Cristina e Néstor Kirchner desperdiçaram a oportunidade de fazer a Argentina avançar – e poderão ser punidospor isso nas eleições legislativas do dia 28.Uma imagem, uma constatação, uma estatística e uma frase resumem o estado das coisas na Argentina. A imagem: pedreiros acrescentando mais um andar às lajes das favelas de Buenos Aires. Enquanto a atividade da construção civil em geral está em queda, as precárias villas portenhas não param de crescer – na falta de espaço, para cima. A constatação: a quantidade cada vez maior de galões de água expostos sobre carros estacionados, principalmente na periferia da capital argentina. Este é o sinal convencionado pelos proprietários para anunciar que seus veículos usados estão à venda. Mais automóveis enfeitados com galões, mais pessoas com necessidade urgente de dinheiro. A estatística: a mortalidade infantil na província de Buenos Aires subiu 8% em 2007. Tudo isso dá a ideia de que algo vai muito mal na Argentina. A população da capital que vive em moradias irregulares aumentou 30% nos últimos dois anos. Três em cada quatro argentinos dizem não ganhar o suficiente para cobrir os gastos diários. E, no mesmo ano em que o PIB da Argentina cresceu incríveis 8,7%, o mais básico dos indicadores sociais só piorou na principal província do país. Favelas em expansão, renda relativa em baixa e bebês morrendo – no mínimo, o governo deveria estar reconsiderando suas políticas econômicas e sociais. A presidente argentina diz que não é o caso. Formulada por Cristina Kirchner em um comício da campanha para as eleições legislativas do próximo domingo, eis a frase: "Encontramos o caminho e devemos segui-lo e aprofundá-lo".O futuro do modelo kirchnerista estará em jogo no dia 28, quando os eleitores vão renovar um terço dos senadores e metade dos deputados. Cristina defende o seu "caminho" para o país com base em uma ilusão – a de que a Argentina cresceu a uma média anual de 8% entre 2003 e 2008 graças às políticas iniciadas por seu marido e antecessor na Presidência, Néstor Kirchner. Na verdade, a Argentina cresceu apesar do casal K. e suas medidas econômicas. Em um país com 60% das exportações compostas de produtos agropecuários, o bom desempenho do PIB no período se deve aos altos preços da soja no mercado mundial. Os Kirchner só se mexeram para atrapalhar, impondo restrições às exportações agropecuárias, expulsando os investidores estrangeiros e adotando medidas heterodoxas de combate à inflação. Os efeitos nocivos dessas políticas demoraram a ficar evidentes porque, comparativamente, qualquer conjuntura parecia maravilhosa após o caos bancário e a crise recessiva de 1999 a 2002, quando o PIB argentino caiu 11% em um único ano. Néstor Kirchner e, depois dele, Cristina perderam a chance de, nos anos seguintes, aproveitar o crescimento econômico para consolidar as bases para a recuperação do país. A crescente percepção de pobreza citada anteriormente é apenas um dos sinais desse desperdício de oportunidade. Há outros. No ano que vem, pela primeira vez, o país poderá ter de importar carne e trigo. Esses produtos são emblemáticos da era de ouro argentina, no início do século XX, quando a república platina estava entre as dez nações mais ricas do mundo e rivalizava com os Estados Unidos no papel de líder econômico do futuro.Quanto o casal presidencial – os argentinos já não se referem a Cristina e Néstor separadamente – tem de culpa na queda na produção de carne e trigo? Um pouco no caso do grão e muito no da carne. O pior inimigo do trigo foi a seca, que fez a produção deste ano cair para 40% das safras anteriores. Outro obstáculo é a pressão feita pelo governo para que uma parcela maior da produção agrícola seja colocada à venda no mercado interno, a fim de elevar a oferta e forçar os preços dos alimentos para baixo. Isso desestimula os investimentos no campo, já que, paralelamente, os custos para plantar aumentaram. Algo parecido aconteceu com a carne, cuja exportação obedece a restrições desde 2006. A regra vigente até hoje é que todos os frigoríficos dediquem no mínimo 65% de seu estoque ao mercado doméstico. Obrigados a praticar preços mais baixos, os criadores passaram a investir menos em seus rebanhos: prova disso é que diminuiu o nascimento de terneiros e mais fêmeas (potenciais mães) estão sendo enviadas ao matadouro. Nos próximos anos, será difícil os argentinos manterem seu consumo per capita de carne, o maior do mundo. "Nenhum país será capaz de nos vender carne ao preço que estamos acostumados a pagar, por isso teremos de modificar nossos hábitos alimentares", diz Mario Ravettino, presidente do Consórcio de Exportadores de Carnes Argentinas. A partir de 2006, muitos pecuaristas trocaram o gado pela soja, atraídos pelo bom preço da commodity. Em março do ano passado, Cristina Kirchner tentou barrar essa tendência – e engordar os cofres do estado – através do aumento do imposto sobre a exportação de grãos. O confisco dos lucros da soja, a galinha dos ovos de ouro do PIB argentino, foi um tiro no pé. A classe média urbana recorreu a panelaços, os agricultores fizeram piquetes em estradas e, por fim, até o vice-presidente, Julio Cobos, cujo cargo na Argentina pressupõe desempatar votações no Senado, ajudou a derrubar a proposta de lei no Congresso. Essa foi a primeira grande derrota política de Cristina. A segunda poderá ocorrer no dia 28, com uma possível vitória da oposição. Eleita em 2007 após quatro anos de mandato de seu marido, Néstor, a presidente tem uma maioria frágil no Congresso. Com medo de um enfraquecimento ainda maior de sua bancada, recorreu a uma estratégia insólita na atual campanha eleitoral. Trata-se da invenção de uma nova figura política: os candidatos de fachada. Na Argentina, as eleições proporcionais são feitas com voto em lista fechada. O eleitor vota apenas na legenda. Os candidatos no topo da lista apresentada pelo partido são os que ocupam os cargos. Para atrair votos para o seu Partido Justicialista (PJ), um dos herdeiros do espólio peronista, o casal K. tratou de inscrever políticos bastante conhecidos da população. Encabeçando a lista está o próprio Kirchner. Depois vêm o governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli, e o chefe de gabinete da Presidência, Sergio Massa. Como ocupam cargos muito mais relevantes, é improvável que qualquer um deles assuma o mandato de deputado. O truque é este: passadas as eleições, os três devem deixar que outros do PJ ocupem suas vagas. Na qualidade de ex-presidente, Néstor Kirchner deveria estar fazendo palestras ou escrevendo suas memórias. Mas seu plano é voltar à Presidência em 2011, quando termina o mandato da esposa, inaugurando assim uma nova fórmula de se perpetuar no poder. Por isso se empenha na campanha legislativa. "Os Kirchner governam como se seu matrimônio e a Presidência formassem uma unidade familiar de negócios", diz a historiadora Ema Cibotti, uma eleitora de Néstor arrependida. Para ela, o casal resume o que há de pior no peronismo: seu manejo do poder é autoritário e personalista. Recentemente, por exemplo, o governo ameaçou censurar um programa humorístico da TV em que atores fazem imitações hilárias da presidente e seu marido. O humorista Martín Bossi interpreta uma Cristina Kirchner frívola e dada a pequenos surtos histéricos quando contrariada. A personagem carrega consigo uma maleta, em referência à bagagem apreendida pela alfândega argentina contendo 800 000 dólares em doações ilegais para a campanha presidencial de 2007.
Censurar humoristas e criar candidaturas-fantasma pode não ser o suficiente para evitar uma derrota do casal presidencial nas urnas. O governo de Cristina tem apenas 30% de aprovação, e o índice só tende a piorar conforme os efeitos da crise mundial começam a ser sentidos com mais força na Argentina. Estima-se que a economia do país termine o ano com uma retração de 2,6%. Também não ajudou a decisão de estatizar os fundos de previdência privada do país, afetando a aposentadoria de 4 milhões de trabalhadores, para cobrir um rombo fiscal de 10 bilhões de dólares. O casal K. está tão desesperado com a queda livre de sua popularidade que resolveu antecipar as eleições legislativas – originalmente seriam em outubro. Dessa forma, mesmo se perder, Cristina terá cinco meses em vez de um para aprovar projetos de seu interesse, antes que os novos congressistas assumam. Teme-se que esse período seja usado para adotar medidas à moda de Hugo Chávez, o presidente da Venezuela. Ou seja, fazer mais estatizações e espalhar o pânico entre os empresários que não cumprirem a determinação de congelar os preços. A comparação com Hugo Chávez torna-se ainda mais pertinente pela proximidade dos Kirchner com o caudilho do Caribe. Dependente da disposição de Chávez de comprar títulos da dívida argentina, algo que nenhum outro país é insano o suficiente para fazer, Cristina foi acusada pelas associações patronais portenhas de não defender os interesses do país nas estatizações feitas pelo governo venezuelano, no mês passado. Duas das empresas nacionalizadas eram argentinas. A piada em Buenos Aires é que só falta Chávez querer confiscar Cristina Kirchner para si. Ao que Kirchner reagiria com a mesma passividade demonstrada pela Casa Rosada diante das estatizações de capital argentino feitas por Caracas. A exemplo do que ocorre na Venezuela, a inflação é o ponto fraco do governo argentino e, como já se disse, um dos principais motivos para o crescimento econômico registrado nos últimos anos não ter conseguido consolidar a redução da pobreza. A outra razão foi a incapacidade de atrair investimentos estrangeiros no setor produtivo. "Não acredito no risco de a Argentina voltar a cair em um caos econômico tão grande como o do desastre de 1999 a 2002", diz Fausto Spotorno, diretor do Centro de Estudos Econômicos (CEE), um instituto que elabora estatísticas independentes, como o índice de inflação. O temor de Spotorno é outro: "Se nada mudar na política econômica deste governo, poderemos ter três anos de estag-flação, a inflação com recessão". Pelos cálculos do CEE, a Argentina vai fechar 2009 com uma inflação de 15%. A estimativa oficial, manipulada segundo os interesses dos Kirchner, está em míseros 7,6%. Paradoxalmente, o governo concedeu há pouco um reajuste salarial de 15% aos servidores públicos.
De manhã, pouco antes de começarem o expediente, homens e mulheres ocupam as melhores mesas dos cafés do centro de Buenos Aires para tomar um expresso e ler o jornal. Muitos chegaram ali de ônibus, já que o trânsito é ruim e os estacionamentos, escassos. Jornal, café e ônibus compõem um hábito que é uma instituição econômica na Argentina. Em condições normais, a notícia, a bebida e o bilhete do transporte têm todos o mesmo preço. Hoje, a equação está desequilibrada. O jornal custa 2,5 pesos, o café, 5, e a passagem de ônibus, subsidiada, está em 90 centavos. É o efeito da política de controle de preços rígida sobre setores específicos, especialmente alimentos essenciais e serviços públicos. Essa maneira de controlar a inflação cria distorções na economia, espanta os investimentos e atrapalha a produção. Um exemplo é o preço do gás encanado, mantido baixo graças a uma combinação de chantagem contra os produtores e subsídio estatal. Por causa dessa política, só em novembro do ano passado ocorreram 44.000 cortes de energia na capital (30% da eletricidade do país é produzida com gás natural). As eleições do próximo dia 28 de junho, ganhando qualquer um dos opositores dos Kirchner, darão um pouco mais de alento ao país abençoado pela natureza, mas onde nunca tantos fizeram tão pouco com tanto.
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