunidade do que os homens. Na Igreja Batista da
Lagoinha, fundada em Belo Horizonte (MG), 44,6% do corpo pastoral é do
sexo feminino – a cultuada cantora gospel Ana Paula Valadão é uma delas.
Entre os metodistas, as mulheres representam aproximadamente 30% dos
pastores – a mesma porcentagem é verificada entre os presbíteros da
Igreja Anglicana. Até mesmo uma das mais conservadoras denominações
pentecostais brasileiras, a Assembleia de Deus, tem aberto caminhos para
as fiéis ocuparem altos postos na sua hierarquia. No mês passado, a
denominação permitiu pela primeira vez em sua história que mulheres
assumissem o cargo de evangelistas. Para essa posição, que permite, por
exemplo, que a eleita dirija um templo, duas jovens foram consagradas no
ministério do Brás, em São Paulo. “Já não dá mais para negar a
importância da mulher dentro das nossas igrejas”, diz Samuel Ferreira,
pastor da Assembleia. “Eu não tenho o direito de negar a elas a
prerrogativa de exercerem essa liderança.” Especialistas no tema ouvidos
por ISTOÉ têm notado um aumento no número de ordenações de mulheres,
principalmente daquelas que estudam para atingir um alto posto na
instituição. Ainda é bem maior o contingente de religiosas escaladas
para tarefas como limpar e ornamentar a igreja, cozinhar e assessorar
pastores em visitas externas. Mas vê-las pregando em púlpitos,
batizando, realizando casamentos e celebrando a ceia são cenas vistas já
com normalidade e frequência em muitos templos.
PROTAGONISTA
O carisma, na Renascer em Cristo, está em poder
da bispa Sônia Hernandes: referência para as fiéis
Aos 48 anos, a gaúcha Margarida Ribeiro é reverenda da Igreja
Metodista, que possui uma bispa entre as oito pessoas que ocupam esse
posto no Brasil. Para tanto, ela encarou seis anos de preparação por
meio de estudos teológicos e experiências em comunidades. Hoje, em 27
anos de pastorado, já foi titular em 20 igrejas. Mas o início não foi
fácil. Quando pisava em alguma comunidade para pregar a palavra,
Margarida ouvia o seguinte questionamento: “Você quem vai fazer o culto?
Onde está o seu pai ou marido?” Hoje, no entanto, conta com orgulho
que, ao ser convidada a dirigir cultos em igrejas pentecostais que
possuem dois púlpitos, é frequentemente instada a pregar no principal,
local costumeiramente ocupado por um homem. A reverenda, hoje, cuida da
criação da primeira comunidade em Santa Isabel, interior de São Paulo.
No Rio Grande do Sul, já esteve à frente de templos em zonas rurais,
atuou na pastoral do agricultor, desenvolveu atividades sociais,
ecumênicas e com mulheres, além de ter supervisionado trabalhos de
outros pastores.
“Uma liderança feminina dá credibilidade à igreja evangélica.
Mulher não é vista como exploradora da fé”
Bispo Hermes C. Fernandes, da Igreja Reina
Para Margarida e outras lideranças femininas de origem protestante
histórica, a ascensão dentro da hierarquia está muito atrelada à
formação teológica, o que facilita o acesso delas a posições de
destaque. É o que aponta a professora Sandra, da Umesp. No universo
pentecostal e neopentecostal, no entanto, fazer parte do corpo
sacerdotal depende em muitos casos do apadrinhamento de personalidades
da instituição. Recentemente, só para citar um exemplo, um ministério da
Assembleia de Deus consagrou compulsoriamente todas as mulheres de
pastores presidentes no Brasil. “Ordenar ou não mulheres não classifica
uma igreja como mais ou menos patriarcal. Ter mais mulheres na
hierarquia pode significar apenas um dado”, alerta a professora Sandra.
BELAS DA FÉ
Em Vila Velha, no Espírito Santo, três amigas fundaram e administram
uma igreja desde 2011: únicas pastoras de um templo
Sarah Sheeva é alvo de preconceito até hoje simplesmente por ser uma
mulher que constrói sua trajetória no meio evangélico sem ser
referendada por alguém do sexo masculino. Filha de Baby Consuelo e
ex-membro da Igreja Celular Internacional, ela se tornou pastora
aspirante aos 38 anos, depois de 16 dedicados à denominação. Hoje, aos
40, ela acaba de se mudar do Rio de Janeiro para Goiânia. Deixou de ser
pastora da igreja local e, em vez de administrar uma igreja, preferiu
ser pastora missionária e viajar pelo Brasil para realizar palestras e
conferências em diferentes denominações evangélicas. “Pessoas ficam com
um pé atrás quando chego. Pensam: ‘Mas é essa jovem que vai trazer a
palavra, ministrar um congresso?’”, diz. “Temos de nos esforçar duas
vezes mais para ganhar a confiança.” A missionária Sarah,
ex-ninfomaníaca assumida e mãe de uma jovem de 21 anos, tem um canal no
YouTube que já foi visto por dois milhões de pessoas. Alguns vídeos nos
quais comanda o culto das princesas, uma espécie de pregação misturada à
autoajuda, somam 150 mil visualizações. O que ela fala tem ressonância
também no Twitter, onde é seguida por 120 mil pessoas, e no Facebook –
sua página já recebeu 325 mil curtidas. Muitas são as confissões
evangélicas que reconhecem o dom espiritual das mulheres, mas lhes negam
um título, como o de pastora. “Dizem que não há respaldo na Bíblia”,
afirma a pastora Simone Saiter, 40 anos, da Igreja Viva Praia da Costa.
Uma passagem do apóstolo Paulo é frequentemente usada por lideranças
evangélicas que excluem as mulheres de seus quadros: “As mulheres
estejam caladas nas igrejas; porque lhes não é permitido falar; mas
estejam submissas como também ordena a lei” (1Coríntios 14:34)
PREPARO
A gaúcha Margarida tornou-se uma referência na Igreja Metodista
depois de estudar seis anos antes de ser consagrada
O silêncio exigido naquela época, porém, fazia parte de um contexto
cultural. Os cristãos se reuniam em sinagogas, onde as mulheres não
podiam se manifestar. Para evitar atrito com os judeus, eram orientadas a
apresentar seus questionamentos em casa, junto dos maridos. Hoje, a
realidade é outra. A pastora Simone e duas amigas, casadas e formadas em
teologia, resolveram dar voz à palavra que aprofundavam em núcleos de
estudo. Decidiram abrir uma igreja evangélica, a Viva Praia da Costa, em
Vila Velha, no Espírito Santo, em 2011. As três são as únicas pastoras
da denominação, hoje frequentada por cerca de 100 membros. “Uma
liderança feminina dá credibilidade. Mulher não é vista como exploradora
da fé, como ocorre com os homens”, diz o bispo Hermes C. Fernandes, da
Igreja Reina. Instituição com cerca de 120 templos, a Reina tem 40
mulheres entre seus 160 pastores. Uma delas, a carioca Miriam de Lourdes
Silva, realiza uma próspera obra à frente de um templo na comunidade de
Acari, no Rio de Janeiro. Naquela área dominada pelo tráfico de drogas,
Miriam, 48 anos, já converteu cerca de 20 pessoas, segundo suas contas,
todas ex-traficantes. Detalhe: nenhum de seus antecessores do sexo
masculino conseguiu tal feito. “Teve um pastor que gastou R$ 20 mil para
blindar a igreja dele. A nossa é blindada pelo Espírito Santo”, diz
ela.
CORAGEM
Em Acari, uma comunidade dominada por traficantes, a pastora
Miriam já ficou no fogo cruzado entre bandidos e a polícia:
cerca de 20 ex-traficantes foram convertidos por ela
Um dos motivos para o aumento do número de mulheres no corpo
pastoral, segundo o sociólogo Ricardo Mariano, da Pontifícia
Universidade Católica (PUC), do Rio Grande do Sul, é o crescente sucesso
do movimento gospel, onde as estrelas são as cantoras. Aos 37 anos, Ana
Paula Valadão é um dos maiores expoentes do gênero no País. “O
movimento gospel colocou não somente homens, mas também mulheres em
evidência”, diz Ana Paula, que estudou em um seminário para poder ser
consagrada. “Algumas cantoras começaram a se destacar nos grupos de
louvor e um dos desdobramentos disso foi o reconhecimento da capacidade
que a mulher tem para exercer a função de liderança, inclusive em outras
frentes.” Não é um diploma que faz uma pastora. Esse título se ganha na
prática, com a comprovação da vocação e dos dons espirituais. Mesmo
assim, a presença de fiéis do sexo feminino em seminários evangélicos é
crescente já há duas décadas. A porta para o exercício do pastorado pode
não se abrir para boa parte delas. Mas a busca por conhecimento é a
melhor forma de forçar a maçaneta.
PRESENÇA
Na Igreja Batista da Lagoinha, onde a cantora Ana Paula Valadão
é pastora, 44,6% do corpo pastoral é composto por mulheres
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