A partir do julgamento do mensalão, ficará
mais complicado fazer caixa 2 e montar esquemas para comprar apoio
parlamentar. O desafio, agora, é como escapar do sistema político que
cria um ambiente favorável aos delitos
Sérgio Pardellas
O julgamento do mensalão no STF – que condenou 22 dos 37 réus, até
agora – tem tudo para deixar um importante legado no combate à
impunidade e à corrupção no País. Na avaliação de juristas, cientistas
políticos e dos próprios ministros do STF ouvidos por ISTOÉ, as
condenações históricas do mensalão podem mudar a maneira de se fazer
política no Brasil. E, principalmente, inibir a ação dos corruptos. O
recado é claro: roubar ficou mais difícil. A partir de agora, por
exemplo, montar caixa 2 em campanhas eleitorais não será, como alegavam
os políticos, algo corriqueiro e próprio do sistema brasileiro. A
prática simplesmente deixou de ser considerada um crime menor e, no
entendimento da corte, sempre vem acompanhadade outros delitos.
O foro privilegiado também não mais significa impunidade para quem
tem mandato. Se, até então, o STF demonstrava dificuldades em julgar
processos que dependiam da atuação de magistrados na fase de instrução,
agora esses obstáculos foram removidos. O tribunal passou a nomear
juízes de primeira instância para auxiliar os ministros, o que acelerou a
tramitação dos processos e o julgamento. Ao firmarem convicção de que o
autor do ato ilícito não é só quem executa, mas quem planeja e
acompanha o desenrolar das ações ilegais, os ministros do STF colocaram
na mira o mentor intelectual da corrupção. Agora, a responsabilidade não
poderá ser transferida para funcionários subalternos e servidores
mequetrefes. “O entendimento do tribunal contra a alegação de
desconhecimento para derrubar a falta de provas diretas contra os chefes
não funcionará mais”, disse o relator do mensalão, Joaquim Barbosa, em
conversas com interlocutores. “É uma concepção de que o autor não é só
quem executa, mas quem planeja”, afirmou o ministro Gilmar Mendes.
Os avanços no plano jurídico, no entanto, não terão por si só o
condão de extirpar de uma vez por todas a corrupção nas esferas
governamentais. Afinal, as mazelas e os desvios da política nacional não
podem ser atribuídos tão somente às inevitáveis imperfeições da alma
humana. Delúbios, Valérios e companhia só conseguiram operar um
audacioso esquema de compra de apoio parlamentar porque houve um
ambiente favorável para essa prática. O largo espaço para a corrupção
foi propiciado pelo sistema político-partidário brasileiro que, ao
permitir uma inacreditável multiplicação de agremiações e a criação de
verdadeiras legendas de aluguel, desembocou no que os cientistas
políticos costumam chamar de presidencialismo de coalizão. Adotado a
partir da redemocratização, esse modelo deletério, baseado na política
do toma la da cá e no fisiologismo, já produziu pelo menos quatro
grandes escândalos na história recente do País. Além do mensalão, houve a
onda de denúncias que envolveram a fixação dos cinco anos de mandato
para o então presidente José Sarney, o impeachment do ex-presidente
Fernando Collor, em 1992, e a aprovação da emenda da reeleição pelo
governo Fernando Henrique Cardoso, em 1997.
Para aprovar os cinco anos para Sarney, durante a Constituinte de
1988, foi necessária uma articulação capitaneada pelo ex-deputado
Roberto Cardoso Alves, integrante da tropa de choque do governo no
Centrão (formado pelos partidos PMDB, PFL, PDS, PTB, PDC e PL). A
manobra foi alvo de graves acusações de utilização de recursos públicos
na conquista do voto de parlamentares. A moeda de troca teria sido a
concessão de canais de rádio e televisão. Já durante a aprovação da
reeleição, que concederia mais quatro anos de mandato para FHC, o
principal operador político do governo, o ex-ministro Sérgio Motta, o
Serjão, também foi acusado de compra de votos de integrantes do
Legislativo. No caso de Collor, foi experimentada uma alternativa
regional com a chamada “República de Alagoas” que concentrou a
corrupção no Executivo. Quando Fernando Collor tentou envolver o
Parlamento, rendendo-se às práticas usuais do presidencialismo de
coalizão, já era tarde – e ele não escapou do impeachment. “O julgamento
do mensalão me parece uma excelente oportunidade para rediscutir o
sistema político”, afirma Dimitri Dimoulis, professor da Escola de
Direito de São Paulo da FGV. “O dia a dia da negociação política que
aparece no jornal todo mundo sabe que nem sempre é exatamente limpo.”
Segundo Dimoulis, o que se observa é uma “patologia estrutural” do
sistema. “É difícil para um político não se render a essas práticas,
pois nosso sistema político é um convite aos maus hábitos e à
corrupção”, concorda o cientista político Rogério Schmin.
Mas por que o presidencialismo de coalizão é um incentivo ao
malfeito? Para se chegar a essa resposta, antes é preciso entender como
ele funciona. Na origem de tudo está a profusão de agremiações
partidárias incentivada pela legislação brasileira. “Hoje temos 30
partidos, o que é um absurdo que leva a acordos eleitorais espúrios”,
diz o cientista político Marco Antônio Carvalho, da Fundação Getulio
Vargas. “Não existe vida partidária no Brasil. Existem donos de
legendas. É daí que surge a corrupção e a roubalheira. Sem uma reforma
de fato, o pragmatismo político continuará”, diz ele. Misturando o
presidencialismo tradicional com o parlamentarismo, o modelo
político-partidário faz com que o presidente construa sua base de apoio
concedendo postos ministeriais e cargos a integrantes dos partidos
governistas com representação no Parlamento. Em troca, os partidos
montam consórcios governistas e fornecem os votos necessários para
aprovar sua agenda no Legislativo. Na prática, o presidencialismo de
coalizão serve para dar governabilidade ao presidente, que dificilmente
tem ampla maioria no Congresso apenas com seu partido. O presidente
precisará de um novo arranjo para assegurar a aprovação das principais
propostas do Palácio do Planalto no Congresso e evitar que a oposição
paralise politicamente o governo com pedidos de investigação. Por mais
bem votado que tenha sido o presidente eleito, seu capital eleitoral (os
votos) tem de ser, no dia seguinte, convertido em capital político
(apoios). “Do contrário ele reina, mas, sem a famosa base aliada, não
governa”, já dizia o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
No modelo presidencialista norte-americano, assim como no Brasil, são
necessários 3/5 dos votos (60) no Senado e a maioria simples (216) na
Câmara para aprovar reformas e aumentar o limite de gastos públicos, por
exemplo. A diferença é que lá só existem dois partidos e, quando a
legenda do presidente não possui maioria, o que é raro, a negociação com
poucos opositores se dá com base em propostas, e não a partir do
oferecimento de cargos na administração pública. E é justamente aí que
reside o problema do presidencialismo de coalizão. E ele já começa
durante a campanha eleitoral. Ao negociar as alianças, os partidos não
discutem ideias nem projetos, mas o número de cargos que ganharão num
futuro governo. Os postos na administração pública são atrativos para os
dirigentes partidários porque é a oportunidade deles de aumentar seu
poderio eleitoral e desenvolver projetos para a população que rendam
votos. Também é a chance de praticar a corrupção e encher os cofres dos
doadores de campanha. O Executivo, por sua vez, interessado em cooptar
parlamentares e partidos para garantir a governabilidade, entra nesse
jogo. “Dentro desse sistema, há aquele ambiente propício para que se
passe do limite de um acordo em que o partido vai receber um ministério
ou uma autarquia, em tese um benefício lícito em troca do apoio ao
governo. De repente, vira uma linha tênue, talvez difícil de distinguir
entre essa negociação política permitida e o momento em que você passa a
tentar influenciar através de recursos financeiros o comportamento de
pequenos partidos e deputados”, diz Dimoulis. Para Rogério Schmin, se os
políticos brasileiros e noruegueses trocassem de lugar, sem mudar as
regras em vigor, em pouco tempo os noruegueses iriam se contaminar com
as práticas ilícitas. E os brasileiros, mesmo os mais corruptos, teriam
dificuldades em andar fora da lei.
Resistir a esse modelo não é fácil. Quando assumiu em 2011, a
presidenta Dilma Rousseff, considerada essencialmente uma gestora e
técnica, demonstrou desconforto com as regras do presidencialismo de
coalizão. Reagindo a denúncias de irregularidades, afastou ministros de
partidos diversos. Colheu aplausos da mídia e desgaste com os aliados,
especialmente o PMDB, o que fez com que ela assumisse as rédeas da
articulação política, sob pena de não ver aprovado no Congresso projetos
de seu interesse. Mas, aparentemente, há luz no final desse túnel. O
ministro Marco Aurélio Mello acredita que, a partir de agora, os
partidos políticos terão que enxergar as condenações como um ponto de
reinauguração da relação entre o Executivo e o Legislativo. “A coalizão
não pode ter como móvel o aspecto financeiro. Tem que ter como móvel a
harmonia. Notamos que não acontece bem assim. Já no início, ocorre um
loteamento de cargos públicos. A coisa vai degringolando e depois parte
para a prata.” Para o sociólogo Luiz Werneck Vianna, professor da
PUC-Rio, Dilma já está introduzindo uma guinada no presidencialismo de
coalizão brasileiro, com ministérios sem “porteira fechada”. “A
tendência é de uma coalizão cada vez mais programática”, avalia Vianna.
Para o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), a solução, porém, só virá com a
reforma política. “Temos que acabar com essa monstruosidade”, diz ele.
Há, porém, quem minimize os problemas decorrentes do modelo político.
Entidades que encampam ações de combate à corrupção estão animadas com a
possibilidade de os entendimentos aplicados aos réus do mensalão se
replicarem em processos de tribunais de Justiça por todo o País
envolvendo agentes públicos sem foro privilegiado. O juiz Marlon Reis,
fundador do Movimento de Combate à Corrupção, que deu origem à Lei da
Ficha Limpa, afirma que o Supremo reviu sua posição – em relação à
análise e consideração de provas – para enquadrar os réus do mensalão e
criou práticas processuais que servirão como norte para criminalizar a
corrupção. “A decisão de criminalizar as condutas gera um efeito cascata
nos tribunais de Justiça. Sempre se disse que o Supremo tinha um número
ínfimo de condenações, que era protecionista. Isso está sendo mudado. É
uma mensagem institucional.” Para o presidente da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, as pessoas vão começar a pensar duas
vezes antes de transgredir a lei. “As condenações demonstrarão que o
crime não compensa.” É o que espera a sociedade.
Com reportagem de Alan Rodrigues e Josie Jeronimo
Montagem sobre foto de PEDRO DIAS/ag. istoé
Fotos: SÉRGIO MARQUES; ag. istoé; ROBSON FERNANDJES/AE; ICHIRO GUERRA
Fotos: Nelson Jr./SCO/STF; Sérgio Lima/Folhapress
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