Ao defender o senador José Sarney de denúncias de irregularidade, o presidente Lula cria no Brasil duas categorias de cidadão: os "comuns", nós, e os "incomuns", a quem tudo se permite.Há meio século, quando o presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira inaugurou Brasília, um coro de descontentes fez-se ouvir. Nada contra a arquitetura de gosto duvidoso da nova capital federal. O que se temia era a possibilidade de que, uma vez isolados no interior do país, longe da vigilância próxima e permanente dos cidadãos de uma metrópole como o Rio de Janeiro, antiga sede do governo, os políticos perdessem de uma vez a compostura e passassem a comportar-se como senhores feudais, acima das leis. Infelizmente, os descontentes revelaram-se proféticos. Brasília tornou-se uma ilha da fantasia para deputados e senadores, que usam seus cargos de representantes do povo para locupletar-se e obter vantagens para seus apaniguados. O corolário evidente é que a capital se transformou numa imagem de pesadelo para os que pagam a conta: nós, os milhões de contribuintes; nós, as dezenas de milhões de pessoas comuns. É tal o resumo da ópera brasiliense – eles, os poderosos, os "incomuns", se lixam cada vez mais para a opinião pública, para os bons modos, para a Constituição. Minam, assim, a crença na democracia e os alicerces de uma nação que almeja a civilização.
Esse espetáculo deprimente teve outra cena triste na semana passada. Seu protagonista: o presidente Lula. Desde que se viu na contingência política de ter de defender os crimes dos seus partidários envolvidos no mensalão, Lula teve de entregar a bandeira da ética – que ele empunhou com desenvoltura antes de chegar ao Palácio do Planalto. A rendição do presidente se deu naquela célebre entrevista concedida em Paris, em 2005, nos tempos em que a corrupção causava ainda algum constrangimento. Sem os corretivos vindos de cima, a turma do baixo, do médio e do alto clero da base aliada sentiu-se mais livre do que nunca. Sempre que um de seus integrantes está prestes a se afogar, eis que surge o presidente, solidário, oferecendo o conforto de suas palavras amigas. Nem precisa ser compadre de pitar cigarrilha, como o leal companheiro Delúbio Soares, estrela do mensalão. Pode ser do PMDB, do PP ou do PTB. Pode até ser, vá lá, um "grande ladrão", adjetivo com o qual Lula descrevia o senador José Sarney quando este era presidente da República. Há cinco meses o Congresso Nacional enfrenta uma infindável onda de escândalos. Ela envolve parlamentares e altos funcionários com mordomias, nepotismo e suspeitas de corrupção. Aos 79 anos de idade, 54 de política, Sarney, o mais longevo e experiente dos políticos brasileiros, é apontado como mentor e beneficiário da máquina clandestina que operava a burocracia do Senado. Inerte diante das denúncias, o senador tentou defender-se no plenário, com argumentos tão frágeis quanto os azulejos portugueses de São Luís. Do Cazaquistão, onde se encontrava em visita oficial, Lula atirou-lhe a boia."O senador tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum", disse o presidente. E continuou: "Não sei a quem interessa enfraquecer o Poder Legislativo no Brasil. Quando o Congresso foi desmoralizado e fechado, foi muito pior para a democracia". Não satisfeito, acrescentou: "Eu sempre fico preocupado quando começa no Brasil esse processo de denúncias, porque ele não tem fim e depois não acontece nada". Ao afirmar que Sarney merece um tratamento diferenciado, o presidente atropelou o preceito constitucional expresso no artigo 5º, que estabelece a igualdade de todos perante a lei. "Lula foi absolutamente infeliz. Reforçou a ideia de que um é melhor do que o outro. Restabeleceu a lógica do ‘você sabe com quem está falando?’. Bateu de frente na Constituição e no princípio basilar da democracia", resume o historiador Marco Antonio Villa.
Dono de uma biografia comovente e de uma popularidade acachapante, Lula não parece preocupado com arranhões em sua imagem pessoal. Parece fiar-se nas cicatrizações promovidas pelo tempo. Espontâneo como nos tempos de sindicalista barbudão, ele não é, ainda, afeito a liturgias do cargo que ocupa. Nada disso representa um grande problema. A questão é que, no exercício da Presidência da República, Lula personifica muito mais do que o operário que chegou ao poder. Ele é ao mesmo tempo o mestre e o servo dos brasileiros ao se investir dos poderes de uma instituição, a Presidência da República. Entre seus inúmeros e vitais papéis está o de zelar pela Constituição. Ao declarar que Sarney é um personagem que paira sobre tudo e todos, o presidente da República foi bem além de cometer uma gafe pessoal. Ele feriu a Carta que jurou defender. E isso nem um presidente popular, simpático e bem-sucedido como Lula pode fazer impunemente.
Há uma mensagem perturbadora na recorrente retórica presidencial em defesa dos aliados envolvidos em escândalos: a minimização da corrupção, o estímulo à transgressão das regras e o aval à impunidade. A lista dos socorridos por Lula saiu direto dos escaninhos da polícia . Há nela gente como o deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força Sindical, acusado pela PF de faturar propina. Ele recebeu uns belos cafunés de Lula, em agosto de 2008, num discurso a sindicalistas: "O que aconteceu com Paulinho já aconteceu com outros. Nessas horas, é momento de andar de cabeça erguida". A defesa do presidente deve ter tocado o coração dos deputados do Conselho de Ética da Câmara. Logo depois, eles inocentaram Paulinho. Outro notável da política brasileira que mereceu um paparico de Lula foi Renan Calheiros, do PMDB, quando vieram a público os rolos do senador alagoano com amantes, bois, lobistas e malas cheias de dinheiro – essas coisas de Brasília. No ápice do escândalo, há dois anos, o presidente entrou em cena para confundir a plateia: "Isso é um assunto que o Senado poderia ter resolvido em uma semana. Não sei por que não resolveram. É o típico caso de gente que acha que quanto pior, melhor. Estou vendo pela imprensa que o Renan apresenta documentos em sua defesa e não aceitam". Acabaram aceitando. Meses depois, os senadores inocentaram Renan.
É necessário cautela ao estabelecer uma relação automática de causa e efeito entre as declarações conciliadoras de Lula e a posterior pizza servida aos encalacrados. Seria um disparate afirmar que Renan foi absolvido diretamente em razão do que disse o presidente. Mas é ingenuidade acreditar que um fato esteja completamente dissociado do outro. Resta incontornável a percepção de que, todas as vezes em que o presidente se pronuncia a favor de um político enrolado (o que é frequente demais), o político enrolado safa-se (o que é tão frequente quanto). As declarações de Lula fortaleceram Sarney, que havia iniciado a semana passada na berlinda. Ele chegou a discutir a possibilidade de se afastar da presidência do Senado, como um último ato para resgatar sua biografia. Desde que deixou a Presidência da República, em 1990, Sarney elegeu-se senador e se transformou na principal liderança política do Congresso. Preside o Senado pela terceira vez e, nos intervalos entre um mandato e outro, ajudou a eleger apadrinhados, como Jader Barbalho (que renunciou por corrupção) e Renan Calheiros. É dele também a montagem da burocracia alvo dos últimos escândalos. Durante catorze anos, o ex-datilógrafo Agaciel Maia comandou a máquina que administra o Senado. Nomeado por Sarney e mantido no cargo por todos os presidentes que lhe sucederam, Agaciel foi afastado no início do ano quando se descobriu que ele era dono de uma mansão, não declarada ao Fisco, avaliada em 5 milhões de reais. Recentemente, soube-se também que Agaciel era responsável pela montagem de uma estrutura administrativa clandestina usada para contratar parentes, amigos e correligionários de senadores sem percorrer os caminhos normais da burocracia. Não se conhece a totalidade da lista dos beneficiados, mas já foram encontrados oito parentes do senador José Sarney entre os "secretas" parlamentares. A maior parte deles jamais pisou no Congresso. No último dia 10, em meio ao escândalo, Agaciel Maia casou a filha. Sarney foi padrinho.
Na véspera da declaração de apoio de Lula, o senador "incomum" subiu à tribuna. Em um discurso de pouco mais de meia hora, disse que a crise não é dele, mas de todo o Senado, e que não aceita ser julgado por questões menores, o que é uma "falta de respeito para quem tem mais de cinquenta anos de vida pública". VEJA ouviu uma centena de pessoas "comuns" em várias partes do país, para saber como receberam a defesa do tratamento diferenciado aos políticos proposto pelo presidente. As opiniões estão reproduzidas ao longo das páginas desta reportagem. Em 1890, Benjamin Constant, ardoroso republicano brasileiro, saiu de uma audiência com o marechal Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente do Brasil, indignado com o tratamento que lhe fora dispensado. "Não era esta a República com que eu sonhava", disse Constant. Mais de um século depois, é como se sua frase continuasse a ressoar entre os milhões de cidadãos que vivem sob o império da lei, sem privilégios e pagando a conta dos "incomuns" de Brasília.
Esse espetáculo deprimente teve outra cena triste na semana passada. Seu protagonista: o presidente Lula. Desde que se viu na contingência política de ter de defender os crimes dos seus partidários envolvidos no mensalão, Lula teve de entregar a bandeira da ética – que ele empunhou com desenvoltura antes de chegar ao Palácio do Planalto. A rendição do presidente se deu naquela célebre entrevista concedida em Paris, em 2005, nos tempos em que a corrupção causava ainda algum constrangimento. Sem os corretivos vindos de cima, a turma do baixo, do médio e do alto clero da base aliada sentiu-se mais livre do que nunca. Sempre que um de seus integrantes está prestes a se afogar, eis que surge o presidente, solidário, oferecendo o conforto de suas palavras amigas. Nem precisa ser compadre de pitar cigarrilha, como o leal companheiro Delúbio Soares, estrela do mensalão. Pode ser do PMDB, do PP ou do PTB. Pode até ser, vá lá, um "grande ladrão", adjetivo com o qual Lula descrevia o senador José Sarney quando este era presidente da República. Há cinco meses o Congresso Nacional enfrenta uma infindável onda de escândalos. Ela envolve parlamentares e altos funcionários com mordomias, nepotismo e suspeitas de corrupção. Aos 79 anos de idade, 54 de política, Sarney, o mais longevo e experiente dos políticos brasileiros, é apontado como mentor e beneficiário da máquina clandestina que operava a burocracia do Senado. Inerte diante das denúncias, o senador tentou defender-se no plenário, com argumentos tão frágeis quanto os azulejos portugueses de São Luís. Do Cazaquistão, onde se encontrava em visita oficial, Lula atirou-lhe a boia."O senador tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum", disse o presidente. E continuou: "Não sei a quem interessa enfraquecer o Poder Legislativo no Brasil. Quando o Congresso foi desmoralizado e fechado, foi muito pior para a democracia". Não satisfeito, acrescentou: "Eu sempre fico preocupado quando começa no Brasil esse processo de denúncias, porque ele não tem fim e depois não acontece nada". Ao afirmar que Sarney merece um tratamento diferenciado, o presidente atropelou o preceito constitucional expresso no artigo 5º, que estabelece a igualdade de todos perante a lei. "Lula foi absolutamente infeliz. Reforçou a ideia de que um é melhor do que o outro. Restabeleceu a lógica do ‘você sabe com quem está falando?’. Bateu de frente na Constituição e no princípio basilar da democracia", resume o historiador Marco Antonio Villa.
Dono de uma biografia comovente e de uma popularidade acachapante, Lula não parece preocupado com arranhões em sua imagem pessoal. Parece fiar-se nas cicatrizações promovidas pelo tempo. Espontâneo como nos tempos de sindicalista barbudão, ele não é, ainda, afeito a liturgias do cargo que ocupa. Nada disso representa um grande problema. A questão é que, no exercício da Presidência da República, Lula personifica muito mais do que o operário que chegou ao poder. Ele é ao mesmo tempo o mestre e o servo dos brasileiros ao se investir dos poderes de uma instituição, a Presidência da República. Entre seus inúmeros e vitais papéis está o de zelar pela Constituição. Ao declarar que Sarney é um personagem que paira sobre tudo e todos, o presidente da República foi bem além de cometer uma gafe pessoal. Ele feriu a Carta que jurou defender. E isso nem um presidente popular, simpático e bem-sucedido como Lula pode fazer impunemente.
Há uma mensagem perturbadora na recorrente retórica presidencial em defesa dos aliados envolvidos em escândalos: a minimização da corrupção, o estímulo à transgressão das regras e o aval à impunidade. A lista dos socorridos por Lula saiu direto dos escaninhos da polícia . Há nela gente como o deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força Sindical, acusado pela PF de faturar propina. Ele recebeu uns belos cafunés de Lula, em agosto de 2008, num discurso a sindicalistas: "O que aconteceu com Paulinho já aconteceu com outros. Nessas horas, é momento de andar de cabeça erguida". A defesa do presidente deve ter tocado o coração dos deputados do Conselho de Ética da Câmara. Logo depois, eles inocentaram Paulinho. Outro notável da política brasileira que mereceu um paparico de Lula foi Renan Calheiros, do PMDB, quando vieram a público os rolos do senador alagoano com amantes, bois, lobistas e malas cheias de dinheiro – essas coisas de Brasília. No ápice do escândalo, há dois anos, o presidente entrou em cena para confundir a plateia: "Isso é um assunto que o Senado poderia ter resolvido em uma semana. Não sei por que não resolveram. É o típico caso de gente que acha que quanto pior, melhor. Estou vendo pela imprensa que o Renan apresenta documentos em sua defesa e não aceitam". Acabaram aceitando. Meses depois, os senadores inocentaram Renan.
É necessário cautela ao estabelecer uma relação automática de causa e efeito entre as declarações conciliadoras de Lula e a posterior pizza servida aos encalacrados. Seria um disparate afirmar que Renan foi absolvido diretamente em razão do que disse o presidente. Mas é ingenuidade acreditar que um fato esteja completamente dissociado do outro. Resta incontornável a percepção de que, todas as vezes em que o presidente se pronuncia a favor de um político enrolado (o que é frequente demais), o político enrolado safa-se (o que é tão frequente quanto). As declarações de Lula fortaleceram Sarney, que havia iniciado a semana passada na berlinda. Ele chegou a discutir a possibilidade de se afastar da presidência do Senado, como um último ato para resgatar sua biografia. Desde que deixou a Presidência da República, em 1990, Sarney elegeu-se senador e se transformou na principal liderança política do Congresso. Preside o Senado pela terceira vez e, nos intervalos entre um mandato e outro, ajudou a eleger apadrinhados, como Jader Barbalho (que renunciou por corrupção) e Renan Calheiros. É dele também a montagem da burocracia alvo dos últimos escândalos. Durante catorze anos, o ex-datilógrafo Agaciel Maia comandou a máquina que administra o Senado. Nomeado por Sarney e mantido no cargo por todos os presidentes que lhe sucederam, Agaciel foi afastado no início do ano quando se descobriu que ele era dono de uma mansão, não declarada ao Fisco, avaliada em 5 milhões de reais. Recentemente, soube-se também que Agaciel era responsável pela montagem de uma estrutura administrativa clandestina usada para contratar parentes, amigos e correligionários de senadores sem percorrer os caminhos normais da burocracia. Não se conhece a totalidade da lista dos beneficiados, mas já foram encontrados oito parentes do senador José Sarney entre os "secretas" parlamentares. A maior parte deles jamais pisou no Congresso. No último dia 10, em meio ao escândalo, Agaciel Maia casou a filha. Sarney foi padrinho.
Na véspera da declaração de apoio de Lula, o senador "incomum" subiu à tribuna. Em um discurso de pouco mais de meia hora, disse que a crise não é dele, mas de todo o Senado, e que não aceita ser julgado por questões menores, o que é uma "falta de respeito para quem tem mais de cinquenta anos de vida pública". VEJA ouviu uma centena de pessoas "comuns" em várias partes do país, para saber como receberam a defesa do tratamento diferenciado aos políticos proposto pelo presidente. As opiniões estão reproduzidas ao longo das páginas desta reportagem. Em 1890, Benjamin Constant, ardoroso republicano brasileiro, saiu de uma audiência com o marechal Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente do Brasil, indignado com o tratamento que lhe fora dispensado. "Não era esta a República com que eu sonhava", disse Constant. Mais de um século depois, é como se sua frase continuasse a ressoar entre os milhões de cidadãos que vivem sob o império da lei, sem privilégios e pagando a conta dos "incomuns" de Brasília.
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