Cerca de 5% das crianças e dos adolescentes
brasileiros são superdotados. Por que o País tem tanta dificuldade para
identificar e desenvolver esses pequenos gênios, que acabam indo para o
Exterior
Rachel Costa e Natália Martino
MENINO PRODÍGIO
Matheus Camacho conquistou o ouro na Olimpíada Internacional
e Ciencias, superando estudantes mais velhos, e chamou
a atencao do júri, ao conquistar a nota máxima
Matheus Camacho é brasileiro, estudante do nono ano e medalha de ouro
na etapa experimental da Olimpíada Internacional de Ciências, uma das
competições científicas estudantis mais difíceis do mundo. A sua
conquista só foi revelada publicamente na semana passada. Do alto de
seus 14 anos recém-completados, o tímido aluno que ainda nem terminou o
ensino fundamental foi ao Irã no mês passado. Enfrentou adversários do
mundo inteiro, a grande maioria garotos mais velhos do ensino médio, e
voltou para casa com uma conquista inédita para o País: o primeiro lugar
em uma das etapas mais difíceis da Olimpíada. Na competição que venceu,
ele e seus dois companheiros tiveram de resolver problemas práticos de
biologia, física e química, disciplinas que ele viu pela primeira vez no
ano passado, em aulas especiais no contraturno, já que elas não constam
na grade do ensino fundamental. Além do pódio, a equipe de Matheus
conseguiu outro feito: tirou nota máxima na prova, chamando a atenção
até mesmo do júri. Habituado a encontrar indianos, chineses e russos,
mas não brasileiros, entre os primeiros lugares, o locutor não se
conteve ao anunciar o título: “Olha, o Brasil não é bom só no futebol”,
brincou. A surpresa se justifica. Apesar de querer ser grande, falta ao
País uma política sólida para a valorização de talentos – coisa que
outros emergentes como China e Índia, com seus tropeços e acertos, têm
se empenhado mais em desenvolver. É certo que o grande desafio nacional
dos últimos 15 anos foi universalizar a educação, esforço inegavelmente
necessário, mas que teve como ônus desnecessário a negligência com os
alunos com altas habilidades.
Entre nossas crianças e nossos adolescentes, se usada a base de
cálculo sugerida pelo americano Joseph Renzulli, uma sumidade nas
pesquisas de superdotação, teríamos cerca de 3,15 milhões de brasileiros
com altas habilidades. O número equivale a 5% da população
infanto-juvenil. “Essa é a percentagem mais usada, embora haja outros
sistemas de identificação possíveis que levam a outros percentuais”,
afirma o pesquisador, diretor do Centro Nacional de Pesquisa em
Superdotados e Talentosos da Universidade de Connecticut, nos Estados
Unidos. Mas, se pela régua de Renzulli estamos falando em milhões, nos
dados do Ministério da Educação (MEC) o número de superdotados nas
escolas não passa de 11 mil, de acordo com o Censo de 2011. Onde
estariam, então, nossas crianças e nossos adolescentes com altas
habilidades? “Na própria escola, mas não há quem as identifique”, diz
Susana Barrera Pérez, presidente do Conselho Brasileiro para a
Superdotação e uma das poucas referências sobre o tema no País. “Não há
uma só linha de pesquisa sobre o assunto nas universidades brasileiras e
o tema passa batido para os alunos de graduação, que serão os futuros
educadores. Sem formação adequada, como eles vão saber identificar esses
alunos?” No ensino superior, a única instituição a oferecer uma cadeira
sobre superdotação a seus futuros educadores é a Universidade de
Brasília (UnB) e, em todo o País, há apenas 13 doutores dedicados ao
assunto, incluindo Susana. Nos Estados Unidos, país com maior número de
prêmios Nobel, são 29 Estados com programas de mestrado e, em pelo menos
21 Estados há linhas de pesquisa no doutorado voltadas para a
superdotação, segundo o último relatório da Associação Americana para
Crianças Superdotadas.
Sem conhecimento adequado, proliferam mitos e preconceitos sobre as
crianças com altas habilidades dentro das escolas brasileiras. Um deles é
o de que esses meninos e meninas são casos raríssimos de prodígios ou
gênios com grande conhecimento acadêmico – o que não é necessariamente
verdade (leia quadro à pag. 45). Nas quase duas décadas em que trabalha
com o tema, Susana se acostumou a ouvir em suas palestras professores
dizendo que não possuíam alunos com altas habilidades. “Trabalho na
periferia, isso é coisa de escola particular”, costumam bradar os
educadores. “Com duas horas de palestra, porém, eles já mudam de opinião
e conseguem se lembrar de estudantes com altas habilidades.” Para
tentar corrigir esse problema, o MEC iniciou em 2008 um tímido projeto
de criação dos Núcleos de Atividades de Altas Habilidades (NAAHs), que
deveriam servir como centros para reunir e desenvolver nossos pequenos
talentos. Cinco anos depois, porém, além de poucos (são apenas 27
centros, restritos às capitais), vários desses núcleos não estão nem em
funcionamento, como atestou Susana ao fazer um estudo sobre os NAAHs. “E
a dificuldade para capturar os talentos não é exclusiva à rede pública.
Ocorre também na rede privada.” Para ser brilhante no Brasil, mais que
ter altas habilidades, é preciso ter sorte.
Simone Camacho, mãe de Matheus, reconhece que se seu filho hoje está
satisfeito com suas conquistas foi por uma feliz conjunção de fatores.
Uma professora mais dedicada na infância, a sorte de encontrar uma
psicóloga especializada em altas habilidades quando suspeitou que o
menino estava deprimido, um vizinho que também tinha altas habilidades e
um professor que passou a atuar como guia de Matheus nos estudos. Nem
todos, porém, contam com essa sorte e por isso é preciso existir uma
política pública nacional para encontrar esses jovens talentos. “Talvez,
os alunos que estejam em situação mais desconfortável na escola hoje
sejam os talentosos, em especial na rede pública”, diz Ricardo Madeira,
professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da
Universidade de São Paulo (USP). “Sem estímulo, eles se sentem
perdidos”, afirma Madeira, que no último ano divulgou um estudo
mostrando que só de mudar esses pequenos talentos de escola – dando-lhes
a oportunidade de estudar em instituições de melhor qualidade – o
potencial de aprendizagem deslancha.
O professor da USP comparou estudantes do sétimo ano da rede pública
“fisgados” pelo Instituto Social para Motivar, Apoiar e Reconhecer
Talentos (Ismart) com seus pares. Enquanto os primeiros foram para
colégios melhores, os demais seguiram nas mesmas instituições. Após dois
anos, a média daqueles que haviam mudado estava muito maior. Marco
Antônio Pedroso, 21 anos, foi para o programa em 2005, após conquistar
um ouro na Olimpíada Paulista de Matemática. A oportunidade representou
uma guinada para o menino, que, em um colégio melhor, se sentiu
desafiado. “Antes eu só tirava 10, mas estava acomodado”, afirma. A dose
de ânimo fez Pedroso ganhar outros prêmios olímpicos e criar, ele
próprio, com a ajuda do irmão mais novo, um projeto para formar outros
medalhistas em sua cidade natal, Santa Isabel, a 60 quilômetros de São
Paulo. “Queria que os alunos soubessem das olimpíadas para que elas os
ajudassem da mesma forma como me ajudaram”, diz. Desde junho de 2010,
Pedroso acompanha de longe o projeto que criou. Nos Estados Unidos o
jovem agora dedica seu tempo às aulas do Massachusetts Institute of
Technology (MIT).
“A educação inclusiva está falhando ao excluir esses alunos com altas
habilidades”, diz Ângela Virgolim, referência brasileira quando o
assunto é superdotação e professora do departamento de psicologia
escolar e desenvolvimento da UnB. Do mesmo modo que as crianças com
déficit, as altamente talentosas estão incluídas no capítulo da educação
especial do sistema educativo brasileiro. A razão é porque nos dois
extremos deve-se ter atenção extra para ajudar os estudantes a se
desenvolver de forma saudável. O que ocorre na realidade das escolas,
porém, passa longe do previsto. “Ao contrário da deficiência, na alta
habilidade não existe uma marca física, o que torna mais difícil definir
quem são esses estudantes”, diz Susana. Somem-se a isso os mitos que
acompanham os alunos com altas habilidades. “O pior deles é aquele que
diz que o superdotado não precisa de ajuda porque vai cumprir tudo por
sua conta”, disse à ISTOÉ Ella Cosmovici, autora de “Nossas Crianças
Superdotadas” (2011) e professora da Universidade de Stavanger, na
Noruega. Abandonado pelo sistema, é comum esse aluno não saber que
caminho percorrer, como aconteceu com Leonardo Florentino, 14 anos. “Eu
não gostava da aula porque era tudo muito básico. Aí os professores me
mandavam ir estudar sozinho na biblioteca”, diz. O conflito com a escola
só terminou no terceiro ano, quando ele conseguiu uma bolsa em outra
instituição, repleta de aulas extras na grade curricular, e começou a
acumular troféus em campeonatos de conhecimento. Em casa, coleciona
medalhas de matemática, física, química, astronomia, robótica e redação.
Em muitos casos, a reclamação da aula enfadonha poderia ser resolvida
com uma atitude simples: avançar a criança para o ano seguinte. “No
Brasil, porém, a aceleração ainda é um tema bastante polêmico, embora em
outros países seja muito claro que a criança deve ser acelerada quando
necessário”, afirma a professora Ângela, da UnB. A advogada Cláudia
Hakim, 41 anos, conhece bem de perto esse drama. Seus dois filhos, uma
menina de 11 anos e um menino de 8, têm superdotação e a sugestão para
que fossem avançados de turma foi feita por um psicopedagogo que os
avaliou após a coordenadora pedagógica do colégio perceber o
desenvolvimento acelerado das crianças. A dificuldade, porém, veio de
cima, da diretoria de ensino, órgão ligado à Secretaria Estadual de
Educação de São Paulo. No caso da menina, a batalha já está resolvida e a
matrícula legalizada. Já o menino se mantém na turma avançada por uma
liminar judicial. Os problemas consecutivos tornaram a mãe uma militante
da causa. Só no último ano, Cláudia advogou para 15 famílias em
situação semelhante. “É direito nosso e temos de lutar por ele”, diz. O
nó quando se fala em aceleração não está na lei, mas sim no sistema
educacional. “Nossas escolas não contam com a figura do psicológo
educacional, que é o profissional que vai comparar o desempenho
acadêmico com a maturidade emocional e dar o parecer sobre a
possibilidade de a criança acompanhar as aulas com alunos mais velhos”,
diz a professora Ângela.
Negligenciar o desenvolvimento desses talentos não é prejudicial apenas
para eles. Ao agir dessa forma, o País perde, no mínimo, boas
oportunidades. “Crianças com altas habilidades são um precioso recurso
nacional que precisa ser protegido, nutrido e desenvolvido”, disse à
ISTOÉ Steven Pffeifer, professor da Universidade Estadual da Flórida e
autor do “Manual para Superdotação em Crianças” (2009). Pffeifer é autor
de um teste para identificar superdotados, bem popular entre colégios
americanos. Sem investir em programas para altas habilidades, esse
recurso se esvai. “Perdem-se líderes, invenções, profissionais com
potencial para se tornar nomes de destaque em diversas áreas do
conhecimento”, afirma o brasileiro Nielsen Pereira, docente da
Universidade de Kentucky, nos Estados Unidos, ele próprio um pesquisador
que saiu do País para desenvolver suas pesquisas.
O resultado é que seja no futebol, seja na
academia ou nas artes, os brasileiros com altas habilidades geralmente
têm o mesmo destino: o Exterior. Só na Universidade de Harvard, nos
Estados Unidos, o número de estudantes do País subiu 20% entre 2007 e
2011. Um deles é Gabriel Guimarães, 19 anos, recém-admitido pela
instituição. A decisão de buscar formação fora foi tomada há quatro anos
e veio depois de seguidas frustrações no sistema de ensino brasileiro. O
primeiro contato com a universidade americana foi por meio de um de
seus cursos online, no fim do ensino médio. Enquanto a maior parte dos
alunos levou quatro meses para assistir a todas as aulas virtuais,
Guimarães viu tudo em três semanas. Quando fez a aplicação para Harvard,
não deu outra: foi selecionado. A aplicação é apenas uma das formas que
essas instituições mantêm para conseguir as melhores cabeças. “Nas
olimpíadas acadêmicas internacionais sempre há ‘olheiros’ das grandes
universidades. Quando o aluno desce do pódio, eles já entregam o cartão
convidando-o a conhecer a instituição”, diz o professor de física
Ronaldo Fogo, responsável pelas turmas olímpicas de física do Colégio
Objetivo de São Paulo. Fogo foi quem ajudou Matheus Camacho a se
encontrar no universo das ciências. Acostumado a lidar com alunos
olímpicos, o professor sabe que o futuro que espera Matheus, assim como
tantos outros de seus alunos, está nas universidades internacionais. “O
Brasil está perdendo o bonde da história por essa dificuldade de
identificar, desenvolver e reter nossos talentos.”
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